quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24949: Historiografia da presença portuguesa em África (398): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Digamos que esta história do comerciante francês em Orango tem um final feliz para quem julgava que lhe ia acontecer o pior, o que penso ser bastante útil, repito, é termos aqui um testemunho de como no exato momento em que a Guiné se autonomizava de Cabo Verde a nossa presença no arquipélago dos Bijagós nem chegava a ser discreta, isto fora de Bolama, o presidente dos Estados Unidos resolver a nosso contento o diferendo com a Grã-Bretanha quanto à posse da ilha, aí fazia-se imenso comércio e havia ligações com as feitorias do Rio Grande de Buba. Há aqui acontecimentos de caráter antropológico, como as práticas de Justiça baseadas em feitiçaria e superstição e ouvindo nós relatos que afinal se revelam não comprovados de matriarcado, temos aqui um rei déspota. Como é evidente, este mundo aqui descrito deverá ter-se mantido pelo menos até à ocupação efetiva de todas as ilhas dos Bijagós, o que aconteceu em 1936.

Um abraço do
Mário



Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (3)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de "Viagem ao Arquipélago dos Bijagós", por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Maximin Astrié é convidado a avaliar as potencialidades económicas dos Bijagós, aceita e entende começar a sua viagem de reconhecimento pela ilha de Orango. Chega, o déspota local manda fazer um sacrifício sobre a conveniência de tal relacionamento, é degolado um galo, ele afasta-se do visitante antes de sucumbir, o régulo manda prender Maximin, este percorre as florestas que o deslumbram, assiste a um julgamento depois da morte de um homem acometido da doença do sono, num contexto de feitiçaria e pura superstição a mulher do morto é considerada culpada, foi levada para a prisão, metida num buraco, onde seguramente morrerá ruída pela febre e pela fome.

Estamos agora na parte final da narrativa, Maximin irá tomar conhecimento do que o régulo Oumpané guarda nos seus armazéns, tinham decorridos seis dias desde a sua chegada à ilha, tinham sido dias preenchidos com excursões na floresta e conversa com os indígenas, o comerciante não escondia a sua preocupação em saber como ia terminar aquela odisseia, se sairia dela com vida, assim começa o relato na primeira pessoa do singular.

Um dia, Oumpané ordenou ao ministro da Justiça para me pedir alguns galões de aguardente. A ocasião pareceu-me a ideal para lançar as bases de um tratado amigável e comercial com o rei. Dirigi-me à sua residência acompanhado do meu intérprete e falei-lhe nestes termos após o ter informado que lhe oferecera os últimos galões de aguardente:
“Vim a estas terras para comerciar contigo os produtos da ilha de Orango, dando guinéus, tabaco e aguardente. Até agora não me falaste das tuas intensões nem quais os produtos que eu podia comprar. Dei-te toda a minha aguardente e se tu desejas mais é necessário que autorizes ir abastecer-me junto dos brancos de Bolama. Trarei nessa altura todas as mercadorias que me peças.”

Oumpané ficou uns minutos sem responder; depois, pareceu ter tomado uma resolução. Levantou-se, tirou de um cofre um maço de cavilhas de caju de pontas encurvadas e fez-me sinal para o seguir. Atravessámos a povoação em todo o seu comprimento e ficámos diante de uma casa que estava fechada. O rei introduziu uma dessas cavilhas, abriu-se a porta e vi que estávamos num vasto armazém cheio de amêndoas de palma, que avaliei em 10 mil francos. O rei, cheio de orgulho, mostrou-me uma enorme quantidade de curtumes cuidadosamente empilhados. Nos depósitos seguintes, vi também milhares de esteiras, muita borracha, arroz, milho-miúdo, amendoim; num outro espaço, e confesso que fiquei verdadeiramente estupefacto dei com peças de navios, tais como velas, âncoras, vergas, cordame de todas as dimensões, barómetros, pêndulos, até a fotografia do capitão inglês John Peens, em corpo inteiro. Ora este capitão desaparecera 15 anos antes, pensava-se que tinha naufragado nas costas do Gabão. O rei parecia admirado com a atenção que eu dedicava ao exame desta fotografia. Fechou a porta e levou-me a um novo depósito onde estavam classificadas peças de vestuário, fuzis e sabres. Vi também numa prateleira capacetes, chapéus altos, quépis e um soberbo uniforme de oficial da Marinha. O ministro da Justiça informou o meu intérprete que os objetos guardados neste último depósito eram os preferidos do rei. Segundo usos e costumes de Orango, seria este uniforme o que o rei usaria no seu funeral.

Após esta última visita o rei conduziu-me à sua casa, sentámo-nos e mostrou-me uma peça de carpintaria onde estavam vários deuses. E disse-me: “As mercadorias que viste nos depósitos e que são produtos nossos, estou pronto a vendê-las. Vou, pois, autorizar-te a regressar a Bolama para procurares aguardente, tabaco, guinéus, fuzis e metralhadoras, sobretudo metralhadoras, isto na condição de que os deuses te sejam favoráveis. Guardarei aqui até ao teu regresso as mercadorias que já trouxeste. A tua chalupa está na enseada há já algum tempo. Vais encontrá-la repleta de amendoim que levarás para Bolama.” Dito isto, virou-me as costas, o que me fez pensar que a audiência terminara.

Dirigia-me para a porta quando os ministros vieram prevenir-me que ia ter lugar um novo sacrifício aos deuses. Temi que a prova me fosse novamente desfavorável, procurei corromper o sacerdote oferecendo-lhe 10 jardas de tecido de algodão e 50 folhas de tabaco que Samba Salla foi rapidamente buscar às provisões que restavam. Desta vez o galo degolado veio cair aos meus pés, o povo não escondia o seu contentamento e o rei ofereceu-me 22 porcos e 1 boi.

Qual não foi a minha deceção quando verifiquei que todo o amendoim que encontrei na chalupa estava avariado. O que ele me dava valia apenas 600 francos, eu perdera 1200. A operação não era brilhante! Veio-me então uma ideia cuja execução teria alguns meses mais tarde terríveis consequências. Ordenei a Samba Salla que reunisse imediatamente toda a gente da minha equipagem. “Meus amigos, disse-lhes, o rei quer obrigar-me a abandonar todas as minhas mercadorias. Em troca, dá-me 22 porcos, 1 boi e um carregamento de amendoim sem valor. Não podendo resistir-lhe pela força, quero pregar-lhe uma partida. Vamos aos depósitos dele e vocês executam rapidamente as ordens que vos irei dar.”

Regressámos à povoação e esvaziámos todas as caixas que me pertenciam. Tinha agora a minha vingança!

Os porcos e o boi já tinham embarcado e no último momento o reio quis juntar aos presentes uma magnífica tartaruga com 1 metro de diâmetro e cerca de 50 esteiras. Como eu lhe tivesse agradecido calorosamente estes novos presentes, o rei pediu-me que lhe oferecesse o meu revólver. Retirei as balas e entreguei-lhe a arma. A brisa era-nos favorável, estava tudo pronto para a partida. Oumpané teve a deferência de me acompanhar à chalupa não sem ter deitado uma olhadela às caixas que eu lhe deixava.

Temendo que a substituição fosse rapidamente descoberta, apressei o embarque, levantou-se a âncora, acenei um adeus ao rei e partimos imediatamente.

Não era sem tempo. Ouviam-se gritos na povoação, vi uma multidão a correr à praia, à frente vinham os ministros. Tendo descoberto que tinha sido ludibriado o rei lançava autênticos urros, apontou-nos o revolver, puxou em vão pelo gatilho.

Pusemo-nos ao largo, o vento soprava de feição, os bijagós que se tinham lançado à água para nos prender cedo perceberam que era inútil a perseguição. Felizmente que tudo acabou bem para nós.

Aqui finda o relato de Maximin Astrié.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, n.º 10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Escultura bijagó
Máscara bijagó, Museu Nacional de Etnologia, com a devida vénia
Rapaz bijagó em cerimónia de iniciação

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24924: Historiografia da presença portuguesa em África (397): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (2) (Mário Beja Santos)

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