quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25870: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte III (Reclamação apresentada, em 1935, ao Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, Bolama)

 







Guiné > Bolama > 1935 > Repartição Central dos Serviços de Administração Civil - 4ª secção: Negócios Indígenas. Informação: Assunto - Refere-se ao pedido de restituição da importância proveniente da licença para extração de vinho de palma, que julga ter sido cobrada ilegalmente aos índígenas,  colonos da sua propriedade. Informação, datada de Bolama, 27 de julho de 1935. Assinatura ilegível.

Citação:(1935-1935), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10429.230 (2024-8-20)


1. Não percebo nada de direito administrativo colonial... Nem sequer alguma vez li o Acto Colonial de 1933 (mas hoje tive que o ler, está aqui disponível em formato pdf, no sítio da Assembleia da República). O artº 3º é taxativo: "Os domínios ultramarinos de Portugal denoninam-se colónias e constituem o Império Colonial Português". 

O Pacto Colonial (Decreto-Lei nº 22 465, de 22 de abril de 1933) tem apenas 47 artigos. Retive estes:



A leitura do Pacto Colonial deve ser complementada pela da Carta Orgânica do Império Colonial Português.

Segundo entrada na Wikipedia, "o Acto Colonial definiu durante muito tempo o conceito ultramarino português, tendo sido revogado na revisão da Constituição portuguesa feita em 1951, que o modificou e integrou no texto da Constituição.

"Com a revisão constitucional de 1951, a visão imperalista foi teoricamente abandonada, sendo substituída por uma estratégia que visava a assimilação civilizadora das colónias à metrópole, com o objectivo final de criar uma nova ordem política, que podia ser a integração total, autonomia, federação, confederação, etc. Reflectindo esta nova visão teórica, as colónias passaram a designar-se por 'províncias ultramarinas' ".

2. Em 1935, o Manuel de Pinho Brandão já estava na colónia da Guiné, como se infere da reclamação que ele apresentou ao Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, com sede  em Bolama.

Na reclamação,que já reproduzimos em poste anterior (*), ficamos a saber que:

 (i) o Manuel de Pinho Brandão era maior, solteiro, proprietário e comerciante, residente em Bolama (então a capital); 

(ii) era dono e senhor de uma propriedade rústica denominado "Belém", na área da circunscrição civil de Fulacunda,  região de Quínara, exercendo legítima e legalmente o comércio com os indígenas da propriedade, a quem concedia regalias na agricultura e exploração dentro dela;

(iii) o reclamente insurge-se contra a cobrança de imposto de extração de vinho de palma ("licença de furação") a indígenas manjacos, que ele trouxera consigo há vários anos atrás, e  que, com a sua autorização, praticavam esta atividade na sua propriedade para consumo exclusivamente próprio;

(iv) o administrador de Fulacunda mandou-lhes cobrar, indevidamente, o imposto na importância de 760$00 (talvez mais de 500 euros, a preços de hoje):

(v) além disso, terá usado e abusado da sua autoridade, mandando prender e conduzir ao posto de Empada aqueles indígenas;

(vi) pede. por fim, que sejam "restituídos aos indígenas interessados os escudos 760$00 para o bom nome das autoridades administrativas e para o bem geral da colónia" (sic).


3. Um funcionário da 4ª secção (Negócios Indígenas) da Repartição Central  dos Serviços de Administração Civil, dá um parecer em que arrasa o administrador de Fulacunda: a comprovarem-se os factos alegados pelo requerente, o administrador de Fulacunda (na altura teria violado a lei (Código Civil, artºs. 2167 e 2187; Carta Orgânica do Império Colonial Português, artºs.231, 232 e 233).

Era chefe da Repartição José Peixoto Ponces de Carvalho. E o administrador de Fulacunda era o Ernesto Lima Wahnon (cuja resposta ao chefe da repartição publicaremos em próximo poste.)

PS - O Ernesto Lima Wahnon terá nascido na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1895.

__________________

Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 21 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25863: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte II (J. L. Mendes Gomes / Victor Condeço, 1943-2010)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

Quem ler, hoje, estes artigos do Pacto Colonial de 1933, acha esquisito as Províncias Ultramarinas do Portugal do Minho a Timor.
E até pode pensar como seria, também, na Província do Ribatejo.

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Caros amigos,

Por acaso ja sabia da existencia em tempos do chamado 'Pacto Colonial', mas nunca tinha lido o seu conteudo e confesso que fiquei um pouco surpreendido com o avanco, no papel, sobre os direitos e as propostas de protecao pelo estado dos indigenas das novas "Provincias ultramarinas". Do pouco que ja conhecia consistia em textos criticos sobre a lei escritos por Amilcar Cabral nos anos 60/70, para se referir a toda a extensao do que chamava de hipocrisia colonial para enganar as populacoes sob a sua administracao. Hoje todos sabemos que era uma transformacao impossivel dentro de um regime que continuava fascista e opressor em todos os sentidos, porque senao as guerras coloniais que se seguiram nao teriam tido razoes para acontecer, porque os pretos, tambem, pensam com as suas cabecas e sabem avaliar e escolher entre o bem e o mal.

Um abraco amigo,

Cherno Balde

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Temos que entender isto à luz do contexto da época em que o domínio de povos sobre outros, a pretexto de os "civilizar" , era moeda corrente, a começar pela maior potência mundial da época, a Grã-Bretanha, em cujo império o sol nunca se punha...

O que eu acho "piada" é a "licença de furação": o zé indígena não podia fazer concorrência "desleal" à "água de Lisboa" (o vinho)...E quem aplicava os impostos, a começar pelo de palhota ? Cabo-verdianos como o administrador de Fulacunda, Ernesto Lima Wahnon...

Um destes Wahnon foi comandante do Pel Caç Nat 52, a seguir ao Beja Santos... O Nelson Wahnon Reis, o periquito do Mário Beja Santos, nem sequer me lembro dele, em Bambadinca, onde fiquei mais um ano depois do Beja Santos: esteve lá pouco tempo, parece que não terá sido bem recebido pelos guineenses (fulas e mandingas) do Pel Caç Nat 52... Não foi caso virgem...

Em suma, o odioso da administração colonial na Guiné recaía sobre o pessoal cabo-verdiano que eram os administradores e chefes de posto... É sempre assim, quem paga a faena são os peões de brega...Além dos "cipaios" (polícia administrativa), em geral fulas... O Amílcar Cabral nunca percebeu (ou não quis perceber) estas contradições... É evidente que o sistema tinha um "rosto"... Mas com isto não alimentemos, por favor, o racismo!...

Cherno disse...

Caro Luis Graça,

O Amilcar percebia muito bem as diferentes situações, simplesmente, sendo ele mesmo CV, era mais facil apontar o dedo aos fulas e fazer deles os bodes expiatórios de todas as maldades do regime, facto que depois culminou no fuzilamento de todos chefes tradicionais e no ostracismo dos mesmos vis-a-vis dos outros grupos e das instituições do estado em geral.

Cherno AB

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A guerra na Guiné, em 1961/74, foi também uma "guerra civil": a conjuntura internacional da época, o contexto histórico, os "ventos da história", a situação político-militar em Portugal, mas também a habilidade diplomática do PAIGC (em boa verdade, do Amílcar Cabral)... fizeram pender o fiel da balança para a força que estava política e militarmente organizada, mas que estava longe de ter legitimidade para poder representar todos os guineenses... Os fulas, os manjacos, os felupes e outros grupos étnicos, que se opuseram ao projeto "libertador", "anticolonialista", do PAIGC, foram incapazes de se organizar como alternativa, com lideranças fortes e projetos para o futuro...E o mesmo se podia falar de Cabo Verde, onde nem sequer houve "luta armada"...

Antº Rosinha disse...

Amilcar, Marcelino dos Santos e Neto, a 1 de julho de 1970, são abençoados pelo Papa, como já tinham a benção da ONU, nenhum partido mais tinha tanta capacidade para mobilizar o mundo inteiro como estes três.

E talvez Amilcar tivesse assistido por mais uns anos, se tivesse feito o que fez Marcelino dos Santos, ficar a conduzir, mas num segundo plano, e como em Angola, Neto ficou com o seu padrinho Lúcio Lara a tapar lhe as costas e este sempre a rejeitar em aparecer.

Isto para explicar que foi naquela data que acabaram todas as dúvidas de quem ia ganhar aquela luta, que mais do que contra o colonialismo português, era evitar uma luta tribal que ia fazer desaparecer aquelas fronteiras.

Houve ali uma luta daqueles "portugueses de 2ª", até para salvar a sua própria existência, e tinha que ser o seu movimento a vencer, mesmo a ferro e fogo, embora com a benção internacional, tudo descomplicava.

Na Guiné, liquidar os fulas e régulos, em Angola 28 anos de guerra tribal, e em Moçambique nem daqui a 100 anos acertam o passo.

Mas que para toda a Àfrica a descolonização europeia ia ser tão má como a colonização, isso os guineenses e angolanos e moçambicanos, sabiam perfeitamente.

Por isso reagiam, conscientemente.