sábado, 15 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24225: Os nossos seres, saberes e lazeres (568): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (98): Vestígios soltos de dias felizes, custa apagá-los sem haver partilha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Quem se sentir intocável, seja o primeiro a atirar-me uma pedra. Temos todos nós um ambiente de trabalho dentro do computador e sabemos que a sobrecarga de imagens pode ser responsável pela lentidão da nossa máquina, chega sempre uma hora em que temos de aligeirar ficheiros e ganhar espaço para os tempos que se avizinham. Foi o que me sucedeu, no decurso da viagem encontraram-se lembranças, peças soltas, restos de trabalho, instantâneos filhos do acaso. Decidi pôr-lhes uma ordem (por falar com toda a franqueza, uma ordenação totalmente arbitrária, sem preocupações de sincronia), aqui está o produto final, custava-me muito atirar para o éter estas imagens sem as partilhar convosco.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (98):
Vestígios soltos de dias felizes, custa apagá-los sem haver partilha


Mário Beja Santos

Chega o momento em que se impõe fazer desaparecer restos de incursões, imagens difusas, até desemparelhadas de trabalhos que já se publicaram. O busílis é que essas imagens que vamos condenar ao éter ainda irrompem em nós, esplendentes, talvez mesmo luminescentes, tal o poder da recordação. Neste dia e a esta hora, encetei a vassourada, o derradeiro adeus de visitas, de impressões que profundamente me tocaram, de momentos de felicidade. E apetece-me falar delas, é um jeito de convívio, contar a outros o que se viu e que por qualquer razão não se publicou, o que durante muito ou pouco tempo se guardou nesta ou naquela pasta até se tomar a decisão de o infinito adeus.
Estamos na Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, no Almada Velho, vai para 30 anos que aqui bato à porta para ver belas exposições, para ser sincero, é a primeira vez que aqui entro depois da pandemia andar diluída, venho em jeito de saudade, e vou ser recompensado por diferentes lembranças. Uma vez emprestei uma aguarela da Ofélia Marques para uma exposição, noutra admirei-me com as obras do pintor Domingos Rego, fui a Azeitão e comprei-lhe uma técnica mista de que não me quero separar, que daqui passou uma exposição espantosa dos desenhos de Carlos Botelho, é melhor calar-me, quem puder venha até cá não só para conhecer este instituto de cultura como um projeto único que dá pelo nome de Chão das Artes, aqui estão os elementos vegetalistas de uso obrigatório em artes plásticas que dão, por exemplo, pelo nome de pintura ou aguarela.
A capela do património que antecedeu a Casa da Cerca é muito simples, o que mais gosto é da ingenuidade desta azulejaria, aqui vos deixo pormenores do Menino na manjedoura e outro alusivo à adoração dos reis magos.

Aqui ficam recordações da exposição da artista Ana Vidigal, tem um belo título “não me peça que lhe dê pormenores”, no essencial está expostas nesta sala sob a custódia de uma escultura de Alberto Carneiro. A folha que me ofereceram para melhor me entender com o que estou a ver informa-me que Ana Vidigal faz livros de artista. “Não são livros de projetos, ou de esboços, nem são livros de ideias. São obras. Cada um deles dá continuidade ao trabalho que a pintora realiza nas suas telas, desenhos ou instalações. O seu processo artístico – igual há mais de 40 anos – passa por uma recolha obsessiva de material que guarda em caixas: espólios de família, heranças de amigos, encontros em feiras de segunda mão – postais, fotografias, revistas, moldes de costura, novelas. Antes de começar uma peça ou série, volta aos seus caixotes, ao seu arquivo.” Na visita, deparo-me com imagens coloniais, e a folha explicativa abre caminho ao que estou a ver: “A guerra colonial tem sido um tema importante no seu trabalho. Define-se como filha da guerra, e as suas consequências continuam a deixar marcas profundas em si e na sociedade. Numa das suas caixas de arquivo encontrou um conjunto grande de postais fotográficos trazidos pelo seu bisavô, para tentar mostrar à família o que viveu e o que encontrou, enquanto esteve estacionado em África durante as guerras da libertação.” Pois aqui ficam lembranças do que vi e senti, num espaço que, museograficamente, tanto me fascinou.
A tarde é invernosa, não me canso de dizer que é da Casa da Cerca que se tem a vista de Lisboa mais linda fora de Lisboa, parece uma vastíssima placa horizontal acima das águas, à esquerda ouve-se o ronrom dos carros sobre a ponte, às vezes o caminhar metálico do comboio, os olhos vão até ao fundo, à procura da foz e da linha imaginária onde começa o Atlântico; à direita, é aquele assombro de imaginar, na imagem fuliginosa, que se está a ver o Terreiro do Paço até àquele cotovelo onde desponta Santa Engrácia, cresce-me o orgulho desta minha terra natal.
A que título guardei esta imagem quase incandescente da Charola? Levo anos de colaboração persistente num jornal de Tomar, O Templário, é mais do que certo e seguro que por ali andei um dia em que se deu este feliz acaso de apanhar esta luz de assombração, até me é lícito pensar que as câmaras desvairam, inventam luzes e formas para com prazimento de quem guarda recordações. A resposta certa não me importa, é a luz da assombração que me deixou empolgado. Assim apareceste, hoje te feneces.
Por falar em assombração, estou no meu retiro no Reguengo Grande, limite do concelho da Lourinhã, quando daqui sair e virar à esquerda entro no Bombarral e até posso subir à Roliça, onde as tropas napoleónicas levaram uma coça que preludiou o seu desaire no Vimeiro. O que para o caso importa foi aquele fim de dia, as cores ígneas encavalitadas nas nuvens, a promessa de um amanhã com calores de veraneio. Promessas leva-as o vento, o que me enche as medidas é a conjugação dos planos, entre o céu e a terra, entre o hoje e o dia seguinte, como espero em Deus que aconteça.
Imagine-se, um dia claro, o desfrute daquele vale que a Susana e o Henrique cultivam, cereais, meloal, legumes para uma boa sopa. É a manhã de um dia claro, tenho o tempo por minha conta, ali me vou sentar, ler não sei o quê, o mais importante é que me sinto aqui tão feliz quanto foi o inesperado de ter encontrado este local que merecia ser cantado por um Ovídio ou um Virgílio, não faço a coisa por menos.
A que título guardei estas duas imagens? Sei que foram para um livro que referenciei no blogue, juro que não me ocorre o título mas sei perfeitamente a razão por que as guardei, são imagens de um povo que conheço e respeito, trazem-se saudades de uma terra que tanto amo, primeiro a galeria de povos e a segunda imagem o vigor do trabalho insano para que a terra frutifique e não haja fome.
Nascia o dia, já estava na Feira da Ladra, numa balaustrada bem perto do que foi o Hospital da Marinha e um dia destes virá ser um condomínio de luxo. Aquele amarelo encadeante da iluminação prendeu-me a atenção, dentro de momentos virá o alvor do dia desta mancha de azul que parece o mar virado do avesso, então feirantes e visitantes entrarão em rebuliço, acabaram as trevas do amanhecer, os candeeiros apagam-se, será um dia febril, gente à procura de vender e gente à procura de comprar. Um saudosa recordação da minha Feira da Ladra.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24209: Os nossos seres, saberes e lazeres (567): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (97): Hoje, quero muito simplesmente dizer ao senhor Gulbenkian que lhe estou grato (2) (Mário Beja Santos)

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