1. Segundo poste da série "Cartas" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66).
1.ª Fase: Bissau
Bissau, 17 Maio 1964
Chegámos na quarta-feira à tarde e nem sequer estava gente no cais à nossa espera! Quando toda a tropa desembarcou e se perfilaram as companhias ao longo do cais, depois de uma longa espera à torreira do sol é que por fim lá apareceu um jeep com alguém mandatado para nos dar as boas-vindas. Um soldado até desmaiou por não aguentar a espera.
A cidade é pequena e parece muito
mal arrumada, quer dizer sem ordem nenhuma, as casas são construídas à toa e as poucas ruas que há, são todas uma porcaria. Aliás o mesmo adjectivo poder-se-ia aplicar a todos os substantivos da Guiné, ou pelo menos de Bissau. A organização militar é uma lástima, os soldados andam por aí como vagabundos, todos sujos e vestidos como lhes apetece. Os oficiais mais parecem desregrados contrabandistas de marfim ou sinistros mercadores de escravos. Enfim, tudo uma corja que quase nem sequer dá pela nossa presença, quanto mais regozijar-se com a nossa chegada.
Para arranjarmos onde dormir tivemos de pedir tudo emprestado, desde mantas até um recinto coberto onde pudéssemos improvisar um aquartelamento e armazenar as nossas coisas à medida que fossem descarregadas do navio. Agora, que já se passaram uns dias, a situação vai melhorando graças ao nosso espírito de equipa e vontade de pôr todas as coisas no seu lugar.
O nosso material (armas, equipamentos, etc.) tem vindo a ser paulatinamente descarregado do navio e eu, de há dois dias para cá, tenho-me encarregado de ir buscar os caixotes, abri-los e conferi-los.
Assim estamos mais contentes, porque temos marmitas, cantis, armas (as novas G-3), tudo novinho em folha e até apetece sair para o mato para fugir do meio desta cáfila de brancos preguiçosos e aldrabões. Sim, porque os verdadeiros terroristas são os brancos (tanto militares como civis) que apenas pensam em explorar ao máximo toda e qualquer criatura que se lhes atravesse pela frente.
Aqui em Bissau não há nada, é uma cidade morta. Com tanta água que há, todos os dias é cortado o abastecimento por largos períodos. Para se arranjar água potável é um caso sério. Mas enfim, mal ou bem, o que interessa é que cá se vai vivendo com boa disposição.
Quanto à nossa actividade militar propriamente dita, deveremos ficar por aqui um mês, pelo menos, sendo depois, ainda não é certo, enviados para o mato, para um local onde já esteja tropa instalada. Não há grande pressa em acabar com o
terrorismo. Parece que toda a gente está á espera de que
eles cheguem até aqui, a Bissau, para então se verem obrigados a embarcar às pressas e regressar à Metrópole. Até o nosso próprio capitão ficou enjoado só com o aspecto e desorganização dos militares.
O gira-discos já funciona. Os meus soldados, no entanto, ficaram decepcionados, pois julgavam que os discos seriam de música folclórica, fados ou qualquer coisa do género que lhes lembrasse a terra deles. Não sou muito convincente a fazê-los gostar de jazz.
Finalmente dispomos agora de instalações próprias, numa granja situada nos limites da cidade.
Funcionava aqui uma antiga Escola Agrícola e dizem que o próprio Amílcar Cabral teria cá estudado.
Segunda-feira teremos talvez um jeep para cada oficial. A única coisa que incomoda é o calor. Fartamo-nos de beber refrigerantes e cervejas tudo devidamente bem gelado como também é norma por aqui, felizmente.
O dinheiro da Metrópole vale mais 20%.
Bissau, 26 Maio 1964
O calor é um facto consumado. Creio que até já nem me lembro de conhecer outra temperatura. Não se pode fazer um esforçozinho sem que se fique logo a suar em bica. Todos os dias tomo vários chuveiros de água fria para remediar um pouco.
Nestes primeiros quinze dias que se passaram, o tempo foi ocupado com pequenos trabalhos nas instalações que foram colocadas à nossa disposição na tal granja, a chamada Granja do Pêssubê como vim depois a saber. Trata-se de um barracão em cimento, coberto com folhas de zinco, com várias divisões, ficando a ser a maior delas para a caserna dos soldados, a mais pequena para a
secretaria, outra para guardar os víveres, e uma outra, maiorzinha, onde fica arrecadada todo o restante material e onde estão também instaladas várias camas para os sargentos e oficiais que entretanto não conseguiram alojamentos próprios nas Messes respectivas junto do Quartel-General. Um deles fui eu. Preferi dormir na Granja junto dos soldados. No entanto, todos os dias tenho um jeep que me leva até à Messe dos Oficiais, para poder tomar os meus duches, almoçar e jantar.
Já recebemos quase todo o equipamento, só nos faltando as viaturas, os rádios e o material de cozinha. Tudo o que temos vindo a utilizar é emprestado. É possível que nem cheguemos a sair aqui de Bissau, pois estamos a fazer serviço de guarnição aos vários pontos estratégicos da cidade.
Esta, afinal, não é tão ordinária como me pareceu à primeira vista. Para quem vem do mar, parece ser apenas um aglomerado de dois ou três barracões mal alinhados ali junto ao cais. Mas entrando terra adentro vamos descobrindo muitas ruas e avenidas, bem alinhadas e densamente arborizadas. Existem bastantes casas comerciais, tipo
drug-stores ao estilo norte-americano, vendendo as coisas mais diversas, loiças, electrodomésticos, discos, fazendas e chouriço de porco, tudo junto. Duas ou três esplanadas, um campo de jogos bastante jeitoso e até um cinema, que dá sessões todas as noites, ajudam a relaxar e a passar o tempo.
Hoje até sou capaz de o ir estrear. Vai “
O Homem das Pistolas de Ouro” que já vi aí há um bom par de anos, mas que não me importo de ver novamente.
No passado sábado fiz a minha melhor compra aqui em Bissau: uma belíssima máquina de filmar de 8 mm, uma Yashica totalmente automática e com motor eléctrico. Vou-me fartar de fazer filmes com as primeiras imagens a preto e branco da “
Minha Ida à Guiné”.
A gente de cá, os Negros bem entendido, é boa gente. (Tão boa que a maior parte deles já não nos consegue aguentar mais e, decidiu ter chegado a hora de alterar este estado de coisas).
Mas as crianças que enxameiam de volta do acampamento, sempre aproveitando os restos da nossa comida, são muito engraçadas, simpáticas e muito comunicativas, fazendo que até nos esquecêssemos de qual o verdadeiro motivo que nos trouxe a estas paragens. Claro que eu sou um bocado suspeito quando faço tais apreciações, pois vim a saber que me chamam
o alferes bonito. Elogio que se deverá, talvez, ao facto de ser o mais
gordinho e risonho, sempre disposto a confraternizar com eles.
O custo do nível de vida, pelo menos em Bissau, é um pouco alto, isto é, as coisas são em regra mais caras do que aí, na Metrópole. A cerveja, por exemplo, custa 15$00 por garrafa, embora sejam garrafas maiores, talvez o dobro das de aí. E não imaginam o consumo que se faz de bebidas geladas! O calor ataca toda a gente, brancos e negros.
Estamos agora em plena estação das chuvas e por duas ou três vezes já caíram grossas bátegas de água, acompanhada de relâmpagos pavorosos. Pelo que dizem ser o habitual, a estação até vai bastante atrasada. No entanto os mosquitos não deixam de atacar com toda a sua ciência de voo picado. O que me tem valido é o mosquiteiro que mandei fazer para a minha cama. Fica a cama mais quente, mas é um sono tranquilo.
Correm boatos que a nossa comissão de serviço irá ser diminuída para dezoito meses, mas não se fiem muito.
Outra coisa: do meu vencimento, vou deixar aí na Metrópole, uma parte, cerca de 3.400$00, que o pai me fará o favor de levantar no BC9, todos os meses, entre os dias 21 ou 23 mais ou menos, e depositar na minha conta da Caixa. O que cá me resta chega e sobra para as despesas.
Apesar de estar em África ainda não vi um bicho a que se possa chamar uma fera, a não ser duas jibóias dentro de uma jaula de vidro. Aves é que abundam, principalmente os abutres que aqui são conhecidos por
jagudis.
Bissau, 05 Junho 1964
Todas as semanas tomamos dois comprimidos de Resoquina para prevenir o paludismo. Agora o velho quinino tem outro nome. Quanto a vitaminas, há sempre fruta às refeições, boa e variada.
Ontem à noite houve cinema na Messe dos Oficiais. Com uma máquina de projectar de 16 mm improvisou-se uma sala de espectáculo mais ou menos decente. O filme era o já estafado, mas ainda em bom estado, “
O Costa do Castelo”. No entanto foi pena que se tivessem esquecido em Lisboa da última bobina, pois todos ficámos sem ver o final. Mesmo assim ouviram-se boas gargalhadas.
Também já acabei o meu primeiro filme, onde apareço nos planos finais. Vou agora pensar como é que o poderei mandar revelar e enviar para aí, para vocês o verem. Tem algumas cenas
perigosas, de modo que tenho de ter alguns cuidados…
(Quando deambulava por Bissau, vestido à civil, à procura de motivos para filmar achei importante embora, arriscado também, fazer alguns planos de um parque de viaturas militares (completamente destruídas, talvez pela acção do inimigo, minas, granadas, tiros, sei lá, ou até talvez apenas por acidente), para demonstrar que a guerra existia mesmo, apesar de toda a propaganda branqueadora do governo. Não tardou muito a ser interpelado por um militar, um capitão encarregado daquele depósito de sucata que desconfiado me interrogou sobre o que estava ali a fazer. Só depois de me ter devidamente identificado como oficial e lhe ter assegurado que estava apenas a filmar um camaleão numa árvore (!) é que fui mandado embora, incólume e sem que a máquina me fosse apreendida.)
No dia 10 (de Junho) vai haver um desfile militar, no qual não tomarei parte, pois não fui escalado para o efeito, pelo que não me poderão ver na televisão, se esta cobrir o acontecimento.
Bissau, 19 Jun.1964
Ontem fiz uma emboscada.
Não apanhei ninguém, mas, em contrapartida, fiquei todo mordido pelos mosquitos. Até através da roupa, eles picavam. Tenho de começar a usar
repelente.
Quanto às minhas aventuras não tenham receio, nunca faço as coisas sem ser a 200% pelo seguro. Nunca deixo as coisas
à larga só porque dizem que aqui à volta de Bissau não há nada. Exijo o máximo de cuidado e vigilância aos meus homens e parece-me que estou a alcançar bons resultados.
Continuamos ainda em Bissau e julgo que ficaremos por cá algum tempo.
Nesta última semana houve um atraso nos aviões militares de modo que até recebi cartas antigas depois de outras mais recentes.
Bissau, 27 Jun. 1964
Inesperadamente, o meu aniversário foi comemorado aqui, como um verdadeiro dia de festa, pois tanto eu como o 1.º sargento e um cabo fazemos anos no mesmo dia (23 de Junho). Assim o capitão aproveitando a coincidência decidiu que esta data se deveria comemorar com o máximo de brilhantismo possível. O alferes Cardoso encarregou-se de tudo, tal como ele gosta de fazer e, à noite, os soldados tiveram rancho melhorado e os sargentos e oficiais jantaram todos juntos numa grande mesa cá fora ao ar livre. Todo o recinto estava iluminado por candeeiros Petromax e outras lanternas a petróleo. Nas árvores até havia grinaldas e balões de papel colorido. Pareciam as festas dos Santos Populares. E não faltou o folclore, pois às tantas, os soldados vieram para defronte de nós, tocar acordeão e dançar o vira. O capitão fez um discurso, declarando que daqui para a frente, aquele dia passaria a ser festejado como o dia da nossa Companhia.
Liguei o gira discos e ouviram-se, no maior silêncio, alguns fados cantados pelo Alfredo Marceneiro, que me tinham emprestado. No fim houve distribuição de vinho do Porto e toda a gente cantou e dançou como se estivesse numa romaria aí na nossa terra.
Mais tarde, na companhia do capitão e do alferes Cardoso, fui até o bar da Messe dos Oficiais acabar a noite, bebendo leite gelado e comendo os bolos que os meus pais me tinham mandado.
Mas algo de muito mais importante sucedeu nestes últimos dias que quase conseguia apagar da minha memória as recordações dos festejos do meu dia de anos.
Foi o meu baptismo de fogo, ocorrido na noite do dia 25 para o dia 26 de Junho.
Mas comecemos pelo princípio.
No dia 22 avisaram-me para preparar o meu Grupo de Combate, pois iríamos tomar parte, a 25, numa acção a nível de um Batalhão (um Batalhão tem três Companhias). Assim o fiz e, no dia marcado, pelas duas da tarde, lá partimos, o meu Grupo, o do alferes Carvalho e o do alferes Barros, um alferes de uma outra Companhia mais antiga que se veio juntar a nós para nos apoiar com a experiência que já tinham destas situações. No grupo de comando além do nosso capitão, iam também o alferes médico o enfermeiro e um cabo telegrafista.
Deslocámo-nos em 10 viaturas de caixa aberta até
Mansoa, onde chegámos por volta das 18H30. Vieram receber-nos os oficiais de lá (um tenente-coronel, vários capitães e alferes).
Mansoa é uma vilória pequena, mas, segundo parece, de grande importância estratégica. Tem meia dúzia de casas em pedra e cal, um aquartelamento rodeado por arame farpado e uma central eléctrica alimentada por um gerador a diesel.
Como só sairíamos dali às 23H00, abancámos para jantar.
À hora prevista saímos em direcção a
Porto Gole, onde nos estaria esperando mais um pelotão para reforçar a nossa coluna e nos guiar até ao nosso objectivo, algures um pouco a norte de
Enxalé. Não vos digo mais nomes porque também não os sei e também porque não devem vir mencionados no mapa escolar que têm aí.
Prosseguindo por uma estrada de terra batida como são quase todas aqui na Guiné, entrámos definitivamente em território que sabíamos ser controlado pelo inimigo. A coluna tinha agora uma dúzia de viaturas lideradas por uma auto-metralhadora que seguia na frente para nos dar a sensação de alguma segurança.
O estado da estrada era péssimo e por diversas vezes as viaturas por pouco não capotavam quando metiam as rodas nos enormes buracos formados nas bermas da picada. Como a noite era escuríssima, podem imaginar o estado de pânico que começou a apoderar-se de todos nós, amontoados a esmo e violentamente sacudidos dentro das caixas abertas das grandes camionetas GMC que rosnavam teimosamente pelo meio do capim que não nos deixava ver o caminho. As paragens sucediam-se constantemente, ou por dificuldades de progressão no terreno, ou por razões de pura precaução, pois era impossível não estarmos já a ser detectados pelo inimigo.
No camião onde eu seguia, disfarçado, sem galões para parecer um simples soldado, como mandam as regras da contra-guerrilha, os homens nem murmuravam, tensos pela espera, constantemente sacudidos pelos violentos solavancos da viatura. Alguns não aguentando mais, vomitavam desesperadamente para o vazio, debruçados nos taipais. Outros a quem os intestinos pregaram a partida, aproveitavam as constantes paragens, saltavam fora e mesmo ali, no meio da mais completa escuridão, aliviavam-se de qualquer maneira. Quando a camioneta arrancava era uma aflição para recuperarem o lugar vago junto dos companheiros. Cada vez era maior a barafunda e a mais completa desorganização. Tudo o que tínhamos aprendido nos livros estava a ruir em total desastre. Era o salve-se quem puder de um bando de toupeiras atarantadas.
A horrível viagem só terminou às 03H30 da madrugada, no meio de uma enorme recta coberta de lama que atravessava de lés-a-lés um extenso arrozal agora abandonado. Dali para a frente o resto do percurso seria a pé. Reorganizada a coluna, formada pelos vários pelotões, embrenhou-se então pelo mato que ladeava a bolanha.
Entretanto, com o nascer da lua, a noite tornara-se magnífica. O luar era tão intenso que tudo iluminava como se fosse dia. Naquela região o mato (ou seja a selva) parecia um verdadeiro jardim tropical. Por várias vezes não pude de deixar de me sentir maravilhado olhando em redor, aspirando todos aqueles perfumes espalhados no ar.
Em fila indiana, seguia primeiro o pelotão do Guedes, o oficial que comandava o grupo de soldados que se tinha juntado a nós em Porto Gole, depois ia eu e o meu grupo e atrás vinha o pelotão do Barros. O Carvalho tinha ficado na retaguarda, incluído na reserva do Batalhão.
Aliás já em Mansoa, quando o capitão nos perguntou qual de nós dois queria ficar na reserva, (perante o silêncio embaraçoso do Carvalho), eu, talvez com alguma daquela bazófia aprendida em filmes de aventuras, não vi outra saída senão oferecer-me como voluntário para avançar…
Pelas 06H30 da manhã do dia 26 estávamos perto do objectivo, um acampamento inimigo, descoberto pela aviação que, conforme o combinado, veio iniciar o ataque com um bombardeamento cerrado à clareira que divisávamos à nossa frente, findo o qual deram por terminada a missão deles e regressaram à base.
Recomeçámos então a caminhar para lá, na direcção do tal suposto acampamento. À medida que progredíamos íamos encontrando algumas casas de mato abandonadas, escondidas no meio da vegetação.
De repente ouviram-se vários disparos. Um dos nossos soldados, que seguia na frente, viu ou julgou ver qualquer coisa que se mexia e, sem hesitar, disparou uma rajada.
Ficámos de repente como que paralisados sem saber o que fazer, mas num abrir e fechar de olhos todos se atiraram ao chão procurando abrigo atrás da mais insignificante árvore que estivesse por perto, disparando em todas as direcções.
Tinha chegado o momento. Era agora que a guerra iria começar. As nossas vidas estavam a ser colocadas na balança do destino.
Nos primeiros instantes fiquei de tal maneira baralhado que não descortinava onde estavam os meus homens, pois cada um tinha-se protegido o melhor que podia, sem qualquer preocupação de manter a formação em que seguíamos, tal como tantas vezes tínhamos executado nos treinos. No meio de uma gritaria tremenda e só depois de muitos berros com palavras de comando é que pude, juntamente com a ajuda de alguns sargentos e, atirando para trás das costas todas as normas de prudência, conseguir finalmente disciplinar e organizar minimamente o meu pelotão. Os furriéis alguns tanto ou mais espavoridos do que eu não pareciam querer recuperar à medida que tudo se foi acalmando.
Finalmente chegou-se à conclusão que tinha sido um falso alarme. O inimigo não dava mostras de verdadeiramente existir, apesar daquele alarido todo.
Mas a maioria de nós ainda não queria confiar. Após um difícil cessar-fogo, verificámos que afinal nada havia por ali, senão cabanas desertas, abandonadas talvez à pressa. Queimámos tudo à medida que prosseguíamos, embrenhando-nos cada vez mais pelo mato. Mas agora, comigo à frente, pois os
velhinhos recusaram-se, alegando que como já estavam a pouco tempo do fim da comissão, não estavam para se arriscar desnecessariamente. De modo que, obedecendo às ordens do capitão, não tive outro remédio senão ocupar o início da coluna.
Ainda tivemos mais alguns alarmes falsos e eu ia ficando rouco de tanto berrar, tentando que os meus soldados não disparassem como doidos sem saber para onde nem porquê, à mínima agitação da folhagem que nos envolvia.
Por vezes surgia até o perigo de nos matarmos uns aos outros, com alguma bala perdida. Mas finalmente veio a calma e a confiança e lá continuámos em direcção ao objectivo que estava a ser custoso de alcançar.
Entretanto íamos encontrando, debaixo das árvores, mais casas de mato escondidas que não estavam assinaladas nos nossos mapas. Toda aquela área dissimulava um enorme acampamento que abrigava dois grupos inimigos, o do Caetano e o do Nicolau, nomes que só nessa altura vim a conhecer.
Connosco iam também quinze soldados nativos de etnia Fula (nossos amigos) que além de ajudarem a carregar as munições mais pesadas de bazuca e de morteiro, sempre que encontrávamos um acampamento, largavam tudo para fazerem o saque. As roupas e utensílios de cozinha eram deixados para eles. Os colares e outras coisas sem importância eram para os nossos soldados.
Encontrámos várias fotografias de supostos chefes inimigos e facturas de casas comerciais que até então me eram desconhecidas mas que poderiam vir a revelar-se de algum interesse.
Quando finalmente chegámos à grande clareira, encontrámos quatro velhos (dois homens e duas mulheres) que se deixaram capturar sem resistência. Um deles tinha aspecto de
homem grande mas não deveria ser um chefe importante pois, obviamente, não teria sido abandonado assim, na precipitação da fuga.
De repente, de uma moita bem perto do local, onde momentos antes, tinha parado o nosso capitão, surgiu um negro que desatou a correr. Os soldados que se encontravam mais perto abateram-no logo com uma quantidade exagerada de disparos, ávidos que estavam por matar. Não satisfeitos por finalmente terem abatido um inimigo, um deles, num acto de pura selvajaria, cortou uma das orelhas do cadáver exibindo-a como se tratasse de um troféu de caça.
Mas as barbaridades não ficaram por aqui. Como uma das velhotas era cega e mal se aguentava de pé, o capitão deu ordens para que a libertassem. No entanto, soube depois que um dos soldados mais velhos, do pelotão dos
veteranos, a matou com uma violenta cacetada na cabeça deixando-a ali estendida no meio dos destroços do acampamento.
Depois de tudo revistado e pouco ou nada de valor ter sido encontrado, regressámos à estrada onde tinham ficado as viaturas, trazendo os prisioneiros atados de mãos atrás das costas e ligados uns aos outros pela cintura.
Durante toda a operação, por mais incrível que pareça, não disparei um único tiro, nem meti o bedelho no tratamento aplicado aos prisioneiros que se fartaram de apanhar tareia. Foi um espectáculo que nos envergonhou, tanto a mim com ao capitão. Prometi a mim mesmo que, sempre que sair com o meu pelotão, não permitirei tais barbaridades. Matarei apenas para não ser morto. De certeza que os meus soldados saberão respeitar-se muito melhor como homens.
Regressámos a Mansoa perto das 17H00. Comemos qualquer coisa e voltámos a Bissau já de noite. Sim, porque aqui às 19H30 já é noite.
Estávamos todos bastante cansados, depois de uma noite em branco com dez horas seguidas de marcha através de bolanhas e do mato mais cerrado. Quando caí na cama, adormeci imediatamente só acordando às 10 horas da manhã seguinte, de sábado.
Bissau, 26 Jul. 1964
Hoje estou de
oficial de dia no quartel do Batalhão 600, para onde nos mudámos há dois dias Deixámos a Granja onde não tínhamos água canalizada nem energia eléctrica. Agora estamos melhor instalados. Com esta mudança passo a fazer menos vezes de oficial de dia, pois como somos agora quinze oficiais, só estou de serviço de 15 em 15 dias.
Todos os dias desembarcam novos Batalhões, até perfazerem os 7.000 militares que o novo Governador (Arnaldo Schultz) tinha pedido.
A cidade vê-se aflita para albergar tanta gente. Os altos comandos aparentemente nada fazem quanto a isso e até dá a impressão de não estarem a par da chegada dos novos contingentes, pois nada está preparado para eles, quando cá chegam.
Em todos os oficiais, recém-chegados, nota-se logo um certo ar de desprezo e de espanto por nós e por tudo isto, a par de uma amargura enorme por terem cá vindo parar.
São unânimes em considerar completamente inacreditável, este estado de coisas.
Os que, como eu, já têm dois meses de Guiné, não se exaltam, nem bradam aos céus por tudo e por nada. Rimo-nos e fazemos chacota, demonstrando a máxima descontracção. Não nos importamos que algo funcione mal, até porque sempre funcionou assim.
E, se calhar, nem saberia funcionar doutro modo. Chegámos àquele ponto em que já nos damos por satisfeitos por a buzina, do nosso jeep empanado na berma da picada, ainda tocar.
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 14 de Agosto de 2009 >
Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo