1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de setembro de 2024:
Queridos amigos,
Se é verdade que o tenente Barbieri, na primeira carta aqui publicada, nos dá conta de uma desastrada operação que ocorreu na Península do Sambuiá, obrigando-nos a refletir como todos nós fomos impelidos a viver desaires militares pelo desenho de operações que desconhecia cabalmente o terreno, esta carta do alferes Pedro Barros e Silva é um documento significativo para se ver como em 1966, e seguramente que ele estava altamente informado pelos dados que aqui apresenta, já havia quem, lucidamente, antevia um final pouco feliz para a nossa presença na Guiné, o PAIGC, por este tempo, já dispunha inequivocamente de um armamento no terreno muito superior ao nosso. Ainda vou bater à porta da minha fornecedora para ver se, por bambúrrio da sorte, ainda se possam encontrar mais correspondência deste alferes que devia ter acesso às mais cotadas informações militares, e não só.
Um abraço do
Mário
Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4)
Mário Beja Santos
Nota explicativa: tratando-se da segunda parte da carta dirigida em 17 de agosto de 1966 ao alferes Pedro Barros e Silva do seu amigo Paulo António, em Lisboa, convém alertar o leitor que tem tudo a ganhar em ler o texto anterior, lendo e relendo o que o militar enviou para Lisboa já não duvido tratar-se, deste pequeno acervo que adquiri recentemente na Feira da Ladra, de um significativo documento que pode e dever ser orientado para investigadores.
O alferes Barros e Silva começa a refletir-se sobre como se processou a colonização na Guiné, se as mudanças em curso, perpetradas pelas autoridades portuguesas, chegam ao bom porto, ele está profundamente cético; destaca seguidamente a atividade do PAIGC, aí não tem dúvidas que será na Guiné que se irá definir o futuro do Estado Novo (recorde-se que a carta é escrita em 1966).
É precisamente aqui que ele continua:
“E comparado com a porrada que aqui vai haver e até talvez com a que já há, as lutas de Angola e de Moçambique hão-de parecer infantis guerras de índios e cowboys. O terreno e as populações, e a situação geográfica aliados às estratégias em luta, a intensificação da propaganda IN, a ocupação efectiva de vastas regiões e consequente organização político-administrativa, o aumento da capacidade de combate (armamento, instrução, efectivos, etc.) e o crescente número de russos e cubanos que lutam nas fileiras do IN. Eis alguns indícios cuja análise nos fornece uma desagradável conclusão.
O terreno não é mau nem bom, é simplesmente impróprio para efectuar acção com motorizados. Assim, restam a artilharia e a aviação por um lado, a infantaria por outro. Deste modo, tem de morrer muita gente para os desalojar.
As populações são turras e nós quando as não chateamos não as controlamos, quando as chateamos, elas cavam e vão para as praças-fortes do IN, contribuindo assim para o engrossamento das fileiras deste.
Das estratégias e situação geográfica já falámos. Passamos agora à propaganda.
Há mais de um mês que o IN nos dedica quase diariamente um programa. O convite à deserção é apresentado como algo de aceitável e até de louvável; isto misturado com algumas deserções extraordinárias do vice-chefe da segurança e de outros.
Insiste-se sobre a situação desesperada em que nos batemos, tudo por causa dos miseráveis capitalistas exploradores do povo, etc., do que o povo português não tem culpa nenhuma. E aqui entram no baile as Frentes Patrióticas com os seus folhetins tais como o ‘Passa Palavra’ e outros, fazendo ver aos compatriotas que somos uns malandros se andarmos a matar os nossos queridos irmãos de cor. E tudo por causa dos fascistas alemães que dão armamento aos salazaristas a troco do santo território pátrio. Estás a ver o género.
Até que ponto estas lengalengas influem no moral do soldado, não sei em absoluto. Mas parece-me que o soldado nem as ouve. Para ele a propaganda adequada é outra.
Como já escrevi por aí, o IN ocupa além do Oio, o Cantanhez, o Quitafine e o Como. São verdadeiras praças-fortes dotadas de abrigos contra ataques aéreos, etc.
Outras regiões foram organizadas política e administrativamente na base de grupos, subsecções e secções. Mas organização em terra de preto é como manteiga em nariz de cão. O mais importante é o poderio militar do IN nestas regiões.
As secções do Exército Popular encontram-se fardadas, treinadas e armadas até aos dentes. E, para ajudar à festa, temos os russos e os cubanos (estes, pelo menos, já têm levado umas coças bastante razoáveis). Pensa-se que dentre em pouco estarão na Guiné mil ou mais cubanos.
O material que o IN possuiu é o que de há de melhor pelos sítios. Só lhes falta aviação e marinha. De resto, postos-rádio, antiaéreas quádruplas, canhões sem recuo de infantaria (fala-se em obuses), bazucas, rockets, morteiros de 61, 82 e até talvez de 120, metralhadoras de todos os tipos e feitios, automáticas a dar com pau, enfim, estão mais bem armados que cá a rapaziada.
A missiva já vai longe. Não era minha intenção massacrar-te com este cumprimento salazarento. Antes de acabar ainda te quero falar sobre as tais prisões e das consequências que delas advieram. Não era segredo para ninguém que muitos dos ocupantes de cargos administrativos estavam à espera de serem ministros. Como o Governo salazarista não os satisfazia, resolverem oferecer os seus préstimos à outra equipa. Neste caso, ao contrário do que acontece com o futebol (lá se foi a Comunidade Luso-Brasileira) quem pagou as luvas foram os jogadores.
A missiva já vai longe. Não era minha intenção massacrar-te com este cumprimento salazarento. Antes de acabar ainda te quero falar sobre as tais prisões e das consequências que delas advieram. Não era segredo para ninguém que muitos dos ocupantes de cargos administrativos estavam à espera de serem ministros. Como o Governo salazarista não os satisfazia, resolverem oferecer os seus préstimos à outra equipa. Neste caso, ao contrário do que acontece com o futebol (lá se foi a Comunidade Luso-Brasileira) quem pagou as luvas foram os jogadores.
Assim, em Bissau até havia o futuro Presidente da República (abastado comerciante, explorador das carreiras navais para o interior da província e, portanto, da tropa, suspeito de tráfico de armas, dono dos barcos que em 1963 se enganaram na rota e foram mais para o Sul), ministros em profusão nas pessoas-vice-presidente da Câmara, de um vogal no conselho administrativo e até de um modesto alfaiate do Batalhão de Intendência. Todas estas prisões e outras de menos importância tiveram por base o célebre atentado de Farim de que falei na altura.
Ora quando a gente lhes buliu, os homens grandes de Bissau, os turras muito logicamente decidiram meter um cagaço aos rapazes de Bissau. Assim, deslocaram uns mil ou 2 mil mânfios para a região Nhacra – Mansoa (Balantas, quase todos turras). Este tem-se entretido a chatear a rapaziada.
Ora quando a gente lhes buliu, os homens grandes de Bissau, os turras muito logicamente decidiram meter um cagaço aos rapazes de Bissau. Assim, deslocaram uns mil ou 2 mil mânfios para a região Nhacra – Mansoa (Balantas, quase todos turras). Este tem-se entretido a chatear a rapaziada.
Os Comandos ficaram à nora, mandaram as mulheres e as crianças para a metrópole, e de vez em quando lançam tremendos alarmes gerais por toda a cidade. Muito construtivo.
Entretanto, o batalhão de Mansoa tremeu, tremeu e disse: não posso mais. Então, os avisados homens grandes das estrelas decidiram reforçá-lo com unidades vindas do Norte.
Os negros, servos do diabo, agora entretêm-se no Norte a cortar estradas com valas e abatises (o que não acontecia há 2 anos).
Bem, não te quero maçar mais apesar de haver muito mais para dizer.
Um grande abraço do amigo,
Pedro
Bem, não te quero maçar mais apesar de haver muito mais para dizer.
Um grande abraço do amigo,
Pedro
P.S – lê o artigo de Raymond Cartier no Diário de Notícias de 5 de agosto"
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 3 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)
Distribuição do correio, imagem registada na RTP no Natal de 1966, Guiné
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 3 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)
3 comentários:
O alferes Pedro Barros e Silva, em 1966, faltavam-lhe dois postos militares para ser capitão (de Abril).
Entre os anos de 1961 e 1962, surgiriam en Portugal dois movimentos de extrema direita, antisalazarista: (i) a Jovem Europa (JE) e Frente de Estudantes Nacionalista (GEN), respetivamente.
(...) "Para a FNE, era imperioso realçar o privilégio que Portugal assumiu no cruzamento entre a Europa e África, desmascarando um antieuropeísmo que surgia associado ao bipolarismo EUA/URSS, tal como o domínio afro-asiático da ONU.
"Com os massacres perpetrados pela UPA, no Norte de Angola em 1961, estava criado um
propósito para o surgimento da Jovem Europa."(...)
Segundo o investigador, doutor em História pela Universidade NOVA de Lisboa, Tiago Rego Ramalho, o Paulo Osório de Castro Barbieri, destinatário desta correspondência (poste P26021) terá pertencido à JE:
(...) "Nas fileiras do JE contam-se nomes como: Caimoto Duarte, Joaquim Aguiar, Paulo Osório de Castro Barbieri ou Fernando Malheiro Dias; quando à FEN, detinha figuras como: Nuno Lousada, Jorge Moreira, Norman Mascarenhas ou Vasco Meireles." (...)
Pelo teor das cartas, o alf mil Pedro Barros e Silva deveria situar-se também, n a época, neste quadrante político-ideológico, tal como o irmão do Paulo, o Nuno Barbieri, hoje capitão-de-mar-e-guerra, reformado.
Excerto do artigo:
(...) "O discurso de um Portugal orgânico, integracionista, unitário, multirracial,
pluricontinental ou imperialista, incorporou-se inteiramente na alma do Estado Novo. O
nacionalismo autoritário e conservador do Regime era indissociável de uma atenção
pormenorizada à questão imperial ou colonial. O legado do passado deveria de ser purificado no presente e preservado para o futuro. Apenas nos anos derradeiros do Regime, com Marcello Caetano a Presidente do Conselho, o discurso e as políticas perderiam a sua firmeza e o seu rigor histórico. O que importa esclarecer é que a mística imperial e o Império como fundamento da ação política não foram exclusividade de uma certa direita salazarista, tendo-se estendido a sectores que se posicionavam, afirmando-o abertamente, à direita do nacionalismo autoritário de Salazar. A defesa do Império impulsionou a ascensão da extrema-direita no espectro político nacional, que manifestava imensas desavenças críticas ao Regime vigente. Toda essa direita nacional-revolucionário nasceu, viveu e morreu, de alguma forma, com uma defesa intransigente da missão imperial portuguesa, como se tratasse de uma dádiva histórico política.
Em todos os movimentos, organizações e publicações dessa área política, uma ideia
radicava no âmago do seu ideário: Portugal Império. A transversalidade, a todos os projetos nacional-conservadores, não obstruía um pluralismo que se fazia sentir nas interpretações de manutenção, salvaguarda e elevação do Império Ultramarino." (...)
Tiago Rego Ramalho: O IMPÉRIO E JAIME NOGUEIRA PINTO: As Direitas Radicais e a Descolonização em África /
THE EMPIRE AND JAIME NOGUEIRA PINTO:
The Radical Right and the Decolonization in Africa
Revista Ultramares Artigos Nº 8, Vol. 1, ago-dez, 2015, pp. 196-213 ISSN 2316-1655 196
Pois é Luis Graça, fui dar uma vista de olhos, e fui ver por escrito, agora depois de velho, os zum-zuns que em Luanda corriam , no tempo do "meu Portugal feliz e tropical" , (Paulo varela Gomes), e que se dizia que Luanda é que devia ser a capital do Império.
Ora eu não dava importância nenhuma à política...se fosse agora, que já não dou importância às coisas daquela idade!
Ora Salazar seria contra toda essa malta, penso que desde Norton de Matos e a sua Nova Lisboa, que ficou farto do Ultramar
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