terça-feira, 8 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26021: (De) Caras (222): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Se é verdade que o tenente Barbieri, na primeira carta aqui publicada, nos dá conta de uma desastrada operação que ocorreu na Península do Sambuiá, obrigando-nos a refletir como todos nós fomos impelidos a viver desaires militares pelo desenho de operações que desconhecia cabalmente o terreno, esta carta do alferes Pedro Barros e Silva é um documento significativo para se ver como em 1966, e seguramente que ele estava altamente informado pelos dados que aqui apresenta, já havia quem, lucidamente, antevia um final pouco feliz para a nossa presença na Guiné, o PAIGC, por este tempo, já dispunha inequivocamente de um armamento no terreno muito superior ao nosso. Ainda vou bater à porta da minha fornecedora para ver se, por bambúrrio da sorte, ainda se possam encontrar mais correspondência deste alferes que devia ter acesso às mais cotadas informações militares, e não só.

Um abraço do
Mário


Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4)

Mário Beja Santos

Nota explicativa: tratando-se da segunda parte da carta dirigida em 17 de agosto de 1966 ao alferes Pedro Barros e Silva do seu amigo Paulo António, em Lisboa, convém alertar o leitor que tem tudo a ganhar em ler o texto anterior, lendo e relendo o que o militar enviou para Lisboa já não duvido tratar-se, deste pequeno acervo que adquiri recentemente na Feira da Ladra, de um significativo documento que pode e dever ser orientado para investigadores. 

O alferes Barros e Silva começa a refletir-se sobre como se processou a colonização na Guiné, se as mudanças em curso, perpetradas pelas autoridades portuguesas, chegam ao bom porto, ele está profundamente cético; destaca seguidamente a atividade do PAIGC, aí não tem dúvidas que será na Guiné que se irá definir o futuro do Estado Novo (recorde-se que a carta é escrita em 1966).

É precisamente aqui que ele continua:

“E comparado com a porrada que aqui vai haver e até talvez com a que já há, as lutas de Angola e de Moçambique hão-de parecer infantis guerras de índios e cowboys. O terreno e as populações, e a situação geográfica aliados às estratégias em luta, a intensificação da propaganda IN, a ocupação efectiva de vastas regiões e consequente organização político-administrativa, o aumento da capacidade de combate (armamento, instrução, efectivos, etc.) e o crescente número de russos e cubanos que lutam nas fileiras do IN. Eis alguns indícios cuja análise nos fornece uma desagradável conclusão.

O terreno não é mau nem bom, é simplesmente impróprio para efectuar acção com motorizados. Assim, restam a artilharia e a aviação por um lado, a infantaria por outro. Deste modo, tem de morrer muita gente para os desalojar.

As populações são turras e nós quando as não chateamos não as controlamos, quando as chateamos, elas cavam e vão para as praças-fortes do IN, contribuindo assim para o engrossamento das fileiras deste.

Das estratégias e situação geográfica já falámos. Passamos agora à propaganda.

Há mais de um mês que o IN nos dedica quase diariamente um programa. O convite à deserção é apresentado como algo de aceitável e até de louvável; isto misturado com algumas deserções extraordinárias do vice-chefe da segurança e de outros. 

Insiste-se sobre a situação desesperada em que nos batemos, tudo por causa dos miseráveis capitalistas exploradores do povo, etc., do que o povo português não tem culpa nenhuma. E aqui entram no baile as Frentes Patrióticas com os seus folhetins tais como o ‘Passa Palavra’ e outros, fazendo ver aos compatriotas que somos uns malandros se andarmos a matar os nossos queridos irmãos de cor. E tudo por causa dos fascistas alemães que dão armamento aos salazaristas a troco do santo território pátrio. Estás a ver o género.

Até que ponto estas lengalengas influem no moral do soldado, não sei em absoluto. Mas parece-me que o soldado nem as ouve. Para ele a propaganda adequada é outra.

Como já escrevi por aí, o IN ocupa além do Oio, o Cantanhez, o Quitafine e o Como. São verdadeiras praças-fortes dotadas de abrigos contra ataques aéreos, etc.

Outras regiões foram organizadas política e administrativamente na base de grupos, subsecções e secções. Mas organização em terra de preto é como manteiga em nariz de cão. O mais importante é o poderio militar do IN nestas regiões.

As secções do Exército Popular encontram-se fardadas, treinadas e armadas até aos dentes. E, para ajudar à festa, temos os russos e os cubanos (estes, pelo menos, já têm levado umas coças bastante razoáveis). Pensa-se que dentre em pouco estarão na Guiné mil ou mais cubanos.

O material que o IN possuiu é o que de há de melhor pelos sítios. Só lhes falta aviação e marinha. De resto, postos-rádio, antiaéreas quádruplas, canhões sem recuo de infantaria (fala-se em obuses), bazucas, rockets, morteiros de 61, 82 e até talvez de 120, metralhadoras de todos os tipos e feitios, automáticas a dar com pau, enfim, estão mais bem armados que cá a rapaziada.

A missiva já vai longe. Não era minha intenção massacrar-te com este cumprimento salazarento. Antes de acabar ainda te quero falar sobre as tais prisões e das consequências que delas advieram. Não era segredo para ninguém que muitos dos ocupantes de cargos administrativos estavam à espera de serem ministros. Como o Governo salazarista não os satisfazia, resolverem oferecer os seus préstimos à outra equipa. Neste caso, ao contrário do que acontece com o futebol (lá se foi a Comunidade Luso-Brasileira) quem pagou as luvas foram os jogadores. 

Assim, em Bissau até havia o futuro Presidente da República (abastado comerciante, explorador das carreiras navais para o interior da província e, portanto, da tropa, suspeito de tráfico de armas, dono dos barcos que em 1963 se enganaram na rota e foram mais para o Sul), ministros em profusão nas pessoas-vice-presidente da Câmara, de um vogal no conselho administrativo e até de um modesto alfaiate do Batalhão de Intendência. Todas estas prisões e outras de menos importância tiveram por base o célebre atentado de Farim de que falei na altura.

Ora quando a gente lhes buliu,  os homens grandes de Bissau, os turras muito logicamente decidiram meter um cagaço aos rapazes de Bissau. Assim, deslocaram uns mil ou 2 mil mânfios para a região Nhacra – Mansoa (Balantas, quase todos turras). Este tem-se entretido a chatear a rapaziada. 

Os Comandos ficaram à nora, mandaram as mulheres e as crianças para a metrópole, e de vez em quando lançam tremendos alarmes gerais por toda a cidade. Muito construtivo.

Entretanto, o batalhão de Mansoa tremeu, tremeu e disse: não posso mais. Então, os avisados homens grandes das estrelas decidiram reforçá-lo com unidades vindas do Norte.

Os negros, servos do diabo, agora entretêm-se no Norte a cortar estradas com valas e abatises (o que não acontecia há 2 anos).

Bem, não te quero maçar mais apesar de haver muito mais para dizer.

Um grande abraço do amigo,
Pedro

P.S – lê o artigo de Raymond Cartier no Diário de Notícias de 5 de agosto"

Distribuição do correio, imagem registada na RTP no Natal de 1966, Guiné

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

O alferes Pedro Barros e Silva, em 1966, faltavam-lhe dois postos militares para ser capitão (de Abril).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Entre os anos de 1961 e 1962, surgiriam en Portugal dois movimentos de extrema direita, antisalazarista: (i) a Jovem Europa (JE) e Frente de Estudantes Nacionalista (GEN), respetivamente.

(...) "Para a FNE, era imperioso realçar o privilégio que Portugal assumiu no cruzamento entre a Europa e África, desmascarando um antieuropeísmo que surgia associado ao bipolarismo EUA/URSS, tal como o domínio afro-asiático da ONU.

"Com os massacres perpetrados pela UPA, no Norte de Angola em 1961, estava criado um
propósito para o surgimento da Jovem Europa."(...)

Segundo o investigador, doutor em História pela Universidade NOVA de Lisboa, Tiago Rego Ramalho, o Paulo Osório de Castro Barbieri, destinatário desta correspondência (poste P26021) terá pertencido à JE:

(...) "Nas fileiras do JE contam-se nomes como: Caimoto Duarte, Joaquim Aguiar, Paulo Osório de Castro Barbieri ou Fernando Malheiro Dias; quando à FEN, detinha figuras como: Nuno Lousada, Jorge Moreira, Norman Mascarenhas ou Vasco Meireles." (...)

Pelo teor das cartas, o alf mil Pedro Barros e Silva deveria situar-se também, n a época, neste quadrante político-ideológico, tal como o irmão do Paulo, o Nuno Barbieri, hoje capitão-de-mar-e-guerra, reformado.

Excerto do artigo:

(...) "O discurso de um Portugal orgânico, integracionista, unitário, multirracial,
pluricontinental ou imperialista, incorporou-se inteiramente na alma do Estado Novo. O
nacionalismo autoritário e conservador do Regime era indissociável de uma atenção
pormenorizada à questão imperial ou colonial. O legado do passado deveria de ser purificado no presente e preservado para o futuro. Apenas nos anos derradeiros do Regime, com Marcello Caetano a Presidente do Conselho, o discurso e as políticas perderiam a sua firmeza e o seu rigor histórico. O que importa esclarecer é que a mística imperial e o Império como fundamento da ação política não foram exclusividade de uma certa direita salazarista, tendo-se estendido a sectores que se posicionavam, afirmando-o abertamente, à direita do nacionalismo autoritário de Salazar. A defesa do Império impulsionou a ascensão da extrema-direita no espectro político nacional, que manifestava imensas desavenças críticas ao Regime vigente. Toda essa direita nacional-revolucionário nasceu, viveu e morreu, de alguma forma, com uma defesa intransigente da missão imperial portuguesa, como se tratasse de uma dádiva histórico política.

Em todos os movimentos, organizações e publicações dessa área política, uma ideia
radicava no âmago do seu ideário: Portugal Império. A transversalidade, a todos os projetos nacional-conservadores, não obstruía um pluralismo que se fazia sentir nas interpretações de manutenção, salvaguarda e elevação do Império Ultramarino." (...)

Tiago Rego Ramalho: O IMPÉRIO E JAIME NOGUEIRA PINTO: As Direitas Radicais e a Descolonização em África /
THE EMPIRE AND JAIME NOGUEIRA PINTO:
The Radical Right and the Decolonization in Africa
Revista Ultramares Artigos Nº 8, Vol. 1, ago-dez, 2015, pp. 196-213 ISSN 2316-1655 196

Antº Rosinha disse...

Pois é Luis Graça, fui dar uma vista de olhos, e fui ver por escrito, agora depois de velho, os zum-zuns que em Luanda corriam , no tempo do "meu Portugal feliz e tropical" , (Paulo varela Gomes), e que se dizia que Luanda é que devia ser a capital do Império.

Ora eu não dava importância nenhuma à política...se fosse agora, que já não dou importância às coisas daquela idade!

Ora Salazar seria contra toda essa malta, penso que desde Norton de Matos e a sua Nova Lisboa, que ficou farto do Ultramar