Queridos amigos,
Foi uma surpresa, numa memória destinada a uma exposição internacional, o oficial médico João Barreto, autor da única História da Guiné na área da Saúde, redige um curto ensaio sobre a climatologia e nosografia (classificação das doenças) na Província da Guiné, num impressionante desacordo do que redigiu, por exemplo, no seu relatório apresentado em 1927 à direção dos Serviços de Saúde e Higiene, houvera uma missão para averiguar se a doença do sono existia ou não entre as populações indígenas da colónia, e ao mesmo tempo proceder a inquéritos sobre outras doenças, tendo concluído que na circunscrição de Buba a doença do sono existia de uma forma endémica, a extensão da tripanossomíase era enorme, havia casos de lepra em Bolama, como de elefantíases, ora o que o leitor tem pela frente nesta memória é uma imagem tranquilizadora e de uma quase inexistência de doenças, estamos a falar do mesmo médico no referido relatório apresentado em 1927, propõe a criação de uma brigada médica com caráter permanente, de forma indispensável a erradicar a tripanossomíase. Fica-se com a ideia que o Dr. João Barreto, por iniciativa própria ou a pedido, resolveu uma imagem altamente positiva da profilaxia, do sistema de vacinação e do bom funcionamento dos serviços. Felizmente que está escrito o contraditório...
Um abraço do
Mário
João Vicente Sant’Ana Barreto, e o estado da Saúde na Guiné, vai para um século
Mário Beja Santos
No mesmo ano em que Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro publica o anuário da Guiné de 1925, é dado à estampa uma memória da sua responsabilidade destinada à Exposição Colonial Interaliada de Paris. É no âmbito dessa publicação que aparece um texto da responsabilidade de João Vicente Santana Barreto, oficial médico, diretor do Laboratório de Análises do hospital civil e militar de Bolama. A sua intervenção intitula-se Climatologia e Nosografia. Começa por referir que a província apresenta os característicos dos climas tropicais, a média da temperatura atmosférica, à sombra, em mês algum é inferior a 20º C; não há altitudes ou ocidentes geográficos notáveis; do ponto de vista térmico podem distinguir-se na Guiné uma zona marítima, compreendendo o arquipélago dos Bijagós, a qual se faz sentir a ação moderada do oceano, e uma zona continental em que a média de temperaturas máximas é mais elevada, assim como a diferença entre estas e as mínimas. Dá conta do funcionamento do observatório meteorológico de Bolama, dirigido por um oficial da Marinha, o resumo das observações é publicado no mapa mensal no Boletim Oficial da Colónia; alude seguidamente às duas épocas bem distintas (seca e chuvas), tece observações sobre a temperatura atmosférica e as chuvas, é com base nestes elementos que elencas as seguintes considerações:
“Podemos concluir que esta Província não tem condições muito favoráveis para aclimatação e fixação definitiva do elemento europeu, mas nada há que obste a sua permanência mais ou menos prolongada nesta colónia, quer como funcionário quer como colono, sobretudo depois dos melhoramentos sanitários introduzidos nos últimos anos e com uma compreensão mais nítida dos deveres da profilaxia individual.
Verifica-se que não existe na Guiné muitas das endemias que em geral se encontram nas regiões tropicais. Os principais factores que se opõem à fácil aclimatação do europeu nesta colónia são o elevado grau de temperatura e humidade atmosférica e o paludismo endémico.
É evidente que um individuo da raça branca adaptado ao clima temperado ou frio e transportado para um meio em que raras vezes o termómetro chega a 22º C, não pode deixar de manifestar sinais de anemia e debilidade nervosa, que se traduzem por uma rápida diminuição da atividade funcional e das faculdades de trabalho.
É o paludismo a doença que mais de perto interessa o imigrante europeu. Felizmente a luta contra esta endemia é relativamente fácil na Guiné, porque a grande parte da sua população, que é indígena, conserva-se totalmente indemne às febres palustres. A malária domina entre os imigrantes estranhos à colónia, os europeus, os cabo-verdianos e em especial entre as crianças mestiças. São essas crianças o principal reservatório do hematozoário que nelas se desenvolve admiravelmente, favorecido pela ausência da higiene e profilaxia antipalustre e ainda pela falta de tratamento convenientemente dirigido. Sob o ponto de vista restrito da malária, as crianças mulatas são o reservatório permanente do parasita que o Anófeles vai buscar para o inocular nos imigrantes.” E refere as medidas especiais para combater a endemia palustre, enunciado os diplomas.
E repertoria as principais doenças existentes na Guiné: varíola - não é endémica, só aparece sob a forma de pequenas epidemias localizadas a uma ou mais tabancas (o indígena aceita a vacinação preventiva sem relutância); peste - não é nem nunca foi endémica, em 1921 esta doença foi importada do Senegal e localizou-se na vila de Cacheu, a partir dessa data até hoje não se encontraram quaisquer indícios da doença, quer no homem quer nos animais; cólera - não consta ter havidos casos dessa doença; febre amarela - o vómito negro não é nem foi endémico nesta província; lepra – existem algumas dezenas de indígenas portadores da doença; elefantíase - encontram-se exemplos notáveis de portadores dessa enfermidade entre os Manjacos da Costa de Baixo e regiões vizinhas, fora das quais é mais raro encontrarem-se casos em número apreciável; tripanossomíase - não consta ter-se verificado a existência da doença do sono, quer pela observação clínica, quer pelos exames laboratoriais; parasitas intestinais - além das vulgares lombrigas, encontram-se amibas disentéricas; febres tifoides e paratifoides - nas estatísticas nosológicas da Guiné encontram-se um ou dois casos de febres tifoides, mas é fácil verificar que se trata de doentes importados, casos autóctones de febres paratifoides só se registaram três, em 1921, na vila de Cacheu.
“De tudo isto é lícito concluir que a malignidade do clima da Guiné é uma lenda que tende a desfazer-se com o conhecimento mais exato da verdadeira situação da colónia.”
Bissau - Residência do Governador na Fortaleza
Bafatá, utensílios fabricados por indígenas
Bafatá - Rua principal
Bissau - Fábrica de cerâmica
Cacheu - O antigo Forte
_____________Nota do editor
Último post da série de 3 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25711: Historiografia da presença portuguesa em África (430): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (2) (Mário Beja Santos)
4 comentários:
No "Memória da Província da Guiné" aparece uma fotografia de Bafatá vendo-se já construído o interessante edifício da Casa Gouveia, que muitos de nós conhecemos, e sabemos que "...A malária domina entre os imigrantes estranhos à colónia..."
Em 1925 era a Província da Guiné, mas com imigrantes à colónia..!!
Valdemar Queiroz
A má imagem do clima da Guiné Bissau, que seria mau para brancos, era mesmo muito errada.
Até parece que alguem pretendia reforçar essa ideia para afastar a invasão de brancos.
Seria também o Salazar, para ninguém cobiçar aquilo, como também escondia o mar de petróleo qua havia sob a cidade de Luanda?
Ou os próprios caboverdeanos, que no fundo tinham há séculos o sonho de Amílcar Cabral?
Afinal tudo se deu lá muito bem depois da independência, e houve mesmo a invasão de todos os brancos e até chineses sul-americanos.
Se não vejamos, desde Russos e Suecos e outros nórdicos, italianos e jugoslavos, alemães dos dois lados e professores portugueses...tudo se deu lá muito bem, qual paludismo qual mosca do sono.
Só quem não se dá muito bem por lá, parece ser da parte de muitos jovens guineenses, mas isso acontece talvez por contágio com os paises vizinhos.
Antº. Rosinha, em 1925 devia ser complicado aguentar aquele clima com a pouca existência de cuidados de saúde, para quem não fosse da "terra".
Não conheço estatísticas, mas devia ter sido elevado os ataques de paludismo na rapaziada da tropa, que não fora o tratamento com o "quinino" haveria baixas assinaláveis. Eu tive paludismo e fiquei com menos uns quilos depois de ter aguentado quase 40º de febre e cheio de frio durante três dias.
Valdemar Queiroz
Valdemar, todos os climas tropicais de África tinham os mesmos problemas.
Talvez os subtropicais tivessem menos problemas, por exemplo um pouco o sul de Angola ou o sul de Moçambique, houvesse menos queixas.
Mas que se exagerava no caso da Guiné era claríssimo que havia essa imagem de péssimo clima.
Quando em Luanda, era pulverizada duas ou três vezes por ano, ruas, quintais, portas e janelas abertas, com carros de bombeiros, com produtos anti-mosquitos, para combater a malária (paludismo), mas mesmo assim era constantemente gente contaminada, não me constou que em Bissau houvesse tanta preocupação.
Ainda nos anos 60 havia uma equipa médica da mosca do sono no sudeste de Angola.
A terra de Amílcar Cabral só lhe faltavam grandes praias, o clima era igual aos outros
climas tropicais e as doenças as mesmas.
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