quarta-feira, 12 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24219: Historiografia da presença portuguesa em África (363): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Mais vale tarde do que nunca, abre-se finalmente uma janela para se chegar a essa sociedade comercial que era a mais importante da Guiné colonial, a Casa Gouveia. Fazendo uma declaração de interesses, não sei quantos dias e quantas noites estive em Mato de Cão a ver passar em duas direções estas embarcações, por vezes ao nível de comboio, e não poucas vezes sob a custódia de uma embarcação da armada, designadamente do tipo LDM. Bati a várias portas, recebi muita afabilidade e zero resultados. E, imprevistamente, depois de mais uma tentativa junto do Ministério da Economia (não esquecer que a CUF foi nacionalizada em 11 de março de 1975, dando origem à Quimigal, processo da competência daquele departamento ministerial), sou informado de um arquivo no Barreiro que devo contatar um responsável da Fundação Amélia de Mello, por sinal alguém que ensinou na Faculdade de Direito de Bissau e que esteve à frente da gestão dos Armazéns do Povo. Abrem-se as esperanças de vir ver a papelada da Casa Gouveia, há sérias dúvidas quanto à fartura da documentação. Mas saí deste agradável encontro com uns bons quilos de papel e comecei por este belo trabalho de Maria Eugénia Mata. Digo sem prosápia que a sorte algumas vezes favorece os ousados, ou aqueles que não esmorecem.

Um abraço do
Mário



Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1)

Mário Beja Santos

Há anos que procuro saber por onde andam os arquivos da Casa Gouveia, a principal empresa comercial da Guiné, associada à CUF. Finalmente abriu-se-me uma porta, há um arquivo no Barreiro, indicaram-me o nome de alguém que durante anos na Guiné estivera na gestão dos Armazéns do Povo, depois da libertação para eles convergiram o património da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita, hoje assunto passado, tal como outros grandes empreendimentos, caiu na água levando ao tempo mais de 5 mil trabalhadores para o desemprego. Recebido com enorme afabilidade na Fundação Amélia de Mello, tenho a promessa de uma viagem ao Barreiro, ver o que há e não há. Entretanto, recebi uns bons quilos de publicações, comecei por este título Globalização em Português, atas do simpósio que se realizou na Academia das Ciências em Lisboa, Princípia, 2021. 

Chamou-me à atenção a comunicação de Maria Eugénia Mata com o título "Casa Gouvêa: Monetarização e Integração da Guiné na Economia Mundial". Vale a pena aqui respigar alguns dados pertinentes que permitem desvelar o poder deste empreendimento.

A investigadora dá inicialmente o quadro da Guiné até 1879, data em que a colónia se desafetou de Cabo Verde. Em jeito de síntese, observa a autora que:
“A colonização portuguesa ofereceu uma língua oficial comum, o português, que originou o crioulo, e uma moeda comum, o real até 1911, e o escudo de 1911 até à independência. Todos estes elementos acentuaram a perda da identidade étnica das populações da Guiné, em favor de uma identidade cultural nova, crioula, sobretudo urbana, não necessariamente apoiante da situação colonial prevalecente". E destaca uma figura que a historiografia ignora, Manuel António Martins, capitão de uma sumaca que fazia a ligação de Lisboa aos Açores e que se fixou como comerciante no final do século XVIII em Cabo Verde. Martins esclarece que o comércio de Bissau neste tempo tinha 400 fogos e 5 mil almas, estava na mão de comerciantes estrangeiros: “a ilha de Bissau tem dois comerciantes, e tudo mais são caixeiros de negociantes estrangeiros que para ali negoceiam, e se forem contemplados nestes números os dois primeiros não se errará muito”.

Escreverá em 1831 um relatório sobre a Guiné e sobre a forma como se deveria reorganizar a colónia. “Uma hipótese era o reforço militar com 300 a 400 homens, e a deportação de 8 mil homens das tribos de Papel (régulos e seus descendentes em redor de Bissau) para Cabo Verde. A alternativa seria a criação de uma companhia com avultado capital para o comércio com a Guiné, para substituir ao longo do rio Nunes as feitorias de diferentes nações que ali operavam, por acordo secreto com o régulo da entrada neste rio. Visionariamente, a companhia (que só veio a ter paralelo com a Casa Gouveia de 1921 em diante) sustentaria financeiramente as despesas locais, diminuindo os gastos públicos, pagando impostos sobre a exportação, que ajudariam a fazenda pública.”

Há, pois, companhias estrangeiras e autora revela que no caso da Guiné duas companhias puderam ser identificadas no Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria: a The British Caima Timber Estate Wood Company e a Compagnie de la Guinée Portugaise, de Bruxelas, fundada pelo marquês de Livery, que se propunha a atividades agrícolas e comerciais. É neste contexto que são referidos outros comerciantes, caso de António Silva Gouveia, que terá chegado a Bolama em 1879 e um conjunto de casas comerciais, que terão curta ou média existência. O Governo português compreende que tem de dar apoio a iniciativas nacionais, vão geógrafos para mapear as colónias e é neste contexto que aparecem referências à CUF, que tinha por alvo principal a compra de sementes oleaginosas e que trabalhava também com saboarias. Um elemento enviado pelo Governo para identificar o potencial agrícola e comercial da colónia, tenente Manuel César d’Oliveira irá referir o nome da CUF, esta empresa fora fundada em 1865. Importa aqui anotar que a autora falar sempre em Gouvêa, pois é este o nome que consta escrito no seu passaporte do Governo Civil de Lisboa, ele era natural de Pinhel, e aparece profissionalmente como importador-exportador.

Entra agora em cena o BNU, teve contrato em finais de novembro de 1901 para abrir na Guiné uma primeira agência em Bolama, previa-se outra em Bissau, só acontecerá em 1917. Pretendo aqui relevar um dado dos meus trabalhos quando andei no Arquivo Histórico da BNU, a documentação inicial da delegação em Bolama é praticamente inexistente, a explicação que me deram os arquivistas era de que o desempenho do BNU era efetuado pela Casa Gouveia em Bolama. Ainda guardo a expetativa de vir a folhear esta documentação…

A investigadora dá-nos o contexto de conflitos interétnicos que se vivia na Guiné desde a década de 1880, alude às concessões de terras a colonos, à exigência que a esses se vai pôr de apresentar os documentos justificativos da posse desses terrenos. Observa igualmente que, “em 1917, a administração portuguesa tinha em paz apenas o concelho de Bolama e o de Bissau, onde abriu a segunda agência do BNU na Guiné, em 1917. Tudo mais eram circunscrições militares”.

As notas bancárias chegam com o BNU, portanto. Ao princípio, houve imensos problemas, pois os comerciantes estavam habituados a fazer as transações com moedas de prata. E vem uma nota curiosa: “Em 1915, a agência de Bolama pediu à sede para adotarem cores variadas consoante os diferentes valores das notas, para tornar mais fácil o seu uso entre pessoas analfabetas.”

Se a circulação fiduciária se revelava difícil, não menos se revelou a difusão e a adoção do sistema métrico, os comerciantes usavam o palmo e a braçada como medidas para o têxtil. Mas as casas comerciais aceitaram sem nenhuma dificuldade o nome sistema de peso e medidas.

António Silva Gouveia foi eleito deputado à Câmara dos Deputados como representante da Guiné, de 1911 a 1915, e a autora observa que ele ali defendeu menores impostos sobre a exportação do amendoim, reclamou cais acostáveis para Bolama e Bissau e preços que permitissem dar sustentabilidade à economia da Guiné. Seguem-se outros dados importantes:
“Em 1921, militarmente pacificada a Guiné, a sua casa comercial A. S. Gouvêa, de comercialização de coconote, amendoim e óleo de palma, foi transformada numa sociedade. Gouvêa, nascido em 1852, morador na que é hoje a rua Victor Cordon, 19, 2.º andar, em Lisboa, e a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lda., afiliada da Companhia União Fabril, representada por Alfredo da Silva, constituíram a 19 de março de 1921 a A. S. Gouvêa, sociedade por quotas, por tempo indeterminado. Eram objetivos da sociedade a industrialização e o comércio de produtos coloniais, com exceção do negócio bancário.”

A sociedade interessava a Alfredo da Silva pelas matérias-primas. A frota da sociedade assegurava as ligações marítimas para o comércio bilateral de mercadorias e o transporte de passageiros em 3 classes de confortos e de preços, de acordo com a localização dos camarotes. O que os documentos nos dizem é que os navios da sociedade levavam para a Guiné produtos alimentares exportados pela metrópole, como azeite e azeitonas, os diferentes tipos de vinhos, batata, leite em pó e condensado, frutas e frescos e outros elementos dos hábitos alimentares portugueses, como a sardinha, o bacalhau, classificados como géneros de primeira necessidade.

(continua)


Antigo armazém da Casa Gouveia em Bolama
Casa Gouveia em Bissau
Instalações da então Casa Gouveia no Ilhéu do Rei
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

De admirar foi a imaginação do PAIGC em como transformou na perfeição a "Casa Gouveia", colonialista imperialista, com a maior facilidade nos "Armazens do Povo", socialista, marxista e estalinista.

Talvez a prática do antigo funcionário daquela casa, Luís Cabral, facilitasse aquela transformação, que durou de 1974 a 1993.

A diferença de um regime para o outro, também não era muito grande era mais ou menos um monopólio para outro monopólio.

Antes da guerra já os antigos estudantes do império reclamavam a governação das colónias, porque o fariam melhor e mais facilmente do que o colonialista.

O que não há dúvida é que a coisa tipo comunista funcionava, à porrada, mas funcionava, até que o PAIGC despachou Luís Cabral.

Também em Angola o MPLA seguia o sistema socialista, principalmente os seus generais e suas famílias, segundo uma particular interpretação.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Parabéns ao nosso "rato de bibliotecas", o Mário Beja Santos, por ter desencantado mais um precioso arquivo, o da Casa Gouveia, indispensável a quem quiser conhecer, estudar e divulgar a história da Guiné-Bissau... O interesse é de todos nós, o conhecimento não tem dono nem tem pátria... LG