Foto: © Luís Graça
1. Em mensagem de 3 de Junho de 2023, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um texto que intitulou:
O Regresso dos Soldados
Nós os homens dos vinte anos feitos ou a fazer nas décadas de 60 e 70 do século passado, sonhámos com o dia 25 de Abril de 1974, mais do que os hebreus com o dia da libertação do Egipto.
Soldados em formação ou soldados prontos, milicianos, forçados a combater em savanas, matas e bolanhas, de Angola, Moçambique e Guiné, contra a sua consciência ou sem entenderem as razões dessas batalhas, a defenderem territórios habitados por africanos, gentes de outras cores, outras raças, de outras crenças e colonos brancos, tão longe das suas aldeias, dos seus bairros, das suas vilas e cidades, nessa África quente e desconhecida, que a alguns matavam e a outros feriam no corpo e na alma.
Muita da alegria de viver, que ficou por lá, entre sonhos e pesadelos de juventude perdida, os ex-combatentes procuram hoje recuperá-la, em convívios e almoços, em conversas longas só entre eles, sobre picadas, emboscadas, ataques, balas, rebentamentos, colunas, bajudas, homens grandes, mortos e feridos para libertarem o espírito e ganharem alento para fazerem a última caminhada com dignidade. Com o clarão das bombas ao rebentar, o cheiro da pólvora, o matraquear das espingardas e das metralhadoras todos transportam o desgosto imenso dos anos perdidos da juventude, quando outros da sua idade, os mais infelizes, perdiam a saúde e a vida, imolados no altar da Pátria, que nunca reconheceu o seu sacrifício supremo. Todos os que sobreviveram transportam a raiva pelo esquecimento a que foram votados pela sociedade civil e pelos governos depois da ditadura, os feridos e mortos em combate, que heróis ou não, foram seus amigos e seus irmãos, como se a Nação ao condenar o ditador e as suas políticas coloniais, devesse também condenar os ex-combatentes que foram forçados a fazer a guerra colonial.
Fomos nós que fechamos o ciclo penoso dos descobrimentos e da expansão marítima, que os gloriosos marinheiros portugueses iniciaram no século XV, com a morte de muitos por tempestades nos mares que destruíam as frágeis caravelas, pela fome, pelo escorbuto, doença terrível, por incursões em sítios onde aportavam. Entre nós, os últimos soldados do Império e os soldados e marinheiros lançados a desbravar caminhos dos mares de terras distantes, muitos outros soldados se sacrificaram até à morte, nos séculos que medeiam, a tentar dominar revoltas de reinos e tribos indígenas e na Primeira Guerra Mundial, contra grandes potências colonizadoras. O Velho do Restelo, a consciência crítica dos Lusíadas, por muitos interpretado como a consciência de Luís de Camões alertava para todas as desgraças e horrores que iriam acontecer, que nada de bom trariam a Portugal.
Ao reflectir sobre o meu passado procuro interpretar os pensamentos e sentimentos da minha geração e tentar desfazer o novelo, da teia de incompreensão, com que fomos recebidos, como se tivéssemos que corrigir todos os erros da nossa História antiga e recente.
"Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inacção". "Tenho mais sono íntimo do que cabe em mim. E não quero nada, não prefiro nada , não há nada a que fugir".
Bernardo Soares, do "Livro do Desassossego".
Somos o princípio e o fim de uma ilusão que se esvai num curto espaço, a que se chama vida.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 4 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24365: (In)citações (245): "Pequena conversa com a Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)
4 comentários:
Um grito contra o marasmo e a apatia intelectual da classe política que tem dirigido o país.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela
"...sonhámos com o dia 25 de Abril de 1974, mais do que os hebreus com o dia da libertação do Egipto."
E a nossa mãe à espera de lágrimas nos olhos, de braços abertos e com gritos de alegria 'anda cá meu filho', como que chegássemos à terra prometida.
Francisco Baptista não é nenhum outro ou sequer diferente de nós, andou na guerra da Guiné connosco e escreve este belo texto para nos exaltar ao esquecimento da história.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Francisco, os judeus ainda hoje sonham com a terra prometida. A nós, a ninguém nos prometeu nada. O Amílcar Cabral, sim, prometeu. E hoje a Guiné e Cabo Verde são independentes. Mas os combatentes de um lado e lado outro são como todos os combatentes de todas as guerras, para usar e deitar fora...
Francisco
Como acho que já te disse, os teus escritos revelam uma profundidade dos sentimentos e preocupações que te povoam a mente.
Consigo (digo eu!) perceber a essência transmontana que emana das linhas escritas e gosto disso.
Abraço
Hélder Sousa
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