Meu caro Luís,
Fico preocupado pela capacidade de retenção da tua memória.
A maior parte dos acontecimentos que aqui descreves são fidedignos. Não te esqueças que eu tive um papel vagabundo nesta guerra. Cheguei a Missirá a 4 de Agosto de 68 e lá permaneci até Novembro do ano seguinte. Só abandonei Missirá porque os soldados estavam fartos daquele tipo de guerra em que eu os envolvi. Depois, parti para Bambadinca, onde era pau para toda a obra. Se quiseres, um dia posso-te fazer esta memória descritiva. Talvez seja útil para os nossos netos. Tenho muito gosto em encontrar-me contigo a partir de Julho. Vê no que te posso ser útil. Penso reformar-me aos 67 anos, se não houver problemas de saúde. Depois, tenho agendado escrever SPM 3778. Caso não te recordes, era o meu endereço na guerra. Manda-me a morada do blogue onde está o meu texto, por favor.
Recebe um abraço do Beja Santos
2. Respondi-lhe no dia seguinte nestes termos:
Camarada e amigo Beja Santos:
Fico contente por saber dos teus planos… Vou ficar à esperar do teu SPM 3778… Que Deus te proteja, como te protegeu na Guiné, e te dê saúde para escrever as tuas memórias… Eu também tenho coisas na calha… Sei que eras católico, eu não…
Quanto à minha memória, é capaz de não ser assim tão famosa… Na Guiné ia escrevendo o meu diário… Memória de elefante tem o Humberto Reis, mas tu sabes como nós somos selectivos… Por exemplo, eu invejava a tua discoteca de música clássica quando ia a Missirá; em contrapartida, só há tempos soube que alguns colegas teus, alferes milicianos, te chamavam o tigre de Missirá… Digo-te isto com ternura, até porque sempre admirei a tua relação com os teus homens… A idade, a maturidade e a distância permitem-nos estas (in)confidências: mas é também para isto que o nosso blogue serve…
O Mário Dias, um durão dos comandos de Brá (1963/66), acabou de escrever isto a teu respeito, e que é lindo:
“Antes de mais, congratulo-me com o aparecimento de novos militares na nossa caserna. Sem desprimor para os restantes, quero saudar o Beja Santos cujo Presépio de Chicri me encantou e comoveu até às lágrimas. A idade tem destas coisas: torna-nos um pouco piegas. Ou será outra coisa? Estou em crer que as barreiras sentimentais que a nós próprios impomos enquanto novos, devido à nossa condição de machos, se esboroam com a idade".
(...) Estou a reunir material para construir uma página só dedicada aos destacamentos de Bambadinca: Missirá/Finete, Fá Mandinga, Ponte Rio Undunduma, Nhabijões… Se tiveres material fotográfico ou outro, a malta agradece… Os direitos de autor ficam sempre garantidos: o seu a seu dono... Num ano, já juntámos mais de 100 camaradas … e alguns amigos, não-combatentes, como o historiador Leopoldo Amadao, o jornalista Jorge Neto, ou o Pepito – Carlos Schwarz – mentor do Projecto Guileje, fundador e director da prestigiada ONG AD – Acção para o Desenvolvimento (estará cá de férias em Julho)…
3. Resposta do Beja Santos:
Meu caro Luís, mentir-te-ia se te dissesse que não me tocou profundamente a carta e os mais conteúdos. Fiquei petrificado a ver a Capela onde eu ia à missa. Assim nasceu o conto que te ofereço para o blogue. E agora pára de fazer chatagens sentimentais, obrigando-me a escrever através de novas revoadas de comoção.
Esta guerra é desinteressante para a geração dos nossos filhos, pois vem no nevoeiro de uma outra época terminal. Passará à moda na geração dos nossos netos. Por isso é que [acções] tão meritórias como aquela que estás a fazer merecem ser apoiadas. Faço Frequências na segunda e fica prometido que quando te telefonar terei à mão as fotografias que me pedes.
Atenção, que já há muita bibliografia sobre a nossa guerra. Por exemplo, o Freire Antunes escreveu dois volumes no Círculo de Leitores. Eu apareço no primeiro, com extracto do meu relatório da operação Rinoceronte Temível e o poema que o poeta Ruy Cinatti escreveu quando lhe mandei o relato que deu origem ao Presépio de Chicri. Recebe um abraço do Mário Beja Santos.
4. Acho que acabei de lhe fazer outra surpresa ao publicar a fotografia que mostra o estado em que ficou o Unimog 404, depois de accionar uma mina, quando o Beja Santos seguia de Finete para Missirá, no dia 15 de Outubro de 1969, por volta das 18h00... Era voz corrente que ele tinha a cabeça a prémio... Ele acaba de o confirmar no magnífico texto que é a carta ao Alcino Barbosa e a que chamou "mais um continho para o teu álbum de memórias" (vd. post anterior).
O Beja Santos não me levará a mal se eu lhe roubar a ideia do título de um dos seus próximos livros e passar a chamar às suas estórias, reais e ficcionadas, SMP 3778 ou estórias de Missirá...
Só uma ressalva: Mário, o blogue não é meu, é nosso... Ficamos honrados com a tua presença, a tua lucidez, a tua frontalidade, o teu talento, o teu testemunho, puro e duro... Como sabes, uma das nossas poucas regras, é o respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)... Aqui, nesta caserna virtual, ninguém é juiz de ninguém... É a única maneira de falarmos, abertamente, sem ressentimentos, das nossas experiências como homens e como combatentes...
Obrigado também pelas publicações que me mandaste pelo correio. Com tempo, farei aqui uma breve recensão dos teus livros, para os nossos amigos e camaradas te conhecerem melhor... (LG)
(...) Estou a reunir material para construir uma página só dedicada aos destacamentos de Bambadinca: Missirá/Finete, Fá Mandinga, Ponte Rio Undunduma, Nhabijões… Se tiveres material fotográfico ou outro, a malta agradece… Os direitos de autor ficam sempre garantidos: o seu a seu dono... Num ano, já juntámos mais de 100 camaradas … e alguns amigos, não-combatentes, como o historiador Leopoldo Amadao, o jornalista Jorge Neto, ou o Pepito – Carlos Schwarz – mentor do Projecto Guileje, fundador e director da prestigiada ONG AD – Acção para o Desenvolvimento (estará cá de férias em Julho)…
3. Resposta do Beja Santos:
Meu caro Luís, mentir-te-ia se te dissesse que não me tocou profundamente a carta e os mais conteúdos. Fiquei petrificado a ver a Capela onde eu ia à missa. Assim nasceu o conto que te ofereço para o blogue. E agora pára de fazer chatagens sentimentais, obrigando-me a escrever através de novas revoadas de comoção.
Esta guerra é desinteressante para a geração dos nossos filhos, pois vem no nevoeiro de uma outra época terminal. Passará à moda na geração dos nossos netos. Por isso é que [acções] tão meritórias como aquela que estás a fazer merecem ser apoiadas. Faço Frequências na segunda e fica prometido que quando te telefonar terei à mão as fotografias que me pedes.
Atenção, que já há muita bibliografia sobre a nossa guerra. Por exemplo, o Freire Antunes escreveu dois volumes no Círculo de Leitores. Eu apareço no primeiro, com extracto do meu relatório da operação Rinoceronte Temível e o poema que o poeta Ruy Cinatti escreveu quando lhe mandei o relato que deu origem ao Presépio de Chicri. Recebe um abraço do Mário Beja Santos.
4. Acho que acabei de lhe fazer outra surpresa ao publicar a fotografia que mostra o estado em que ficou o Unimog 404, depois de accionar uma mina, quando o Beja Santos seguia de Finete para Missirá, no dia 15 de Outubro de 1969, por volta das 18h00... Era voz corrente que ele tinha a cabeça a prémio... Ele acaba de o confirmar no magnífico texto que é a carta ao Alcino Barbosa e a que chamou "mais um continho para o teu álbum de memórias" (vd. post anterior).
O Beja Santos não me levará a mal se eu lhe roubar a ideia do título de um dos seus próximos livros e passar a chamar às suas estórias, reais e ficcionadas, SMP 3778 ou estórias de Missirá...
Só uma ressalva: Mário, o blogue não é meu, é nosso... Ficamos honrados com a tua presença, a tua lucidez, a tua frontalidade, o teu talento, o teu testemunho, puro e duro... Como sabes, uma das nossas poucas regras, é o respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)... Aqui, nesta caserna virtual, ninguém é juiz de ninguém... É a única maneira de falarmos, abertamente, sem ressentimentos, das nossas experiências como homens e como combatentes...
Obrigado também pelas publicações que me mandaste pelo correio. Com tempo, farei aqui uma breve recensão dos teus livros, para os nossos amigos e camaradas te conhecerem melhor... (LG)