quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

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Guiné > Região de Tombali > Rio Cacine > 1971 ou 1972 > Pedro Lauret, oficial imediato do NRP Orion (1971/73), na ponta do navio, a navegar no Cacine, tendo a seu lado o comandante Rita, com quem fez a primeira metade da sua comissão na Guiné. "Um grande homem, um grande comandante" (PL).

Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Foto © Pedro Lauret (2006) . Todos os direitos reservados.


Caro Manuel Rebocho,

Agradeço a tua carta (1) pois ela permite esclarecer alguns aspectos da situação que se viveu naquele mês de Maio e princípio de Junho de 1973 na Guiné. O Blogue do Luís Graça [& Camaradas da Guiné] tem exactamente esse mérito, pôr a falar entre si companheiros de armas que viveram tempos difíceis, recordar acções que viveram em conjunto e contribuir, à sua medida, para que se faça História.

Para poder responder às tuas questões tenho esclarecer em primeiro lugar que o dispositivo de fiscalização nos rios da Guiné era efectuado por Task Groups (TG) constituídos normalmente por uma Lancha de Fiscalização Grande (LFG) e duas Lanchas de Desembarque Médias (LDM), a bordo da LFG seguiam cerca de 8 botes Zebro III com marinheiros fuzileiros como condutores. O comandante da LFG era o comandante da força (CTG). Este dispositivo permitia efectuar um variado tipo de acções quer de ordem ofensiva, defensiva ou logística.

No dia 1 de Junho de 1973 (não consegui confirmar com toda a certeza o dia pois o Diário Náutico da Orion referente ao período de 1970-1973 desapareceu), cerca das 20:00 encontrando-se o NRP Orion fundeado no rio Cumbijã recebemos ordem para seguir para Cadique e embarcar uma Companhia de Paraquedistas e seguir para Cacine com todo o dispositivo.

O Navio subiu o rio e embarcou a companhia de Paras com botes.

Foram dadas indicações às duas LDM – as LDM tinham como militar responsável, não um Sargento mas um Cabo de Manobra - que integravam a TG, para seguirem para Cacine pelo canal do Melo. A Orion não podia passar pelo canal do Melo por causa do calado pelo que saiu a barra do Cumbijã, navegou para sul entrou a barra do Cacine. Chegámos a Cacine nos primeiros alvores já aí se encontrando as 2 LDM, e desembarcamos a companhia de Paras.

A bordo da Orion entrou o Major paraquedista Pessoa que nos informou do seguinte:

  • Guileje, após intensos bombardeamentos fora evacuada e o contingente aí instalado seguiu para Gadamael;
  •  O Major Coutinho e Lima, comandante do COP, que tinha dado a ordem, seguira para Bissau sob prisão;
  • Gadamael estava sob fogo intenso e a grande maioria dos militares tinha fugido para as margens do rio Cacine (ver depoimento do Capitão Ferreira da Silva no Jornal Público) (1);
  • O General Spínola tinha estado em Cacine e tinha dado ordem explicita para ninguém ir socorrer o pessoal que andava fugido nas margens do rio, apelidando-os de cobardes;
  • O Major Pessoa ainda nos informou que se nós não fossemos recuperar o pessoal ele próprio iria nem que fosse de canoa.

O navio por sua inteira responsabilidade, e sem nada comunicar ao Comando da Defesa Marítima,  decidiu de imediato ir recuperar o pessoal. Foram dadas indicações aos patrões das LDM para seguirem nas águas da Orion.

Passamos o rio Meldabon junto a uma marca radar (marca Lira), a qual já não era passada por uma LFG há muito, não se conhecendo a situação dos fundos. Conseguimos seguir até ao rio Dideragabi (ver carta Cacoca/Gadamael, 1/50 mil), para montante era impossível navegar pois já não tínhamos fundo.

Foram colocados botes na água que passaram revista à margem esquerda do Cacine bem como as duas LDM. Foram recolhendo pessoal que traziam para bordo da Orion onde os feridos passaram a ser tratados, os mais ligeiros no convés,  os mais graves foram para a coberta das praças. Foi fornecida alguma alimentação ao pessoal. Como já havia muito pessoal a bordo,  as LDM passaram a levar o pessoal para Cacine.

Já de noite a Orion dirigiu-se a Cacine não podendo desembarcar os feridos mais graves pois estávamos em baixa-mar e a pista de lodo impedia-o.

Nessa noite a coberta das praças funcionou como navio hospital. O soro, compressas e outra material de primeiros socorros esgotaram. Foi pedido reabastecimento urgente a Bissau. Na manhã seguinte o material chegou num pequeno avião da Marinha.

Continuamos na zona por vários dias com o dispositivo.

Vou agora comentar a tua carta.

- Fotografias – Na primeira vê-se uma das LDM atracada à Orion a passar pessoal para bordo, na segunda os botes e as LDM a recolher pessoal das margens, conforme acima expliquei e como foi relatado pelo jornalista do Público.

Quero dizer, como comentário, que o que foi feito é o que está acima descrito, nunca dissemos outra coisa. Nunca foi dito que a Orion embarcou directamente o pessoal das margens, era absurdo. O que na realidade fizemos foi apenas desobedecer a uma ordem explicita do Comandante Chefe, quando o que estava em causa eram centenas de vida de militares e civis, numa altura em que a Força Aérea não voava quer para apoio de fogo quer para evacuações.

É completamento falso que tenhamos recebido qualquer ordem do major Monje, ou de qualquer outro, ou que as LDM tivessem actuado que não por ordem do navio, o único contacto que mantivemos foi com o major Pessoa. Nesse dia não recebemos ordens, estivemos entregues a nós próprios, o descontrolo era total, só isso explica a ordem do general.

O Major Monje só muito mais tarde viria a bordo, só no dia seguinte e apenas para coordenar acções, os navios dependiam directamente do Comando da Defesa Maritima.

Não fomos flagelados, mas podíamos ter sido, basta olhar para o mapa, também nunca dissemos que o fôramos e nem sequer dissemos em sitio algum que tínhamos corrido qualquer risco maior que os outros.

Na tua carta falas apenas de população nas margens, mas não era só população nas margens mas população e militares. O depoimento do Ferreira da Silva (2) é totalmente esclarecedor.

Penso que para já é tudo, estou sempre à disposição para qualquer outro esclarecimento (3).

Um abraço
Pedro Lauret
_____________

Nota de L.G.:
 
(1) Vd. post anterior

(2) Vd. Segunda e última parte do trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso > (Público, 26 de Junho de 2005), reproduzido no nosso blogue, em post de 15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

(3) Vd. outros posts relacionados com este tópico:

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação da LFG Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, no Rio Cacine, em Junho de 1973 (Manuel Rebocho, ex-Srgt Pára, CCP 123, 1972/74)

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Guiné > Região de Tombali > Cacine > Rio Cumbijã > Junho de 1973 > "A LFG Orion, com populares a serem evacuados (...). A população de Guileje, não sendo aceite pela população de Gadamael, por serem chãos diferentes (no sentido de etnias), embarca num navio Patrulha que a levaria para Bissau, onde desembarcou".


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Guiné > Região de Tombali > Cacine > Junho de 1973 > Uma LDM [Lancha de Desembarque Média] com militares e populares e a costa do rio onde nunca o Orion conseguiria chegar".

Legendas de Manuel Rebocho. Fotos de Delgadinho Rodrigues (2006), gentilmente cedidas por Manuel Rebocho (2006). Todos os direitos reservados.

Fotos alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.




Manuel Rebocho, ex-srgt pqdt, BCP12 / CCP 123 (BS 12, Bissalanca, 1972/74)

Foto: © Manuel Rebocho (2006)


Texto enviado pelo Manuel Rebocho, ex-sargento paraquedista da CCP 123 (Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: "A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975").

Carta a Pedro Lauret (1)

Não pretendo fazer polémica mas também a não recuso. Assumo a frontalidade e a responsabilidade do fiz e vi fazer.

A actuação da LFG [Lancha de Fiscalização Grande] Orion, na evacuação das populações de Guileje, que tinham sido forçadas a acompanhar as tropas portuguesas que se retiraram para Gadamael Porto, na manhã do dia 22 de Maio de 1973, teve o seu mérito (2), mas não exageremos.

Nas duas fotografias, que junto, a primeira é da LFG Orion, onde se vêem os populares a serem evacuados. Contudo, a segunda mostra uma LDM [Lancha de Desembarque Média] com militares e populares e a costa do rio onde nunca o Orion conseguiria chegar.


Temos assim que só chegaram ao Orion as pessoas que foram transportadas pela LDM, que era comandada por um Sargento. Acresce, que esta LDM estava aportada em Cacine e foi o então Major Manuel Monge, que desempenhava as funções de Segundo Comandante do COP 4, quem lhe ordenou aquela missão. 

Tendo o Sargento procurado esquivar-se ao cumprimento da ordem, a mesma foi-lhe imposta pela força já que o então Capitão Pára-Quedista Norberto Crisante de Sousa Bernardes que, como eu próprio, assistiu à ordem, determinou a uma força, que ele próprio integrou, que acompanhasse o Sargento e assegurasse a defesa da dita LDM.

Todos sabemos que Manuel Monge era um dos Oficiais mais íntimos de Spínola, cujo comportamento não pretendo justificar, mas antes, ser cientificamente sério. Neste sentido, Monge determinou a evacuação só depois de ter o beneplácito de Spínola.

Neste caso, não recuso méritos ao Orion, que os teve, mas não exageremos, quanto às motivações e iniciativas. O Orion cumpriu uma missão que lhe foi ordenada. E só. Lembro que o Orion estava no local, porque havia ido buscar a CCP [Companhia de Caçadores Pára-quedistas] 123, que integrei como operacional durante 26 meses, a Cadique (Cantanhez) no rio Cumbijã, precisamente para auxiliar Gadamael Porto, como fez. 

O Orion desembarcou a CCP 123 em Cacine, tendo a companhia seguido depois para Gadamael,  de LDM, mas, mesmo assim, desembarcou na zona onde estava a população, seguindo depois a pé até Gadamael, dado que o porto estava a ser constantemente bombardeado.

O Orion esteve sempre muito distante do alcance das granadas que o PAICG estava lançando sobre Gadamael. A população estava dispersa na margem, mas também muito distante de Gadamael.

A presente carta é da responsabilidade do tertuliano Manuel Rebocho, mas não só, também o é do Sargento-Mor Pára-Quedista Manuel Rebocho, que esteve nos actos que refere, e também do Doutor Manuel Rebocho que investigou estas operações durante mais de cinco anos.


Aceite o tertuliano, o camarada e V. Excia. os protestos dos meus mais elevados cumprimentos pessoais.

PS - O Delgadinho Rodrigues era na altura dos factos, tal como eu, Segundo Sargento Pára-Quedista e éramos da mesma companhia [CCP 123]. O facto de ele ter tirado as fotografias prova que estava lá. Como estava.

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)


_________

Notas de L.G.:

(1) Vd post de 1 de Outubro de 2006 >

(2) Vd. posts de 15 de Junho de 2006 :

Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): "Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa" (Jobo Baldé, antigo padeiro)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Pel Caç Nat 52 > O improvisado padeiro, Jobo Baldé, a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca. Anos depois escreverá ao seu antigo comandante:

"Espero que não tenhas esquecido o Jobo. Olha Alfer Becha dos Santos você tinha-me dito vai me levar em Lisboa quando eu entrego a farda da tropa. Eu era o teu antigo padeiro em Missirá. Quero ir para Lisboa"... 

Neste poste fica patente, através de excertos de cartas recebidas pelo autor, ainda na Guiné ou já em Lisboa, remetidas pelos seus soldados (ou antigos soldados), o drama pungente dos jovens africanos que lutaram ao nosso lado, e que confiavam em nós até a um ponto que já não era humano... 

Infelizmente, ficaram para detrás da História, sem esperança nem futuro... (LG).

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementae: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do Beja Santos, com data de 29 de Setembro último. Continuação da publicação das suas memórias do Cuor (1)

Caro Luís, a violência deste exercício ficou atenuada quando a Cristina me passou para as mãos as centenas de aerogramas que lhe enviei. Estou presentemente a arrumar por anos e depois passarei aos meses e dias. Até agora a memória não me tem atraiçoado, das cartas encontradas do período abordado vejo que há episódios humanos que merecem ser relatados. 

E descobri algumas cartas dos meus soldados que te vou enviar pois eles enriquecem a histórias de todas as nossas relações afectivas, o português que se usava, o amor que se instalou entre os homens. Tu farás o uso que entenderes desta correspondência, tens plena liberdade para reproduzires como e quando for mais conveniente. As aulas vão começar e peço-te concordância para tentarmos manter uma edição semanal destas memórias. Segue igualmente uma fotografia que encontrei do Mamadu Camará que vai entrar em cena na primeira flagelação de Missirá. Recebe um abraço do Mário.


Exmº Sr Meu Alferes

por Beja Santos

Passou por aqui há dias o Queta Baldé, antigo soldado do Pel Caç Nat 52. É segurança nocturno numa empresa das redondezas, e de vez em quando vem partir mantenha. Trouxe-me uma carta datada de 1 de Janeiro, de Bissau, e assinada por Jobo Baldé. A fotografia dele já aqui apareceu, era o nosso padeiro a quem demos uma concessão de vender algumas fornadas de pão à população civil.

Na época das chuvas, não era possível trazermos os sacos de farinha na viatura e pedimos apoio aéreo. Lembro a ocasião em que um helicóptero nos largou a 15 metros de altura, sob a parada, um saco de farinha que tivemos de peneirar para tirar a terra... O Jobo escreve assim:

"Antes de mais desejo-te uma boa continuação de saúde e felicidade. Espero que não tenhas esquecido o Jobo. Olha Alfer Becha dos Santos você tinha-me dito vai me levar em Lisboa quando eu entrego a farda da tropa. Eu era o teu antigo padeiro em Missirá. Quero ir para Lisboa. Cumprimento para a sua família da casa. Jobo em Bissau, telefone 25-51-25."

Guardei outras missivas do Jobo. Por exemplo: 

"Meu Senhor Alferes que eu queria dizer uma coisa que seja verdade porque meu mulher já pariu na nossa terra. Olha, ela pariu na segunda feira passada. Dá autorização a Jobo para ir a Galomaro"... 

E outra: 

"Querido Alferes, eu queria visitar meu familiar, empresta-me 500 ou 400 escudos pois tenho que fazer festa do filho e sem dinheiro eu fico com muita vergonha. Eu peço 4 dias de dispensa. Adeus".

De Cacine, recebo um areograma do José Seni Jamanca. Este querido amigo, que conheci como um soldado de milícia em Finete, foi professor e tinha uma inexcedível força de vontade para aprender. Ele escreve: 

"Eu vou fazer exame de 3ª classe, mas tenho falta destes livros: Geografia, Aritmética, Ciências Naturais e Gramática. O senhor é o meu maior e único amigo sincero e verdadeiro. O médico cá de Cacine mandou vir óculos para mim, mas até que cheguem emprestou-me uns dele. Mas talvez os óculos não venham, peço que arranje uns e que mos mande. Todos os dias peço para que o senhor tenha muita sorte, pois a guerra está cada vez pior. Quero também um livro de catecismo e uma fotografia sua. Receba um forte abraço e muitas felicidades do amigo que nunca o esquece, José Seni Jamanca". 

E em post-scriptum acrescenta: 

"Dia a Bassilo Soncó para te entregar o meu dinheiro, pois ele devia-me 200 escudos".

Resta dizer que o José, depois da independência, foi tirar um curso de electricista em Leninegrado, viveu em Lisboa e aqui eclodiu uma tuberculose que o matou. Ainda o fui ver ao Hospital Pulido Valente. Visitava-me amiude, era uma felicidade a sua companhia, o seu português distinto e pausado, olhar os seus olhos piscos e ouvi-lo dissertar sobre electricidade. Fez-me tremenda falta a sua partida.

Passo agora para uma pequena missiva de Saco Embaló, praticamente incompreensível, mas em que se infere que ele está há muito tempo na milícia e quer sair da tropa. Não sei o que aconteceu depois, mas o Saco Embaló apareceu-me em Bissau em 1991, era comerciante em Bandim. Passo agora para um pedido do Ussumane Baldé, o meu soldado prussiano. Ele escreve-me, como se estivesse no Pólo Norte:

 "Meu querido Alfero, eu por cá vou indo bem menos mal, graças a Deus. Desejo que esta minha carta te vá encontrar de boa saúde e mil felicidades. Peço-lhe por grande favor que me ajude uma licença de um dia a fim de eu ir a Bafatá, visitar a minha mãe. Mandaram-me dizer que ela está muito doente, todo o corpo está inchado e não pode andar. Nesta altura não quero sair daqui por causa dos trabalhos, por isso quero só um dia de féria. Recebe mil abraços do seu amigo Ussumane".

Sempre me convenci que por detrás desta correspondência deviam estar alguns manuais do tipo: como escrever cartas de amor, 100 modelos de cartas comerciais, etc. Reparem bem numa carta que me mandou o meu soldado Sila Sabali: 

"Agradecia-lhe o desígnio por amor de tudo o que é sagrado neste mundo e especialmente a sua Exmª esposa chamar-me. Como o senhor sabe, estou a entrar de licença neste mês em curso, não tenho comigo dinheiro para o meu assunto particularmente que tenciono realizar na minha terra. Razão é essa que me obriga vir pedir-te ao seus pés, confessando-lhe se o senhor consegue ajudar-me, não importo também que V. Exmª faz este desconto de uma só vez. Grato pela sua costumada atenção para comigo e para muitíssimos outros meus colegas, sou eu o teu criado e o que será o teu soldado". 

Segue-se um pedido para eu enviar uma carta ao Capitão de Galomaro a ser entregue por Madiu Culubali. Madiu, que terá comportamentos heroicos em operações, flagelações e emboscadas, tinha menos de 1,50m e era todo sumido, parecia-me um jovem com envelhecimento precoce. Sempre parei para o ver a passear com a sua Mariema, a sua alentada mulher, enorme e vociferante.

A última carta que aqui refiro foi-me escrita por Mamadu Djau, soldado milícia. Não confundir com Mamadu Djau, bazuqueiro de elite, um dos nossos mais valorosos militares. Este, irei revê-lo quando o visitar em Amedalai, em 1991, um dos encontros mais emocionantes da minha vida. Este Mamadu Djau que me escreve será verdadeiramente o grande sinistrado da flagelação de 6 de Setembro. No rescaldo do ataque, o enfermeiro veio a informar-me de uma coisa extraordinária e nunca vista: o Mamadu metera dois tiros num pé, estava a lavar o pé com água oxigenada, conversava com toda a gente como nada tivesse acontecido. E, de facto, veio a restabelecer-se depois de um mês com um pé envolto em compressas. 

Virá a morrer de paludismo, em 1970, e fui acompanhá-lo ao Cossé, onde foi enterrado com todas as honras militares. Voltaremos a falar dele, quando o for vestir com a sua farda, já no rigor mortis, na Capela de Bambadinca. Na sua carta fala-me de uma dívida de 220 escudos e pede-me para eu interceder junto do devedor.

Têm importância estas cartas? Os nossos soldados pediam insistentemente e confiavam em nós (aliás, em quem é que podiam confiar?). Temos aqui a prova provada da pouquíssima atenção que lhes demos até começar a guerra. Este português denuncia inequivocamente a ausência de civilização que a propaganda propalava, revela a fragilidade das nossas preocupações coloniais. Fomos progressivamente envolvendo esta juventude que olhava para nós como tábua de salvação. O Jobo tem a nossa idade e quer vir trabalhar para Portugal.

Fecho esta correspondência com os olhos humedecidos, absolutamente convicto que todos perdemos em não ter conseguido a tempo encontrar a solução digna para os povos da Guiné. E já que falámos de Mamadu Djau, segue-se o relato de uma noite estrelada sob o céu cego de Missirá. Vem aí o meu baptismo de fogo. Junto agora a minha carta.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. últimpo post desta série > 29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma

Guiné 63/74 - P1148: Cabo 14, da CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66): um blogue de homenagem de uma filha a seu pai (Ana Paula Ferreira)


Lisboa > 1966 > O Fernando Ferreira, de regresso à terra natal, Lisboa, em dia de inverno, a 3 de Fevereiro de 1966. "Pergunto-me se alguma vez regressou, de facto", escreveu a filha Ana Ferreira. E cita os versos da canção do Zeca Afonso, Menina dos Olhos Tristes: "Menina dos olhos tristes / O que tanto a faz chorar / O soldadinho não volta / Do outro lado do mar"... E explica a sua tristeza, a sua saudade, o seu espanto e a sua revolta: "E era assim que eu costumava adormecer, embalada por histórias de Meninas e Soldadinhos. O meu, o nosso Soldadinho voltou. Não veio numa caixa de pinho, mas a sua alma deve ter ficado junto daqueles que viu despedaçados à sua volta, enrodilhados em panos sangrentos que não cessavam de perguntar : porquê?"... O Ferreira, seu pai, morreria precocemente, 24 anos depois do regresso.

Fonte: Blogue Cabo14 Guiné, de Ana Ferreira (com a devida vénia...).


Louvor por feitos de guerra, na noite de 16/17 de Julho de 1964.

Fonte: Blogue Cabo14 Guiné, de Ana Ferreira (com a devida vénia...).

Fotos: Ana Ferreira (2006)

1. Mensagem de Ana Paula Ferreira, a filha do Cabo 14 (ex-1º Cabo Ferreira, CCAÇ 616, BCAÇ 619, 1964/66)

Olá Luís e todos os caros Tertulianos,

Embora tertuliana silenciosa, tenho lido e tenho tentado manter-me atenta a tudo oque tem sido colocado no site.

Entretanto nas minhas diligências, e através do esforço impagável do Sr. Ilídio Costa, sei agora com todos os detalhes qual a companhia de meu pai, Fernando das Neves Ferreira (1): Companhia de Caçadores nº 616, 3º Pelotão, 1ª secção, atirador, soldado nº 2514/63.

Os castigos disciplinares foram alguns e as despromoções também, tendo posteriormente sido transferido para a CART 676 / RAP 2, em Setembro de 1965.

No documento que me foi tão gentilmente fornecido dizia ainda que "esta Companhia, após o desembarque do Batalhão nesta Província em 15.1.64, ficou em Bissau às ordens do Quartel General. Passou novamente a pertencer ao Batalhão em 8.4.64 quando rendeu em Empada a CCAÇ 417.

Nesta altura veio comandada pelo Sr. Capitão Mil António Francisco do Vale. Em 2.5.64 este Capitão foi rendido no Comando da Companhia pelo Sr. Capitão José Pedro Mendes Franco do Carmo. Presentemente está sendo comandada desde 17.7.65 pelo Alferes Mil Joaquim da Silva Jorge, em virtude do Sr. Capitão Franco do Carmo ter sido evacuado para a metrópole por doença" (2).

Posso enviar-lhe algumas fotos , embora tenha que o fazer através doutro endereço de mail já que este não comporta espaço suficiente para o envio de fotos. Entretanto fica o blogue Cabo14 Guiné, já um pouco mais actualizado (3).

Saudações,

Ana Paula Ferreira,
filha de Fernando Ferreira, Cabo 14 (4)

_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd posts de:
8 de Abril de 2006 > Guiné 63/4 - DCLXXXV: Aerograma de Ana Paula Ferreira: o meu pai, o 1º cabo Ferreira (CCAÇ 617, BCAÇ 616, 1964/66)

(...) "Eu sei que deve parecer estranho falar assim, não embarquei para a Guiné, não peguei em armas, não matei ou vi morrer, mas as palavras são poderosas, principalmente quando proferidas por quem viu a sua vida mudada para sempre.

"A minha mãe guarda centenas de aerogramas, fotografias e memórias de um cais de onde viu partir um jovem, que voltou homem amargurado" (...).

9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVI: Cabo 14: pergunto-me se ele algum vez regressou, de facto (Ana Ferreira)

(...) O meu pai esteve na Guiné de 64 a 66, mais exactamante de oito de Janeiro de 1964 a três de Fevereiro de 1966, partindo de Lisboa, onde vivia. Julgo que o quartel onde se encontrava era o da Amadora. Não tinha nenhuma especialidade, era apenas atirador (...).

"Pelos remetentes que encontrei nos aerogramas vejo que percorreu um pouco toda a Guiné: Bissau, Empada, Pirada, Bigene, Ilha do Como (que pelas suas descrições, terá sido um dos piores sítios), Ponderosa, embora, não seja este o verdadeiro nome, ignoro qual seja, Bafatá e mais alguns de certeza, pois sei que já não me lembro com exactidão de tudo o que me contou.

"Bolanhas, G3 carregadas em braços no ar, queimada de aldeias, tabancas destruídas, estadias surrealistas e fugas do hospital de Bissau .... Castigos, louvores, viagens prometidas e desprometidas à metrópole, a guia de marcha, o embarque e o regresso. Mas pergunto-me se alguma vez regressou, de facto (...)".

(2) Mais uma unidade que, durante a sua comissão, teve pelo menos três comandantes. Já aqui nos interrogámos sobre as estranhas doenças que atingiam os capitães, milicianos ou do Q.P....

(3) Belíssima e sentida homenagem de uma filha a seu pai, combatente na Guiné: (...) "Esta não é uma história fácil de se contar. Muitas vezes ouvi-o dizer que tinha que escrever o livro da sua vida. Sei que a parte que mais crucial reportava-se a estes anos passados na Guiné. As emboscadas, os amigos vitimas das minas, as tabancas incendiadas, a fome, a sede e uma vontade súbita de tudo enfrentar; uma vontade indómita de penetrar na mata e matar ou morrer.

"À minha mãe, inundada de aerogramas com palavras de esperança e desespero, diziam-lhe os colegas de guerra que voltavam à metrópole, feridos para não mais voltar: 'A menina desista dele, porque ele não vai voltar'. Cabo 14 , menino quase imberbe que fazias tu, que vias tu, lá nessas terras distantes?" (...).

(4) O nosso camarada Fernando Ferreira morreu em 1991. A filha criou, com grande ternura, um pequeno blogue em sua homenagem. Foi um gesto que nos sensibilizou a todos, os seus amigos da tertúlia a que ela pertence, com todo o mérito.

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1147: Blogue: dar voz a quem a não tem (A. Mendes, ex-1º Cabo Comando, 38ª CCmds)


Cartão militar do 1º Cabo Comando Amílcar Mendes, assinado pelo Comandante do Regimento de Comandos, Jaime Neves, "coronel graduado comando" (segundo consigo ler) (LG)

Foto: © A. Mendes (2006)

Mensagem do Amílcar Mendes, ex-1º Cabo Cmd, 38ª CCmds (Os Leopardos) (Guiné, Brá, 1972/74),


O que se escreve no blogue....e o que não se escreve

Olhando para a um ano atrás, tenho que concordar que os assuntos do blogue tinham um conteúdo diferente, talvez porque a participação dos PRAÇAS era muito maior e porque os assuntos de caserna são muito mais de prender a atenção da grande maioria. Penso que a maior parte de quem busca este blogue vem com a expectativa de ver aqui faladas coisas como bolanha, manga de porrada, bianda, mosquito, bajuda, turra, etc., etc.....e com o devido respeito não quer saber como se faz ou se constrói um blogue ou os perigos de um blogue, etc.

Em minha opinião, o conteúdo original está um pouco desvirtuado. Gostaria que os camaradas da Guiné aqui viessem (sem esquecer os dias de hoje) falar mais naquilo que lhes tocou de perto, sem pudores, porque há muita gente, como eu, a precisar de desabafar. Há muitos camaradas que me mandam mensagens a desabafar assuntos com muito interesse, porque me sentem combatente no terreno e acham que eu os entendo melhor.

Camaradas amigos, aqui não há oficiais, sargentos e praças. Esqueçam isso e desabafem o que lhes vai na alma, porque concerteza irão encontrar sempre aqui uma palavra amiga. O que fizeram na guerra não têm que ter vergonha, apesar de haver aqui no blogue muitas vezes quem tente criar nos outros complexos de culpa. Força, amigos. Contem as vossas experiências por mais marcantes que tenham sido. Porque vão ficar mais aliviados. Ninguem os irá julgar.

Um abraço.

A. Mendes.

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)

Guiné 63/74 - P1146: Tabanca Grande (2): Constantino Neves, ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)


O Tino Neves: hoje e em 1969.

Fotos: Tino Neves (2006)

Mensagem do Constantino Neves ou Tino Neves, com data de 28 de Agosto de 2006 (1):

Luís Graça:

Há 4 anos atrás, após o meu novo estatuto de aposentado iniciei-me nas pesquisas de informações de tudo o que se relacionava com a Guiné, assim como o contacto dos meus Camaradas de Armas (CCS/BCAÇ 2893).

Como já havia uns tempos que não fazia dessas pesquisas, voltei novamente e, por acaso, entrei no seu Blogue e gostei muito, pois nunca tinha entrado em nenhum Blogue, pelo facto de não ter muito o costume e o dom de escrever.

Gostei muito e gostaria também de dar o meu contributo, contando(ou tentando contar) algumas histórias passadas e vividas por mim em terras da Guiné.

Passo a apresentar-me: Fui 1º Cabo Escriturário da CCS do Batalhão de Caçadores nº 2893, estacionado na Zona Leste, Sector L3, Nova Lamego (Gabu), desde o dia 22 de Novembro de 1969 a 4 de Setembro de 1971.

Há 4 anos a esta parte tenho organizado os Encontros/Convívios ao nível do nosso Batalhão (que inclui a CCS e as CCÇ 2617, 2618 e 2619), além do Pelotão de Morteiros nº 2105 e o Pelotão de Reconhecimento Daimler nº 2144, a ele agregados.

O próximo Encontro será para o ano que vem, em data e local ainda a designar (o de 2006 já foi em 22 Maio).

Junto envio imagem do Estandarte do BCAÇ 2893, as minhas fotos e os meus dados para contacto:

Nome > Constantino Neves
Local de residência: Laranjeiro / Almada
Telefone > 21 017 32 26
Telemóvel > 93 437 03 52
E-mail > mailto:cfneves@netcabo.pt

Cumprimentos do Camarada de Armas

Constantino Neves

PS - Estou preparando algumas histórias, passadas e vividas por mim em terras da Guiné (1).

_________

Nota de L. G.:

(1) Vd. post anterior.

Guiné 63/74 - P1145: Na fonte... com o Inimigo (ou a água quando nasce é para todos) (Tino Neves, CCS do BCAÇ 2893, Nova Lamego)





Guiné > Zona Leste > Nova Lamego > 1970 > Nascente de água onde se abasteciam as NT, a população local e... os guerrilheiros do PAIGG. O autor desta estória é o da direita, a beber água pela cafeteira. O outro é o soldado condutor Rafael, ambos da CCS do BCAÇ 2893, Nova Lamehgo, 1969/71.

Fotos: Tino Neves (2006)



Texto enviado, em 28 de Agosto de 2006, pelo Tino Neves (ex -1º Cabo Escriturário da CCS, BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71).


Camarada e amigo Luís Graça:


Junto envio uma pequena história passada comigo em 1970. Já estou a escrever outra, que enviarei em breve! Não sou grande artista na escrita, mas espero que esteja compreensível.

Cumprimentos

Constantino Neves

CCS/BCAÇ 2893

Nova Lamego (1969 - 1971)

Comentário de L.G.: Um dia de sorte, ó Tino! Uma boa estória para contar aos netos. Fez-me lembrar a guerra do Raul Solnado. Manda mais, que tens talento. Desculpa só agora ter sido publicada. L.G.


Título: Nascente de água

Distanciada a cerca de 3 a 4 km da Vila de Nova Lamego, existe uma fonte de água fresquinha, com alguma qualidade de pureza, se assim se possa dizer, pois era possível beber directamente da Nascente, e por esse facto tínhamos por costume ir lá abastecermo-nos de garrafões (daqueles de vinho branco, dentro de um cesto de verga com asas), para as nossas casernas e também para os nossos Comandantes.

Eu, como sendo o Escriturário privativo do Capitão Rodrigues, Comandante da CCS do Batalhão de Caçadores 2893, e o Sold Cond Rafael, ficámos incumbidos de quando faltasse água aos nossos Comandantes, iríamos de jipe, com o máximo de garrafões possíveis, abastecermo-nos.

Houve então um dia em que o Rafael, por volta das 6 da tarde, me aparece, já eu na caserna, para que preparasse depressa os garrafões para irmos à nascente. Eu estranhei e ainda lhe respondi:
-É pá, já é muito tarde, daqui a pouco está escuro!- E ele respondeu-me que era num instantinho e só enchíamos os que tivéssemos tempo, para regressar ainda com claridade.

Pois, acedi então a ir porque também estava a necessitar de água nos meus garrafões. Quando lá chegámos, a nascente estava muito concorrida, cerca de uma dúzia de guineenses, a beber e a lavar-se no lago formado pela nascente. Estranhei estar lá tanta gente, mas depressa esqueci esse pormenor, pois eles se tornaram tão simpáticos:
- Eh… pessoal Tubaco, corpo de bó, está jametum?!
- Jarame nane! - respondemos nós, e ajudaram–nos a encher os garrafões, pelo o que nós lhes agradecemos, oferecendo-lhes tabaco. E depois lá regressámos com toda a tranquilidade ao aquartelamento, que ficava no centro da Vila.

Por volta das 23 horas fomos flagelados por tiros de morteiro e armas ligeiras, não havendo quaisquer danos ou baixas, mas no dia seguinte, tivemos conhecimento do local dos lançamentos das granadas de morteiro: sim, era precisamente junto da nascente...

Conclusão obvia, os guerrilheiros do PAIGC não quiseram comprometer a operação deles, capturando-nos, apesar de não terem qualquer dificuldade em fazê-lo, pois estávamos ambos desarmados (nem um canivete!).

Narrador:

Constantino Neves,
1º. Cabo Escriturário
da CCS do BCAÇ 2893
(Nova Lamego, 1969/71)

Guiné 63/74 - P1144: Geração Blogue? Eu, blogador, me confesso (Beja Santos)

Um tal g.g., guru da revolução da blogosfera... Giuseppe Granieri, italiano, nascido em 1968, autor de - entre outros livros recentes - La Società Digitale (2006) e Blog Generation (2005). Fonte: Blog Notes (2006) (com a devida vénia...) (LG)


Título: Geração Blogue
Autor: Giuseppe Granieri (1)
Editora: Presença
Local: Lisboa
Ano: 2006
Tema: Ensaio
Colecção: Sociedade Global
Nº na Colecção: 9
Preço c/iva: €12,50
ISBN: 9722335731
Nº de Páginas: 152
Data de lançamento: Agosto de 2006
Sinopse:
Apesar de ser um fenómeno relativamente recente, em poucos anos os blogues conheceram uma difusão extremamente célere na Rede, impondo-se como um novo modelo de comunicação que põe diariamente em contacto e em confronto pessoas e ideias, transformando a Internet numa imensa infra-estrutura de discussão, e criando uma comunidade cuja única regra é a relação.
Partindo destas características, Giuseppe Granieri procura responder a questões que relacionam os blogues, a informação, os media, a política e a democracia, e as regras que gerem e filtram todo este enorme ecossistema. Sustentado por exemplos concretos e actuais, este é um livro indispensável para compreender e acompanhar a revolução que os blogues estão a operar, em tempo real, no nosso quotidiano e que desafia a nossa visão do papel das novas tecnologias na sociedade num futuro não muito distante. (Fonte: Presença, 2006)


Blogosfera, o nosso lugar de conversa sobre uma dimensão do mundo que nos interessa ,
por Beja Santos


Caro Luís:
Acabo de ler Geração Blogue, por Giuseppe Granieri (Editorial Presença, 2006). Como sabes, dou matérias relacionadas com o lazer e a Sociologia do Consumo e o blogue, que interfere no consumo digital, é inescapável.

Gostaria de reflectir com os nossos tertulianos o estado desta entidade madura da Web, as interacções que comporta, até que ponto não praticando jornalismo informa-nos e até podemos sensibilizar os media (atenção, há jornalistas que são insignes bloguistas mas o contrário não é verdadeiro). Aqui vai o que ponho à discussão, sem detrimento de cada um tirar mais proveito da leitura do livro do que o meu arrazoado. E venham os comentários.

Primeiro, uma parte determinante do modo como vemos o mundo é hoje estranha às nossas experiências. Uma notícia da televisão não é comandável por nós e quando nos indignamos (caso dos cemitérios onde estão militares portugueses nas ex-colónias) é "por termos ouvido dizer". Antigamente também era assim (toda a mitologia nasce de uma narrativa de alguém que conta um conto e acrescenta um ponto).

Os media estabelecem a priori onde vão concentrar a atenção do público, o que pode levar um governo ou um gabinete de imprensa afecta ao governo a gerar factos novos que distraem a atenção dos diferentes públicos enquanto leis impopulares passam praticamente despercebidas. Um líder político pode fazer de manhã uma declaração bombástica que leva a reacções monumentais inesperadas, à noite dá parcialmente o dito por não dito, e no dia seguinte repõe uma parte da verdade, introduz elementos clarificadores e apresenta-se como vítima de interpretações soezes. Qualquer estudioso de comunicação conhece o elementar destas técnicas de manipulação.

Segundo, os blogues não têm nada a ver com esta realidade. Constituem o acesso mais simples e natural em que se oferece a um auditório uma partilha de opiniões e conhecimentos. Nenhum de nós sabe o material que vai encontrar no [nosso] blogue cuja coordenação cabe à abelha-mestra (neste caso, o Luís). Mandamos um documento, filmes, som, entrevistas (ou podemos mandar), o maestro põe a orquestra a funcionar, e quase em tempo real iremos funcionar como um anfiteatro onde se pode conversar segundo as regras que a comunidade (a tertúlia) decretou. Ao contrário do negócio dos media, por detrás de cada blogue está um indivíduo e o seu ponto de vista específico sobre o mundo.

Quando fui entrevistado sobre a decisão do actual governo em liberalizar os locais de venda dos medicamentos não prescritos, no dia seguinte fui massacrado e elogiado em vários blogues. É essa a missão da blogosfera: cada um publica a sua opinião sob a forma de breve comentário, artigo ou mesmo ensaio. Lançado no digital, os outros bloguistas fazem acrescentos, comentam ou fazem links ou mandam mails. É um mecanismo espontâneo em que uns filtram os conteúdos, outros produzem material novo de acordo com o sistema de leitura.

Terceiro, o sistema bloguista é muito rico, pela generosidade que instala, pelo turbilhão de contactos que fomenta, pela abertura às regras de conversação e por ninguém mandar em ninguém. Eu um dia fui contactado pelo Luís, aderi à envolvência e a certa altura acordei comigo próprio em fazer família nesta sala de conversa em que conheço alguns e desconheço muitos, o que não tem importância nenhuma, pois temos estórias para contar e neste caso a História somos nós.

Atenção que a blogosfera não é inofensiva, como os acontecimentos do 11 de Março em Espanha o demonstraram. O bloguista conhece as potencialidades da Rede e as suas conexões: sms, chats, sistema de mensagens, blogues e os demais instrumentos de comunicação que nos conectam. Então não é verdade que um senhor em França garante que Osuma Bin Laden está morto porque viu em blogues que lhe merecem confiança? Este ponto remete-nos para a questão do capital cultural e a especialização a que chegou o blogue.

Imaginem vocês que ando à procura de uma edição do Monte dos Vendavais de Emily Brontë, com prefácio de Albert Camus, edição da Portugália, início dos anos 60. Este livro faz-me presentemente falta para outra conversa que estabeleço no blogue (Operação Macaréu à Vista). Pois pode acontecer que outro bloguista generoso lance o apelo através de links ou mails e a certa altura me escreva e me diz assim: "Eh pá, não estejas num sufoco, tenho aqui o livro para te emprestar" (oxalá que isso acontecesse...).

Somos uma comunidade cognitiva mas também emotiva e confiamos que a nossa opinião precisa de ser efectivamente pública. No blogue, o que dizemos diz respeito a toda a colectividade, somos cúmplices na memória e na revisitação da nossa camaradagem. Mesmo que não escrevamos para o blogue, estamos dentro da atmosfera daquela sala e podemos dar o nosso palpite. Eu que perdi todos os meus papéis até Março de 1969, lembrei-me da história do Fernandes que apareceu em Missirá e logo a seguir um camarada de Mansoa, [o Aires Fernandes,] confirmou que o Fernandes [, o Atleta], está vivo e recomenda-se. A alegria que eu senti, pertence ao blogue.

Quarto, os blogues tendem para a perícia. Neste, por exemplo, a atmosfera é a Guiné, ontem, hoje e seguramente amanhã. Quem quiser estudar a história da Guiné pode contar connosco. Somos umas abelhas que trabalhamos com a abelha-mestra. Agimos por conta própria e se alguém nos pedir auxílio (localização de um militar, de material escrito, de um depoimento...) pode seguramente contar connosco. A tertúlia é descentralizada, no futuro podemos ser centenas de milhares que não saímos das regras acordadas: a questão central é a Guiné. Da Guiné já ninguém nos pode tirar.

Quinto, a blogosfera não é informação mas pode gerar informação. A partir do momento em que o bloguista é sujeito e discursa na praça pública onde gera alfabetização digital, a sua narrativa e os elementos que depõe podem ser, ou não, utilizados como jornalismo. Mas jornalismo e blogue são duas coisas distintas. Um jornal tem editor, fontes oficiais, reuniões diárias do corpo redactorial, é matutino, vespertino, hebdomadário. No blogue não é assim: eu não mando mas falo sempre por mim, sou eu a própria fonte de opinião e estou sempre motivado pela satisfação pessoal.
A mediaesfera (televisão, rádio, imprensa escrita...) pauta-se por regras de eficiência e age de acordo com os interesses económicos, a palavra remuneração tem o poder de uma alavanca. Nós aqui no blogue só recebemos a gratificação de nos sentarmos no anfiteatro e darmos os bons dias ou as boas noites. Somos indivíduos e não uma organização que deliberadamente vai mexer com a informação. Por isso, como diz Giuseppe Granieri, o blogue é uma nova aventura para o jornalismo.

Sexto, somos uma nova forma de participação popular, estamos juntos sem necessitar de exibir o nosso bilhete de identidade cultural: aqui não manda ninguém, chegámos por afecto, e se perdermos a transparência acontece-nos a pior das punições, que é o descrédito de ninguém nos prestar atenção. Como não se pode prever o futuro, é inútil fazermos prognósticos sobre o nosso lugar na Internet. Mas há depoimentos animadores. Ségolène Royal, que talvez venha a ser eleita Presidenta da República Francesa, escreveu um dia: "Levei toda a campanha eleitorial a fazer fóruns. Quando falamos com as pessoas, ao fim do dia estamos cansados mas cheio de ideias. Se continuamos a fazer política só entre nós, nunca chegaremos a nada". O nós também somos nós. De uma coisa estou certo: se os blogues evoluírem, nós, os camaradas da Guiné, assentaremos acampamento numa outra esfera digital. Tenho dito.

Obrigado, malta, pela atenção dispensada.

Mário Beja Santos

(ex-alf mil, cmdt do Pel Cacç Nat 52, Mansambo e Bambadinca, 1968/70,
assessor principal do Instituto do Consumidor).
____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. blogue de Giuseppe Granieri: http://www.bookcafe.net/blog/

Blog Notes, weblog de Giuseppe Granieri (em italiano)

Vd. também entrevista a este guru da blogosfera:

La Rivoluzione dei Weblog: intervista a Giuseppe Granieri (em italiano

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1143: Parabéns, comandante Pedro Lauret, é uma honra tê-lo a bordo (Paulo Santiago)

A LFG Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967.

Foto: © Lema Santos (2006)

O Paulo Santiago, no seu regresso à Guiné, em Fevereio de 2005.

Foto: © Paulo Santiago (2006)


1. Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil, cmdt Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1972/73) a Pedro Lauret (oficial imediato do NRP Orion, 1971/73). Embora privada, a mensagem faz parte das nossas memórias (individuais e colectivas) e diz respeito à nossa tertúlia. Ambos consentiram, na sua publicação:

Caro Comandante:

Acho ser uma honra ter um Tertuliano condecorado com a Ordem da Liberdade (1). Ainda que atrasados, os meus parabéns.

Fui um frequentador, sempre que ía a Bissau - em 72 fui algumas vezes -, do NRP Orion. Conheci o Comandante Rita uma noite em Bissau, não sei precisar quando e onde. Ficámos amigos, assim como do Ten RN Alves da Silva, o Eduardinho, engenheiro silvicultor. É estranho não me lembrar do Imediato daquele navio, possivelmente serias tu. Lembro o Imediato do Comandante Sarmento, não sei o nome, mas encontrei-o em Coimbra onde dava aulas na Faculdade de Ciências.

Voltando ao Orion. Depois de conhecer o Rita, mal chegava a Bissau, procurava logo saber se o navio estava no cais. Se estivesse, regressava ao mato com o fígado em péssimas condições. Em Janeiro de 72 vim do Saltinho de heli para Bissau, em trânsito para Bambadinca, encontrei o Rita que me pediu para lhe mandar fazer um anel em prata no ourives de Bafatá com o nome em caracteres árabes. Depois de feito, fui ao Xime entregá-lo ao Comandante Pires Neves que me trouxe umas botas de fuzo enviadas pelo meu amigo.

Nunca mais encontrei o Rita. Perguntei por ele, há anos, penso que ao Comandante Barreto de Albuquerque - não tenho a certeza-, que me informou ter o Rita sofrido um terrível desgosto com a morte da única filha, com um tipo de cancro raríssimo.

Gostava de encontrar o Comandante Rita. Se o encontrares, dá-lhe um abraço.

Vamos encontrar-nos em Montemor.

Um grande abraço do
Paulo Santiago
(ex-Alf Mil, cmdt do Pel Caç Nat 53)


Foto: © Pedro Lauret (2006)


2. Resposta do Pedro Lauret (actualmente, capitão-de-mar-e-guerra, na reforma)

Caro Paulo:

Fiz a minha primeira metade da comissão com o Rita, um grande homem e um grande comandante. Infelizmente o Rita faleceu há menos de um ano, também com um cancro. Morreu amargurado com a morte da filha. Ficou também muito desiludido por não ter chegado a almirante, o que pessoalmente considero uma grande injustiça. Em 1972 era eu o imediato da Orion, não nos encontrámos provavelmente por eu ter a minha mulher em Bissau e, logo que podia, ia para casa, claro…

A minha mulher é mais veterana que nós, pois o meu sogro era oficial do exército e em 1961 foi como 2º comandante do 114, o 3º batalhão a chegar a Angola, tendo estado empenhado nas operações em Nabuangongo. Fez a seguir outra comissão como comandante de batalhão em Cabinda. Por isso, a minha mulher tem 3 comissões!

Sou também muito amigo do Albuquerque que, infelizmente, também não está muito bem (coração).

O Pires Neves (hoje vice-Almirante) esteve depois comigo no gabinete do Pinheiro de Azevedo. O Sarmento, também vice-Almirante, está bem e vive agora retirado em Trás os Montes. O Alves da Silva não o voltei a ver.

No dia 14 vamos ter muito que conversar.

Um abraço
Pedro Lauret

PS – A Orion tinha a melhor garrafeira da Guiné e o Rita sabia fazer as honras da casa, não me admira dos problemas de fígado quando passavas pelo navio.



3. Comentário de L.G.:

Camaradas Pedro e Paulo:

Partilho, com o Paulo, a honra que tenho/temos de ter, nesta tertúlia, nesta caserna virtual, um camarada que lutou pela nossa liberdade e que foi merecedor de uma condecoração como a Ordem da Liberdade - Grande Oficial… Espero que esse facto não tenha passado despercebido ao resto da tertúlia…


4. Resposta do Pedro Lauret:

Caro Luís,

Agradeço as palavras que me dirigiste. Quando recebemos uma distinção como a Ordem da Liberdade (2), ficamos divididos entre a alegria pelo reconhecimento e por outro pensamos nos muitos que contribuíram, tanto ou mais que nós, e a quem não foi reconhecido o mérito.

Sinto especial responsabilidade pois sendo ex-combatente e colaborado directamente no 25 de Abril, tenho a noção clara que se criou uma relação incómoda entre a “guerra e a libertação” e, o que é mais grave, criou sobre os ex-combatentes um sentimento de inutilidade pelo sacrifício que foram obrigados a fazer. É necessário inverter este sentimento e dignificar gerações que muito deram para que finalmente fosse encontrada uma saída e uma solução.

Envio-te um texto NOTÁVEL do filho do nosso camarada Coronel Carlos Fabião que saiu numa pequena separata a ele dedicada no último número do Referencial, revista da A25A - Associação 25 de Abril. Podes publicar no blogue com as indicações do costume (3).

Sobre os mails com o Paulo, usa como entenderes. Achei piada ele ser visita do meu antigo navio e conhecer bem o Rita que era um homem excepcional.

Um abraço
Pedro Lauret
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra).

(2) A Ordem da Armada, 1ª Série, nº 21, de 24 de Maio de 2006 publica: Ordens Honoríficas Portuguesas: Alvará n° 26/2006, de 9 de Maio: Por alvará de 3 de Março de 2006: Ordem da Liberdade – Grande-oficial: Capitão de Mar e Guerra PEDRO MANUEL CUNHA LAURET.

(3) A publicar proximamente.

Guiné 63/74 - P1142: Um dia no mato: parabéns ao Vitor Junqueira pelo seu texto (Raul Albino, CCAÇ 2402)


O Raul Albino, ex-alf mil da CCAÇ 2402 (Có/Pelundo, 1968/70): ontem e hoje...


Fotos: Raul Albino (2006)
Caro Luís,

Como prometido aqui vão em anexo duas fotografias tipo passe com a minha fronha, uma da época militar e uma actual.

O meu próximo contacto incluirá o meu primeiro artigo respeitante à CCAÇ 2402 (1).

Gostei imenso do artigo do Vitor Junqueira (2), especialmente na descrição da vivência dum militar no mato. Senti-me transportado para aquele local e aquela época.

Se bem que eu não tenha estado em Farim e o meu período de permanencia na Guiné tenha sido entre 68/70, a descrição que ele faz é muito fiel para muitos locais, épocas e intervenientes no teatro de guerra da Guiné.

No meu caso terei passado por quase todas as situações que ele descreve, só que numa data imediatamente anterior à dele. Por exemplo, invejei a descrição do armamento que transportavam para o mato, porque dois anos antes a penúria de armas era tal que para os grupos de combate sairem para o mato minimamente apetrechados, o quartel ficava, para sua defesa, com o morteiro 81 e pouco mais e só porque o morteiro 81 era muito pesado.

Em termos alimentares e de rotina, a descrição está um encanto e fez-me sonhar com aqueles tempos. Os meus parabéns pelo texto e pela forma narrativa alegre e bem disposta.

Até breve, se não for antes, Raul Albino.

____________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

(2) Vd. post de 23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P1141: As (des)andanças do TT Niassa em Dezembro de 1971 (Lema Santos)

Niassa > Navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice, construído em 1955, na Bélgica, registado no Porto de Lisboa, e abatido em 1979; com : mais de 151 metros de comprimento, tinha arqueação bruta de c. 10.700 toneladas, uma potência de 6.800 cavalos e uma velocidade normal de 16,2 nós. Quanto a alojamentos, eram 22 em primeira classe, e 300 em classe turística, num total de 322 passageiros. (Quando transportavam tropas, a sua lotação quadruplicava...). O nº de tripulantes era de 132. Armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa . (LG) (1)

Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2004) (com a devida vénia...)

O nosso camarada Manuel Lema Santos é um enciclopédia viva no que diz respeito a tudo o move na água, em especial os navios (nunca digam barcos, por favor) da nossa gloriosa Armada (1).

Justificando, em tempos (6 de Julho de 2006), algum silêncio (intencional) da sua parte em relação às nossas blogarias, ele escreveu-me o seguinte, a título pessoal:

"Em paralelo com a minha actividade profissional estou a tentar, com outro camarada, levar a cabo uma modesta edição - a possível - sobre a dezena de LFG da Classe Argos (Orion incluída) que ao longo de mais de 56.000 horas de navegação asseguraram as linhas de comunicação fluviais na Guiné - e que outras havia? - coadjuvadas pelas LDG, LFP, LDM, LDP, DFE e CFE.

"Bastarão dois ou três nomes como Mar Verde e Tridente ou, noutra perspectiva, como Cantanhês, Cumbijã, Cafine e Gadamael ou Ganturé, para se ter ideia do que poderá ter representado a participação da Marinha em geral e LFG [lanchas de fiscalização grande] em particular.

"Claro que efectuando pesquisa, recolha de documentos, textos, relatos, etc. de tudo o que existe. É bastante pouco. Sonegado, desaparecido, espoliado, sei lá!

"Continuo a não compreender - até estou a ser repetitivo - como se encara a possibilidade de contribuir para a História recente da Guiné e de Portugal sem a participação da Marinha e da Força Aérea. Instituições diferentes, hierarquias diferentes, filosofias diferentes e até algumas condições diferentes, mas todos igualmente embarcados no mesmo mau navio.

"Em época, local e com conceitos errados, mas pessoas certas e capazes de cumprir as missões para que tinham sido incumbidas ao serviço de um País. Será apenas o futebol que faz cantar a este bom povo o Hino Nacional?"...


Seguramente que não, meu caro Lema Santos. É por isso que nós, que também fazemos parte desse povo, cá estamos no nosso posto, na blogosfera, a fazer o nosso trabalho de casa...

E enquanto tu não acabas o teu (TPC), és bem-vindo e és a pessoa indicada para desfazer umas dúvidas e imprecisões quanto a datas de partidas para (ou chegadas de) a guerra do ultramar (ou guerra colonial, como quiseres)... Não preciso, pois, anunciar que aqui estás tu, galhardamente, a tentar ajudar "com alguns pequenos esclarecimentos", a prestar a felizardos camaradas (Joaquim Mexia Alves, J. Vacas de Carvalho, David Guimarães, entre outros) que, no já longínquo final de 1971, tinham o bilhete de regresso a casa, mas que hoje já trocam o TT Niassa com os Boeing dos TAM. (LG)

Texto do Manuel Lema Santos

1- Em Novembro de 1971 o TT NIASSA foi requisitado pelo Estado e pela O.P.T nº 12.959 foi previsto embarcarem, em 16 de Dezembro, para a Guiné, as seguintes Unidades:

CMD BCAÇ 3872/RI 2 +
CCAÇ 3489/RI 2
CCAÇ 3490/RI 2
CCAÇ 3491/RI 2
CCAÇ 3518/BII 19 (Embarque no Funchal)
CCAÇ 3519/BII 19
CCAÇ 3520/BII 19.

Na viagem de regresso, estava previsto voltarem para o Continente as seguintes:

CCAÇ 2679/BII 19 (Desembarque no Funchal)
CCAÇ 2680/BII 19 (Desembarque no Funchal)
CCAÇ 2681/BII 19 (Desembarque no Funchal)
Pel Can s/r 2199/RI 1
Pel Can s/r 2200/RI 1
Pel Rec Daimler 2202/RC 6
Pel Rec Daimler 2203/RC 6
Pel Rec Daimler 2204/RC 6
Pel Rec Daimler 2205/RC 6
Pel Rec Daimler 2206/RC 6 [o Pelotão do Vacas de Caravalho]
Pel Rec Daimler 2207/RC 6
Pel Rec Daimler 2208/RC 6
Pel Rec Daimler 2209/RC 6
Pel Rec Daimler 2210/RC 6
Pel Rec Daimler 2211/RC 6
Pel Rec Daimler 2202/RC 6
Eq Inst Nat 2224/RI 2

Assinado pelo COR José Herdade Telhada e pelo GEN Barreira Antunes - Director do Serviço de Transportes.

2 - Nada do acima exposto se verificou!

3 - O navio estava em fabricos e por, essa razão, atrasou tudo e foi a partida alterada para 22 de Dezembro de 1971.

(Aditamento à O.P.T. nº 13.179)

Local: Gare Marítima de Alcântara, das 08:00 às 09:30

Pessoal a transportar na ida:

CMD BART 3873/RAP 2
CART 3492/RAP 2 (a Companhia do Joaquim Mexia Alves)
CART 3493/RAP 2 (a Companhia do Manuel Cruz)
CART 3494/RAP 2 (a Companhia do Sousa de Castro)
CART 3521/RAP 2

No regresso o navio veio sem pessoal.

Cap. Bandeira: CFR António José de Matos Nunes da Silva;

Cte. das Forças embarcadas: Ten Cor António Tiago Martins – BART 3873/RAP 2.

Chegada a Bissau em 26 de Dezembro de 1971

Salvo gralha, foi assim a realidade da viagem do Niassa. Espero ter sido útil aos dois e também a toda a tertúlia.

Um abraço,
Manuel Lema Santos
ex-1º Tenente RN [Reserva Naval] (1965/72)
Guiné, NRP ORION, 1966/68


2. Posterior mensagem, dirigida ao Mexia Alves, com data de hoje:

Caro Joaquim Mexia Alves,

Os elementos que vos forneci são rigorosos.

Todos os Transportes de Tropas (TT) eram requisitados por contrato às companhias comerciais e, enquanto ao serviço do Estado, eram enquadrados na hierarquia da Marinha (incluindo obviamente a tripulação), pelo que utilizavam flâmula.

Naturalmente que eram utilizados essencialmente no transporte de FA mas também eram autorizados, a pedido, transporte de familiares, veículos, doentes, prisioneiros, etc. Tudo era tratado entre ministérios.

Para isso era nomeado por portaria um oficial superior da Marinha, denominado capitão de bandeira a quem, sem prejuizo da identidade da própria tripulação e das forças embarcadas, com comando próprio, superintendia o comando do navio do ponto de vista de Marinha.

Como viste na minha mensagem anterior, no TT NIASSA - Lisboa/Bissau, em Dezembro de 1971, não embarcou o Cmd BCAÇ 3872/RI 2, embora tivesse estado programado e não sei porque foi anulado e substituído ou em que transporte foi efectuado, e isto por não ter referências (data de ida ou de regresso e/ou TT).

Um abraço,
Manuel Lema Santos
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXIV: A nossa mobilização para o CTI da Guiné (CCAÇ 12) (Luís Graça)

(2) Vd. posts de:

25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXI: Terra e Ar 'versus' Mar (Lema Santos)

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: A Marinha, as LDG e as LFG (Lema Santos)

2 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVI: Boas vindas ao marinheiro Lema Santos (Hugo Moura Ferreira)

21 de Abrl de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

Guiné 63/74 - P1140: Postais Ilustrados (5): Bajuda manjaca, Ilha de Pecixe (Beja Santos)


Guiné Portuguesa > Postal Ilustrado > Legenda > FF3. Bajuda Manjaca, Pecixe (1). Kodachrome de A. B. Geraldo. Edição da Casa Mendes, Bissau. s/d.

Postal ilustrado enviado, por avião, pelo Alf Mário Beja Santos a uma pessoa sua amiga... Data e local: Missirá [SPM 3378], 18/XII/[1968]. Carimbo do correio de Bissau: 23/12/68. Valor dos selos: 1$80 pesos.

Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)(2).

Escreveu ele neste postal: (...) "O Natal ergue-se desta bruma densa, onde paira a maior parte do dia. Nós todos O sentimos. Talvez com mais força do que aí, pois se sabe se não fizermos uma união autêntica de amizade, todos estão desprotegidos" (...).

____________

Notas de L.G.:

(1) A Ilha de Pecixe fica a leste de Bissau, no estuário do Rio Mansoa, na sua margem direita, frente a Quinhamel.

(2) Vd. post anterior (desta série sobre postais ilustrados da Guiné):

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1125: Postais Ilustrados (4): Rapaz balanta, cesteiro (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1139: A fantástica estória do soldado Fernandes, da CCAÇ 1686, Mansoa (Aires Ferreira)


Guiné > Região do Oio > Mansoa > Jugudul > 1969 > O Alf Mil Aires Ferreira, em Jugudul, a 4 Km de Mansoa, na estrada Bissau-Bafatá. A placa quilométrica assinalava as distâncias para os principais povoações, a leste de Mansoa/Jugudul: Bindoro: 10 km; Porto Gole: 25 km; Enxalé: 47 km; Bambadinca: 62 km; Bafatá: 90km... O troço estava interdito pelo menos até Porto Gole...

Fotos: © Aires Ferreira (2006)

Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas (CCAÇ 1686, BCAÇ 1912, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969) (1)



A estranha estória do soldado Fernandes

Camaradas Luís Graça e Beja Santos, a demora na resposta a este assunto, é apenas devida à minha ausência lá para os lados de Ourém/Leiria por motivos profissionais e de, por lá, não ter acesso à Internet. Aqui ficam as minhas desculpas.

O soldado Fernandes pertenceu à CCAÇ 1686 e o Comandante do seu Grupo de Combate foi o Alf Moreira, que por certo se lembrará destas histórias, muito melhor do que eu.

Lá para o fim de 68, quando a Companhia já tinha uns 18 meses de comissão, a sua actividade operacional foi seriamente reduzida, não só porque estava esgotada, mas também porque houve necessidade de assegurar a ocupação dos destacamentos próximos, que pertenciam ao sector.

O soldado Fernandes - que designarei por Atleta, porque era assim que era conhecido - não era homem dado a grandes meditações e não se enquadrava bem na vida algo sedentária da tropa em quadrícula.

Habituado que estava a uma intensa actividade operacional, passou a organizar, ele mesmo, os seus patrulhamentos, sem dar conhecimento a ninguém. Não sei por quantas vezes se ausentou, talvez umas três ou quatro. Andava sempre com a sua G3 e regressava sempre passados uns dias, como se não tivesse acontecido nada. Não falava no assunto e às perguntas que lhe faziam, respondia sistematicamente com um sorriso envergonhado e um encolher de ombros.

Certo dia, chegou ao Batalhão uma informação dizendo que andava ali na zona um cubano
que assediava tudo o que fosse bajuda ou mulher grande. O Atleta é algarvio e muito moreno.
Quando alguém contou isto na messe, houve gargalhada geral e a exclamação:
- O Atleta!!!

Ninguém apresentou queixa e o assunto morreu.

Passados uns tempos, o Atleta desapareceu de novo e acho que ninguém deu importância ao caso, uma vez que já era quase habitual e era convicção geral que ele voltaria, como sempre fez.

Só que desta vez, apareceu sim, mas passado um mês, ou talvez um mês e meio, e em Mansoa nunca se soube por onde tinha andado ou o que lhe tinha acontecido.

Foi passados 38 anos que através dum Post do Camarada Beja Santos (2), fiquei a saber que o Atleta foi parar ao Destacamento de Missirá e devolvido a Mansoa num DO !

Missirá dista de Mansoa uns bons 60 km, pela estrada Mansoa - Porto Gole - Enxalé - Missirá que, pelo menos no troço Mansoa - Porto Gole, estava interdita, só se passando por lá com uma Companhia e com muita atenção.

Esta estrada passava perto da base do Locher/Changalana,que foi destruída várias vezes e sempre reconstruída nas proximidades. Proporcionou-nos magníficos combates, nos quais participou o Atleta, pelo que conhecia bem esta zona e não acredito que se fosse meter sozinho neste vespeiro.

Aquela história que ele contou, do banho na bolanha, captura pelo IN e fuga, não é verosímil, porque em Mansoa não havia necessidade disso, não havia bolanha onde tomar banho e portanto não havia esse hábito.

Por outro lado, era nossa convicção que se o IN o quisesse apanhar à mão, há muito que o teria feito.

Há que considerar uma outra hipótese, que nos pareceu na altura a mais viável. Por aqueles dias esteve atracada no Rio Mansoa, junto à ponte, uma LDM e claro está, o nosso Atleta não se privou de ir confraternizar com a tripulação e certamente arranjar boleia para qualquer sítio, talvez clandestinamente. Acho que esta é a hipótese mais plausível, ir por via fluvial até lá para os lados de Porto Gole ou Enxalé, que ele conhecia duma operação que fizemos à zona de Mato Cão e daí, então sim, ir a pé até Missirá.

O seu regresso a Mansoa foi muito discreto, nunca soubemos por onde tinha andado e o
Comando do Batalhão optou por silenciar o caso porque de facto não servia de nada punir este soldado, que não devia ter sido mobilizado para a Guiné.

Apesar do susto que apanhou e da fome que terá passado, esta não foi a sua última aventura. Houve mais. Sobreviveu, vive no Algarve e em Abril [de 2007], no nosso próximo almoço de confraternização, lá estará seja onde for, em bom convívio com os seus ex-camaradas.

Um abraço a todos os camaradas da Tertúlia.
Aires Ferreira
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)

(2) Vd. posts:

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)

domingo, 1 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1138: 'Siga a Marinha': uma expressão do tempo da República (?) (Pedro Lauret)

Capa do filme Siga a Marinha (Titulo original: Follow the fleet, EUA, 1936. Realização: Mark Sandrich; Intérpretes: Fred Astaire e Ginger Rogers; distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes) .
Foto: Costa do Castelo Filmes (2006) (com a devida vénia...)

Mensagem do Pedro Lauret (capitão de mar e guerra, na reforma):

Caro Luís,

Sobre a expressão Siga a Marinha penso ser bem mais antiga que a Guerra Colonial (1). Tenho a ideia que surgiu no tempo da implantação da República num incidente militar, dos que então eram frequentes.

Vou tentar saber ao certo, mas posso afiançar que não teve origem na Guiné. Nos anos cinquenta um filme com o Fred Astaire, Follow the Fleet, teve como título traduzido exactamente Siga a Marinha.

Um abraço
Pedro Lauret
______________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1133: Origem da expressão 'Siga a Marinha" (Vitor Junqueira).

Vd. também posts de 1 de Outubro de 2006:

Guiné 63/74 - P1134: A expressão 'Siga a Marinha' , atribuída ao Zé Gaspar, artilheiro, Olossato (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P1135: A expressão 'Siga a Marinha' e a crise dos capitães (Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)

Lisboa > 2006 > Pedro Lauret, capitão de mar-e-guerra na reforma e grande oficial da Ordem da Liberdade.

Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1971/73 > Pedro Lauret, oficial imediato do NRP Órion (1).

Texto e fotos: © Pedro Lauret (2006)


Dados Biográficos:

Nome - Pedro Manuel Cunha Lauret

Local e data de de nascimento – 23/01/49

1960-1967 – Frequência do Liceu Camões em Lisboa, onde foi dirigente da Acção Católica.

1967-1971 – Escola Naval, onde completa o curso de Marinha. Participa activamente nas acções políticas de apoio à Oposição Democrática, em 1969. Participa nas movimentações em torno do Clube Militar Naval, de 1969 a 1971. É fundador do movimento clandestino de oposição ao regime, de oficiais de Marinha, em 1970.

1971-1973 – É promovido a Guarda-Marinha em Julho de 1971, tendo embarcado para a Guiné, em Setembro de 1971, onde exerceu o cargo de Oficial Imediato do NRP Orion. Na Guiné exerceu intensa actividade operacional em todos os rios e braços de mar navegáveis pelo navio (Cacheu, Geba, Buba, Tombali, Cumbijã, Cacine, Bijagós).

Em Maio de 1973 encontrava-se em missão no Rio Cacheu quando se dão os ataques a Guidage, desembarca o Destacamento de Fuzileiros 8 no Jagali, afluente do Cacheu, após terem sido abatidas duas aeronaves (1 DO e 1 T6); nesse dia seria abatida mais 1 DO. No mesmo mês, no rio Cacine é a primeira unidade a chegar a Gadamael depois da retirada de Guileje, evacua, contra a ordem expressa do General Spínola, um número indeterminado (mais de 300) militares e civis que se encontravam fugidos nas margens do rio.

1973-1975 – Participa activamente no MFA integrando a comissão política que redigiu o seu programa.

Após o 25 de Abril integra o Gabinete do Almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado-Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional. É membro da Comissão Coordenadora do MFA na Armada e integra a assembleia do MFA.

Foi condecorado pelo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, com o grau de grande Oficial da Ordem da Liberdade, pela sua acção no 25 de Abril.

É actualmente Capitão-de-mar-e-guerra na reforma.

Exerceu actividade privada na área da engenharia informática.

Faz parte da Direcção da Associação 25 de Abril.

Actualmente lidera um projecto de investigação Histórica com a designação –´“Marinha: do fim da II Guerra Mundial ao 25 de Abril de 1974”.

___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post anterior, P1136.

Guiné 63/74 - P1136: Estórias avulsas (3): G3 ensarilhadas com Kalashnikov, no pós-25 de Abril (Pedro Lauret)

O comandante Pedro Lauret, antigo imediato da LFG Orion, à esquerda, ladeado por Ulisses Faria Pereira, ex-grumete electricista...
Foto: Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005 (com a devida vénia) (1).


Texto do comandante Pedro Lauret (2)

Caro Luis Graça,

Envio uma pequena história, passada comigo, um pouco diferente do usual no nosso blogue, mas penso que tem algum interesse. Se considerares que é de colocar no blogue, força…

Um abraço e até dia 14 [, na Ameira, em Montemor-O-Novo, no 1º encontro da tertúlia].
Pedro Lauret


Uma história simples… ou talvez não

por Pedro Lauret

Pouco tempo passara do 25 de Abril de 1974, era eu então 2º tenente e prestava serviço no gabinete do Almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado-Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional.

Na Guiné, no fulgor da revolução, marinheiros resolveram fazer uma manifestação nas ruas de Bissau, o que foi justamente considerado inconveniente quando foram as Forças Armadas a tomar o poder e a mudar o regime.

O Almirante determinou que me deslocasse à Guiné pois ainda não fizera um ano que terminara a minha comissão e conhecia bem o meio e o ambiente naval.

A minha missão era explicar a nova situação político-militar e apelar (determinar) para que actos de indisciplina não se verificassem, muito menos tivessem demonstração pública.

Acabei por ser acompanhado pelos meus camaradas, Comandante Almada Contreiras e o Major Melo Antunes, dois bem conhecidos companheiros de conspiração, que se deslocavam a Bissau com uma missão, penso eu, bem mais complexa do que a minha.

Chegado a Bissau cumpri a minha missão, penso que com sucesso e tive o grato prazer de abraçar camaradas que ainda não vira após a revolução.

Antes de regressar, os meus companheiros de viagem desafiaram-me para ir com eles a alguns quartéis do Exército para, igualmente, dar alguma informação sobre o que cá se passava - de notar que nessa altura ainda não havia sido decretado um cessar-fogo formal entre as nossas Forças Armadas e o PAIGC.

Deslocámo-nos a um aquartelamento, não sei precisar exactamente qual, mas penso ter sido nas proximidades de Bula pois atravessámos o [Rio] Mansoa em João Landim.

Aí chegados, não pudemos conter o nosso espanto quando vimos ensarilhadas G3 com Kalashnikov e em franco convívio soldados do nosso Exército bebendo generosas Bazookas (3), com guerrilheiros do PAIGC.

O cessar-fogo estava consumado para lá das determinações dos poderes políticos.

Uma história simples…ou talvez não.

Pedro Lauret

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Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de 15 de Junho de 2006 :

Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
(...) A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael. (Público, 26 de Junho de 2005)

Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)
(2) vd posts de:
14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73)

20 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P887: Dois novos tertulianos: Pedro Lauret e Beja Santos
(3) Garrafas de cerveja, de 0,6 l.

Guiné 63/74 - P1135: A expressão 'Siga a Marinha' e a crise dos capitães (Sousa de Castro)

1. Mensagem do nosso camarada Sousa de Castro, o tertuliano mais antigo:

A expressão Siga a Marinha também era muito utilizada no meu tempo de Guiné, CART 3494 - Xime e Mansambo (Janeiro de 1972/ Abril de 1974). Foi o nosso primeiro CMDT, Cap Art NM [Número Mecanográfico] 51322811 - Victor Manuel da Ponte Silva Marques, que a utilizava sempre em qualquer circunstância e nós também por arrastamento a utilizávamos.

Siga a Marinha, Sousa de Castro.

PS - Onde digo "o nosso primeiro CMDT" quero dizer que tivemos mais do que um, foram três. Para além do atrás referido, em Agosto de 1972, foi rendido pelo Cap Art NMº 04309164 - António José Pereira da Costa que acabou por ceder o lugar, por castigo, em Novembro de 1972 ao Cap Mil NM 06383765 - Luciano Carvalho Costa.


2. Comentário de L.G.:

Sousa, levantas uma questão interessante e que eu gostaria de ver aqui discutida. A tua companhia teve três capitães numa só comissão.

A CART 2239 - Os Viriatos (Fá Mandinga e Mansambo, Jan Dez 1968/69), a que pertenceceram camaradas nossos de tertúlia como o António Santos Almeida, o Carlos Marques dos Santos, o Ernesto Ribeiro, o Saagum e o Torcato Mendonça - teve nada mais nada menos do que quatro...

A minha própria companhia, a CCAÇ 12, teve também cinco ou seis capitães, embora num espaço mais dilatado, entre 1969 e 1974 (No meu tempo, 1979/71, só teve o Cap Carlos Brito).

Sem querer tirar conclusões precipitadas e infundadas, isto parece sugerir que os nossos capitães (milicianos ou do quadro permanenente) davam-se mal com o clima... Em gestão de recursos humanos, a este fenómeno (de instabilidade, de gente a sair e a entrar ao longo de um ano) chama-se um turnover ou taxa de rotação de pessoal...

Alguém quer falar do turnover dos capitães ? A que se deve o fenómeno ? Por que é ninguém queria ser capitão ? A pergunta pode ser ingénua, mas tem possivelmente
mais do que uma resposta...
(LG).

Guiné 63/74 - P1134: A expressão 'Siga a Marinha' , atribuída ao Zé Gaspar, artilheiro, Olossato (Paulo Santiago)

Guiné-Bissau > Jugudul > Fevereiro de 2005 > O Paulo Santiago, à esquerda, com o Ten Ká da Guarda Fiscal e o Sado, oficial superior da mesma força e "meu grande amigo". Foto tirada junto à rotunda, em Jugudul (1).

Foto: © Paulo Santiago (2006)


Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1972/73):


SIGA A MARINHA, como diz o Vitor (1), era uma expressão atribuída ao Zé Gaspar, Artilheiro, como gostava de se apresentar. Era o comandante da CART estacionada no Olossato.

Conheci-o em Bissau no dia 6 de Janeiro de 1972, dia em que fiz 24 anos. Apanhou uma monumental bebedeira, o que não era de estranhar. Era um tipo considerado maluco pela hierarquia. Já Major, continuou durante algum tempo como comandante de companhia no Olossato.Veio depois para Bissau como 2º comandante do Agrupamento de Artilharia, ficando célebres as suas partidas ao comandante.

Estranhamente, em 1973, numa reunião de Capitães num monte perto de Évora, o Gaspar estava num carro junto ao Templo de Diana, apontando as matrículas dos carros dos camaradas que iam para a reunião, elaborando uma lista que entregou ao comandante da Região Militar. Morreu pouco tempo após o 25 de Abril.

Paulo Santiago

PS - Estará na altura de falares com o Jorge Neto, para uma conversa ou entrevista, com o Comandante Paulo Malu (3). Posso falar ao Sado. Diz o que achares melhor.

Comentário de L.G.: Vou voltar a contactar o Jorge Neto, que vive em Bissau, a ver se o convenço a entrevistar o Paulo Malu, utilizando os bons ofícios do teu amigo Saldo Baldé. SE o Paulo Malau quiser faklar, terá muitas coisas (e terríveis) para nos contar...


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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (1): Bissau

(2) Vd. post anterior, de 30 de Setembro de 2006 (P1133).

(3) O Paulo Malu terá sido o comandante da força do PAIGC que emboscou as NT na picada do Quirafo, em 17 de Abril de 1972, causando duas dezenas de baixas mortais, entre militares e civis. Vd. posts:

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P955: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (5): O pesadelo da terrível emboscada de 17 de Abril de 1972

20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P975: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (7): ainda as trágicas recordações do dia 17 de Abril de 1972

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)

(...) "Como te disse ontem pelo telemóvel, falei com o Sado. Disse-me para o Jorge Neto o procurar na Direcção Geral das Alfândegas, que ele o encaminhará para o Paulo Malu. Esqueci-me de perguntar se já tinha sido promovido, mas não há problema, o Jorge Neto que procure o Major Sado Baldé , ou possivelmente Tenente Coronel. O meu amigo já sabe o motivo para o encontro com o Malu" (...).

sábado, 30 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1133: Origem da expressão 'Siga a Marinha" (Vitor Junqueira)

A LFG [ Lancha de Fiscalização Grande] Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967 (1).

Foto: © Lema Santos (2006)


1. Mensagem do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Hoje é médico e, segundo julgo saber, vive no Pombal (2).

Caro Luís,

A expressão Siga a Marinha, que utilizo com frequência na abordagem de questões tertulianas, não é da minha autoria.

Embora não me pareça que haja nada desprestigiante quanto à paternidade de tal expressão, ela terá surgido do modo que passo a explicar:

No meu tempo ou pouco antes, terá passado pela zona do Olossato um capitão, comandante de Companhia que possuía uma queda especial para a ironia. Nas comunicações com o QG usava esse seu dom, o que o tornou muito conhecido ao nível mais elevado da hierarquia de então. Parece até que gostavam de o picar e depois... esperar pelo coice!

Um dia, este nosso capitão chegou a ameaçar encerrar a guerra porque estava a ficar sem batatas. Responderam-lhe de Bissau que o Serpa Pinto (3) também fez a guerra sem batatas.
-Então mandem o Serpa Pinto. - retorquiu o bravo capitão.

Noutra ocasião, ter-se-à queixado que era tanta a água acumulada nas poças e charcos em redor do aquartelamento, assim como a chuva que entrava através dos buracos nos telhados, que tornava impraticáveis quaisquer acções militares. Responderam-lhe que também a Marinha operava no meio aquático e não protestava.
-Pois então que siga a marinha. - alvitrou o desempoeirado oficial.

E foi assim que a frase Siga a Marinha entrou na gíria militar do meu tempo com o significado de: embora, vamos a isto, nada de lamentações.

Vitor Junqueira

2. Comentário do editor do blogue (L.G.):

Obrigado, Vitor, por este teu douto, pedagógico e sobretudo oportuníssimo esclarecimento. Há dias, num em-mail que circulou internamente pela nossa tertúlia, a propósito de uma infeliz expressão (rangerices) que ficou consagrada no título de um post (e que eu proponho que se retire, para bem da sanidade mental de todos nós e sobretudo como garantia da nossa leal e sã convivialidade), dizia eu:

"Vamos civilizada e amigavelmente ler e ouvir o que temos a dizer uns aos outros... Vamos esclarecer o que há para esclarecer... E siga a marinha, para usar uma curiosa expressão da autoria do Vitor Junqueira... Sobrevivemos todos à dura guerra da Guiné, não vamos agora massacrar-nos uns aos outros, quarenta anos depois, por questões que de lana caprina"…
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

(2) Vd. post de 23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)

(...) "A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro carregado de bugalhos: Uzi (3) a tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e, pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares para a sua metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um par de GMD, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras, tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada:- Olhos e ouvidos bem abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho! - São as suas últimas recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda seguir a marinha ". (...).

(3) Serpa Pinto (1846-1900): conhecido explorador e administrador colonial português que percorreu África central e meridional para fazer o reconhecimento do território e efectuar o mapeamento do interior do continente.

(4) Pistola-metralhadora, de origem israelita, cujo desenho e fabrico remonta ao princípio os anos cinquenta. Não era muito vulgar o seu uso na Guiné, pelo menos no meu tempo e na zona leste.