sábado, 22 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4851: Parabéns a você (21): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Os Editores)

No dia 22 de Agosto do ano da graça de 2009, faz anos o nosso camarada José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav que comandou o Pel Rec Daimler 2206 que andou por Bambadinca e arredores nos anos de 1970/71/72. Boa parte da Tertúlia conhece o camarada Vacas de Carvalho desde o I Encontro da Tertúlia em Montemor-o-Novo, mais propriamente na Ameira. Daí para cá só faltou este ano, por uma boa causa familiar, felizmente. Granjeou grande simpatia pelo que se notou a sua ausência e a da sua viola. Onde estiver e se acompanhado de outros intrumentistas, que os temos e bons, há sempre bom fado. De acordo com os registos no blogue, pode-se ouvir várias letras adaptadas (atapetadas, como diria um amigo meu) à nossa experiência de vida na Guiné, acompanhadas pela música de conhecidos fados de Lisboa. Bonito de se ver. E então se forem cantados pelo vozeirão do nosso camarada Mexia Alves... Tem, Vacas de Carvalho, um sentido de humor apurado, prova provada a mensagem que se segue: Mensagem do J. L. Vacas de Carvalho, com data de 22 de Outubro de 2006: O que se passou na Ameira faz-me lembrar um ditado árabe que passo a escrever: ??????? ??????? ?? ?????? ?????? ??????. ???????? ???????? ? ??? ??? ?????? ???? ??????? ( ???? ????? ??? ??? ? ???? ?????? ? ??? ????? ?????????? ???? . ????? ?????????? ?????? ?????? ?? ????? ??????????? ????? ?? ?????? ????? ???? ?????????? ?? ???? ??????? ? ????? ??????? ?? ????? ?????. ???? ??????? ? ??????? ??? ??????? ?? ??? ???????? ???????? ??? ????? ?????????? ???????? . ??? ??????? ???? ?????? ??? ?????? ???? ??????? ( ???? ????? ?????????? ??? ????? ? ?????????????? Creio que isto nos assenta que nem uma luva. Pensem nisso... Um abraço Zé Luis Ao nosso aniversariante de hoje, deixamos os mais sinceros votos de que este dia se repita mais umas vezitas, poucas, talvez umas 40, para não pedir muito, cheios de boa disposição, para tirar da viola aqueles sons tão portugueses do Fado de Lisboa. Que pela vida fora esteja sempre acompanhado por quem mais o ame, seja familia ou amigos, entre os quais nos consideramos. Fotos ao acaso: O Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/72). Era (é), além de um companheirão, um exímio cantor de fado e tocador de viola... (LG)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > Coluna logística ao Xitole... Pessoal em cima de um Daimler, do Pel Rec Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/71). Da esquerda para a direita: O Fur Mil Op Esp Humberto Reis (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), o Alf Mil Cav Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler 2206, o Fur Mil Enf Godinho (CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72) e, por fim, o Fur Mil At Inf T. Roda (CCAÇ 12)

Fão, Esposende > 1994 > Encontro da malta de Bambadinca (1968/71): CCS do BCAÇ 2852 (1969/71), CCAÇ 12 (1969/71), Pel Daimler 2206 (1970/71) e outras unidades adidas. Na foto, da esquerda para a direita, o Reis, o Sousa, o Carlão e o Vacas de Carvalho. Fotos: © Humberto Reis (2006) Direitos Reservados

Guiné-Bissau > Zona Leste > Estrada Xime - Bambadinca > Carreira de tiro > 1971 > O Alf Mil Cav José Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206, foi também instrutor de tiro de "duas ou três companhias de milícias", numa altura em que aumentava a escalada da guerra e se intensificava o esforço de africanização das NT. "Eu estou atrás do General Spínola. Ao meu lado direito está (parece-me) o Fabião e logo a seguir o Polidoro Monteiro. E atrás, de óculos escuros, parece-me ser o Tomé". Foto: © J.L. Vacas de Carvalho (2006) Direitos reservados

10 de JUNHO de 2009, DIA DE PORTUGAL > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto. O Jorge Cabral cercado pela PE. Foto: © Mário Fotas (2009). Direitos reservados

Lisboa, Belém, Forte do Bom Sucesso > 10 de Junho de 2009 > Mini-encontro do pessoal da Tabanca Grande > O Mário Fitas e o J. L. Vacas de Carvalho (uma família que mandou, pelo menos, três dos seus homens para a guerra. Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

Ameira, 2006 > Vacas de Carvalho dedilha a sua viola sob o olhar e ouvidos atentos dos circunstantes.

Pombal, 2007 > Vacas de Carvalho em conversa com alguns camaradas

Monte Real, 2008 > Vacas de Carvalho e David Guimarães acompanham Mexia Alves
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 Notas de CV: 

Sobre J.L. Vacas de Carvalho, vd. postes de:










sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)

1. Mensagem de José Teixeira, (*), ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 20 de Agosto de 2009:

Camaradas.
Agora que está a chegar o fim das férias, fui buscar ao "meu diário" mais um texto para a nossa estória de combatentes.

Fraterno abraço para todos
José Teixeira

Mampatá 1968 > O meu abrigo


O BU… RAKO EM QUE CAÍ

Do “meu Diário

Setembro, 1968 /Mampatá / 20


Estou a escrever sentado num tosco banco de três pernas, de fabrico artesanal, que me foi oferecido pelo Aliu Baldé, o Chefe de Tabanca, nos primeiros dias em que cá cheguei.

Estou debruçado sobre uma mesa engendrada por algum habilidoso, que por aqui passou. Quatro paus espetados na terra, com a parte superior em forma bifurcada, onde assentam outros dois na horizontal. Por cima, duas tábuas, eis uma escrivaninha à maneira.

A meu lado, uma candeia improvisada, dá uma ténue luz, a suficiente para iluminar este buraco de cerca de três por quatro metros. Uma garrafa de cerveja cheia de gasóleo, um furo na cápsula e uma gaze a fazer de torcida. Esta é a luz que nos alumia nesta habitação/abrigo subterrâneo, cujo tecto é construído com troncos de palmeira, sobrepostos com terra e chapa alongada de bidons de combustível e por cima chapas de zinco. Habitáculo de sapos, sardões, formigas, camaleões e cobras, possivelmente.

Ainda há dias, na Chamarra, um camarada, quando à noite, se dirigiu ao abrigo e se foi deitar, deparou com uma companhia inusitada a mexer-se por debaixo dele. Tinha como companheira de cama uma cobra que dormia o seu repousante soninho, protegida pela capa de oleado que usamos quando saímos em tempo de chuva. Felizmente, a capa que servia de lençol foi a sorte do camarada e o azar da bichinha que ali mesmo perdeu a vida.

No chão deste apartamento estão três colchões pneumáticos onde repousam dois corpos jovens cheios de vida e esperança no futuro. O terceiro é a minha cama. Já temos madeira para engendrar umas camas que terão de ser baixinhas para não darmos com a cabeça no tecto.

É o local de esperança para onde toda a gente corre quando se ouvem sinais da presença do inimigo. Longe ou perto, as nossas almas ficam em sintonia com os que estão a embrulhar. Surgem comentários e palpites. Uns reflectem esperança, outros, pessimismo e desânimo.

E... há um respirar fundo, quando volta o silêncio, sinal de que a contenda acabou.

Aqui funciona o posto de rádio de Mampatá. Eu como enfermeiro estou aqui por empréstimo. Permite-nos saber, rapidamente, onde há camaradas em perigo nas tabancas que estão a ser atacadas. Sobretudo estamos atentos à relação vida e morte, isto é, se há apelos, se há feridos, se há mortos.

A experiência e o conhecimento do terreno vão-nos dizendo, rapidamente, onde está a acontecer a festa.

É daqui que partem as nossas informações de apreensão e apelo ou de bem estar, que também existe felizmente, quando somos atacados nesta pequenina tabanca de Mampatá.

Felizmente neste momento, apenas uma roufenha telefonia deixa escapar uma linda e suave canção da Helena Tavares que tem um título bem sugestivo – "Adeus".

Ontem, por esta hora, estavam os camaradas Gandembel e talvez Cacine ou Gadamael a ouvirem outro tipo de música. A que nos faz correr para o local mais próximo onde haja expectativa de alguma segurança, ou de G3 na mão, vamos defender a vida. A nossa, a dos nossos camaradas e a da população que nos rodeia e em nós confia.

Zé Teixeira
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Notas de CV:

(*) Vd. poste 14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 – P4819: Estórias do Zé Teixeira (36): Mataram o futuro (José Teixeira)

Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4632: Os bu... rakos em que vivemos (13): Sare Banda um dos bu…rakos em que morremos! (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P4849: A galeria dos meus heróis (6): O Renoir de Montemuro, nascido no ano zero da idade atómica (Luís Graça)

Pierre-Aguste Renoir (1841-1919): Pintura a óleo, Le déjeuner des canotiers, 1880-1881. Fonte: Wikipedia. Uma das obras-primas da pintura ocidental, que mais me fascina (LG).


A galeria dos meus heróis (*) > Nascido em 45, no ano zero, o Renoir de Montemuro

por Luís Graça


Nascido no ano zero. 1945... Lembro-me de teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI (Lembras-te, em 1965 ?!... Ainda pensámos em dar o salto até Paris, éramos vagamente existencialistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmarte, enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!... Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta a financiar o nosso inconsistente projecto de aventura).

1945… Ano zero da idade atómica. Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, diziam os franceses. O fim do pesadelo da ocupação nazi. O direito à esperança. O recomeço da humanidade… As palavras eram tuas, escritas no meu catálogo que até estava bonito… não estava ?! ... Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… 

Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas... Enfim, aprendiz de Renoir...

Na minha cédula pessoal, um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Mais uma boca com direito a senha de racionamento. Milho, açúcar, farinha, azeite… Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não, nasceste depois, em 47, já não apanhaste esses tempos que foram duros para os nossos pais e irmãos mais velhos. E estavas mais perto da capital, no Oeste Estremenho.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do francês, o cabo chefe da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. Tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara tuberculoso e herói de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa e Salazar. Vociferava contra a corja dos republicanos

Era meu padrinho. Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus pais. Nunca soube quais. Nunca quis saber. Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo e dependência que vigoravam na aldeia. Na minha aldeia da Serra de Montemuro, uma aldeia de pastores que não era muito diferente de tantas tabancas fulas por onde passei na Guiné… Ainda hás-de conhecê-la, a minha aldeia, e eu reconhecê-la, contigo, num próximo verão em que fores lá cima ao Norte, a Candoz… Em Agosto, no teu e meu querido mês de Agosto

Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. Mais tarde, Ultramar. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. Quando puto, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce. Estás-me a imaginar de sotaina branca e longas barbas pretas, não estás ?! E acabar, santo e mártir, frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos…

Em 45 os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, o milho, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Contavam os meus pais. Mesmo assim fazia-se festa rija. O foguetório não era como hoje. Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Ou até nos barcos rebelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. Negociante de gado ou, melhor, intermediário. Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali e nas redondezas… Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… Ele era engenhocas. E, além disso, dava-se bem com gente graúda: por exemplo, o major de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. A esposa mandava cartas ao Salazar, contava a minha mãe, sempre atenta a (mas não menos temerosa de) os fios com que se costurava o poder. Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu padrinho soube da minha partida para África em 1968. Eu nunca lhe pedira nada, nem sequer o Pão-Por-Deus. E muito menos que me safasse de ir parar à Guiné. Inclusive proibi os meus pais de o fazerem por mim. Tinha a mania dos princípios. E da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, em 1970, já tinha morrido. Ele e o Salazar. O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai, advogado no Porto. Numas férias de verão, em meados dos anos 60,  ficou em Londres a lavar pratos. Em Setembro desse ano estava na Suécia. Fazia 20 anos. Foi dado como refractário ou desertor, não te sei dizer ao certo, que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. Como estava a estudar na Faculdade de Direito, beneficiava do adiamento da data de incorporação. Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, até filho de general era mobilizado. Nunca conheci nenhum, mas imagino que, na pior das hipóteses, ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família. Coimbra, a república dos estudantes, dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. Para mais era o seu neto querido, o mais inteligente, o mais parecido com ele. Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça, concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias em Julho de 1969. Sua bênção, padrinho - foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos… Já o pai não prestava, era um fraco, arrematava ele, entre dois ataques de tosse. As melhoras, padrinho – foram as últimas palavras que lhe dirigi… Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. 

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcello Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo. Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,  respeitado mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, um verdadeiro cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…

Gustavo, o neto do meu padrinho, ainda me escrevera um dia para o meu SPM, já no final da minha comissão. Éramos amigos. Ou melhor, mais conterrâneos do que amigos , tínhamos brincado juntos, quando garotos, nas férias de verão. Estudara em colégio particular. Vivia no Porto. Passava férias na aldeia. Agora, em Estocolmo, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC. Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e na frente de batalha. Não se podia objectivamente estar do lado de cá, fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… Além disso, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas, na zona leste… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas…

Nunca lhe respondi. Achava-o um puto mimado e provocador. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. Secretamente, invejava-lhe a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas… e eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné. Achei que o mundo não era justo. Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Nova Lamego  e Bambadinca, até nem foram maus. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros que até tiveram um ou outro comprador. Outros ofereci, a um família de comerciantes libaneses que costumava frequentar. Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, de Montemuro…

Passei por uma crise existencial, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições pequeno-burguesas, agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu ainda conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata. Não esqueço a última carta que me mandou, de despedida. Era um encanto de miúda, delicadíssima, mas com pouca margem de decisão em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto percebi, era um homem do regime, da média burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área da exportação de banana. Família numerosa, muitos manos. Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Fui surpreendido quando um dos meus amigos do Funchal me veio lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento. Foi um choque. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida… sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado… No mínimo, chegar inteiro à meta. Ainda tentei telefonar-lhe, de Nova Lamego. Em vão. A chamada caiu. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha noiva que afinal nunca o fora. (Acabei por casar com uma galega de Orense, que nunca chegarás a conhecer, por que já fomos cada um à sua vida…).

Depois,  meu amigo, veio o rol de desgraças que me aconteceram. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, em rendição individual. A mina que me mandou quase um ano  para o Hospital Militar da Estrela. Poupo-te os pormenores, eu próprio só agora fui desenterrar esses pesadelos que ainda povoavam o sótão da minha memória…

 Esqueci a Guiné durante décadas. Até ao dia em que, não sei porquê, vi na Internet o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a Bambadinca, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias… Desencontrámo-nos na Guiné. Tu e eu. Nem sequer sabia que estiveste lá, depois de mim… Mas achei piada ao teu jogo de palavras: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca… é Grande”.

Um dia hei-de telefonar, para conversarmos com mais tempo e vagar. Até lá, um abraço, como vocês dizem,  do tamanho do nosso Rio Geba. O teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustado companheiro da viagem a salto, até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1965, no SNI, entre copos de ginjinha nos Restauradores. Teu Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores para beber ginjinha… Nunca mais te pus a vista em cima.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. restantes postes da série A galeria dos meus heróis:

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)

12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964

1. Segundo poste da série "Cartas" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66).


1.ª Fase: Bissau

Bissau, 17 Maio 1964

Chegámos na quarta-feira à tarde e nem sequer estava gente no cais à nossa espera! Quando toda a tropa desembarcou e se perfilaram as companhias ao longo do cais, depois de uma longa espera à torreira do sol é que por fim lá apareceu um jeep com alguém mandatado para nos dar as boas-vindas. Um soldado até desmaiou por não aguentar a espera.

A cidade é pequena e parece muito mal arrumada, quer dizer sem ordem nenhuma, as casas são construídas à toa e as poucas ruas que há, são todas uma porcaria. Aliás o mesmo adjectivo poder-se-ia aplicar a todos os substantivos da Guiné, ou pelo menos de Bissau. A organização militar é uma lástima, os soldados andam por aí como vagabundos, todos sujos e vestidos como lhes apetece. Os oficiais mais parecem desregrados contrabandistas de marfim ou sinistros mercadores de escravos. Enfim, tudo uma corja que quase nem sequer dá pela nossa presença, quanto mais regozijar-se com a nossa chegada.

Para arranjarmos onde dormir tivemos de pedir tudo emprestado, desde mantas até um recinto coberto onde pudéssemos improvisar um aquartelamento e armazenar as nossas coisas à medida que fossem descarregadas do navio. Agora, que já se passaram uns dias, a situação vai melhorando graças ao nosso espírito de equipa e vontade de pôr todas as coisas no seu lugar.
O nosso material (armas, equipamentos, etc.) tem vindo a ser paulatinamente descarregado do navio e eu, de há dois dias para cá, tenho-me encarregado de ir buscar os caixotes, abri-los e conferi-los.
Assim estamos mais contentes, porque temos marmitas, cantis, armas (as novas G-3), tudo novinho em folha e até apetece sair para o mato para fugir do meio desta cáfila de brancos preguiçosos e aldrabões. Sim, porque os verdadeiros terroristas são os brancos (tanto militares como civis) que apenas pensam em explorar ao máximo toda e qualquer criatura que se lhes atravesse pela frente.

Aqui em Bissau não há nada, é uma cidade morta. Com tanta água que há, todos os dias é cortado o abastecimento por largos períodos. Para se arranjar água potável é um caso sério. Mas enfim, mal ou bem, o que interessa é que cá se vai vivendo com boa disposição.

Quanto à nossa actividade militar propriamente dita, deveremos ficar por aqui um mês, pelo menos, sendo depois, ainda não é certo, enviados para o mato, para um local onde já esteja tropa instalada. Não há grande pressa em acabar com o terrorismo. Parece que toda a gente está á espera de que eles cheguem até aqui, a Bissau, para então se verem obrigados a embarcar às pressas e regressar à Metrópole. Até o nosso próprio capitão ficou enjoado só com o aspecto e desorganização dos militares.

O gira-discos já funciona. Os meus soldados, no entanto, ficaram decepcionados, pois julgavam que os discos seriam de música folclórica, fados ou qualquer coisa do género que lhes lembrasse a terra deles. Não sou muito convincente a fazê-los gostar de jazz.

Finalmente dispomos agora de instalações próprias, numa granja situada nos limites da cidade.
Funcionava aqui uma antiga Escola Agrícola e dizem que o próprio Amílcar Cabral teria cá estudado.

Segunda-feira teremos talvez um jeep para cada oficial. A única coisa que incomoda é o calor. Fartamo-nos de beber refrigerantes e cervejas tudo devidamente bem gelado como também é norma por aqui, felizmente.
O dinheiro da Metrópole vale mais 20%.


Bissau, 26 Maio 1964
O calor é um facto consumado. Creio que até já nem me lembro de conhecer outra temperatura. Não se pode fazer um esforçozinho sem que se fique logo a suar em bica. Todos os dias tomo vários chuveiros de água fria para remediar um pouco.

Nestes primeiros quinze dias que se passaram, o tempo foi ocupado com pequenos trabalhos nas instalações que foram colocadas à nossa disposição na tal granja, a chamada Granja do Pêssubê como vim depois a saber. Trata-se de um barracão em cimento, coberto com folhas de zinco, com várias divisões, ficando a ser a maior delas para a caserna dos soldados, a mais pequena para a secretaria, outra para guardar os víveres, e uma outra, maiorzinha, onde fica arrecadada todo o restante material e onde estão também instaladas várias camas para os sargentos e oficiais que entretanto não conseguiram alojamentos próprios nas Messes respectivas junto do Quartel-General. Um deles fui eu. Preferi dormir na Granja junto dos soldados. No entanto, todos os dias tenho um jeep que me leva até à Messe dos Oficiais, para poder tomar os meus duches, almoçar e jantar.

Já recebemos quase todo o equipamento, só nos faltando as viaturas, os rádios e o material de cozinha. Tudo o que temos vindo a utilizar é emprestado. É possível que nem cheguemos a sair aqui de Bissau, pois estamos a fazer serviço de guarnição aos vários pontos estratégicos da cidade.
Esta, afinal, não é tão ordinária como me pareceu à primeira vista. Para quem vem do mar, parece ser apenas um aglomerado de dois ou três barracões mal alinhados ali junto ao cais. Mas entrando terra adentro vamos descobrindo muitas ruas e avenidas, bem alinhadas e densamente arborizadas. Existem bastantes casas comerciais, tipo drug-stores ao estilo norte-americano, vendendo as coisas mais diversas, loiças, electrodomésticos, discos, fazendas e chouriço de porco, tudo junto. Duas ou três esplanadas, um campo de jogos bastante jeitoso e até um cinema, que dá sessões todas as noites, ajudam a relaxar e a passar o tempo.

Hoje até sou capaz de o ir estrear. Vai “O Homem das Pistolas de Ouro” que já vi aí há um bom par de anos, mas que não me importo de ver novamente.

No passado sábado fiz a minha melhor compra aqui em Bissau: uma belíssima máquina de filmar de 8 mm, uma Yashica totalmente automática e com motor eléctrico. Vou-me fartar de fazer filmes com as primeiras imagens a preto e branco da “Minha Ida à Guiné”.

A gente de cá, os Negros bem entendido, é boa gente. (Tão boa que a maior parte deles já não nos consegue aguentar mais e, decidiu ter chegado a hora de alterar este estado de coisas).
Mas as crianças que enxameiam de volta do acampamento, sempre aproveitando os restos da nossa comida, são muito engraçadas, simpáticas e muito comunicativas, fazendo que até nos esquecêssemos de qual o verdadeiro motivo que nos trouxe a estas paragens. Claro que eu sou um bocado suspeito quando faço tais apreciações, pois vim a saber que me chamam o alferes bonito. Elogio que se deverá, talvez, ao facto de ser o mais gordinho e risonho, sempre disposto a confraternizar com eles.

O custo do nível de vida, pelo menos em Bissau, é um pouco alto, isto é, as coisas são em regra mais caras do que aí, na Metrópole. A cerveja, por exemplo, custa 15$00 por garrafa, embora sejam garrafas maiores, talvez o dobro das de aí. E não imaginam o consumo que se faz de bebidas geladas! O calor ataca toda a gente, brancos e negros.

Estamos agora em plena estação das chuvas e por duas ou três vezes já caíram grossas bátegas de água, acompanhada de relâmpagos pavorosos. Pelo que dizem ser o habitual, a estação até vai bastante atrasada. No entanto os mosquitos não deixam de atacar com toda a sua ciência de voo picado. O que me tem valido é o mosquiteiro que mandei fazer para a minha cama. Fica a cama mais quente, mas é um sono tranquilo.

Correm boatos que a nossa comissão de serviço irá ser diminuída para dezoito meses, mas não se fiem muito.

Outra coisa: do meu vencimento, vou deixar aí na Metrópole, uma parte, cerca de 3.400$00, que o pai me fará o favor de levantar no BC9, todos os meses, entre os dias 21 ou 23 mais ou menos, e depositar na minha conta da Caixa. O que cá me resta chega e sobra para as despesas.

Apesar de estar em África ainda não vi um bicho a que se possa chamar uma fera, a não ser duas jibóias dentro de uma jaula de vidro. Aves é que abundam, principalmente os abutres que aqui são conhecidos por jagudis.


Bissau, 05 Junho 1964
Todas as semanas tomamos dois comprimidos de Resoquina para prevenir o paludismo. Agora o velho quinino tem outro nome. Quanto a vitaminas, há sempre fruta às refeições, boa e variada.

Ontem à noite houve cinema na Messe dos Oficiais. Com uma máquina de projectar de 16 mm improvisou-se uma sala de espectáculo mais ou menos decente. O filme era o já estafado, mas ainda em bom estado, “O Costa do Castelo”. No entanto foi pena que se tivessem esquecido em Lisboa da última bobina, pois todos ficámos sem ver o final. Mesmo assim ouviram-se boas gargalhadas.
Também já acabei o meu primeiro filme, onde apareço nos planos finais. Vou agora pensar como é que o poderei mandar revelar e enviar para aí, para vocês o verem. Tem algumas cenas perigosas, de modo que tenho de ter alguns cuidados…
(Quando deambulava por Bissau, vestido à civil, à procura de motivos para filmar achei importante embora, arriscado também, fazer alguns planos de um parque de viaturas militares (completamente destruídas, talvez pela acção do inimigo, minas, granadas, tiros, sei lá, ou até talvez apenas por acidente), para demonstrar que a guerra existia mesmo, apesar de toda a propaganda branqueadora do governo. Não tardou muito a ser interpelado por um militar, um capitão encarregado daquele depósito de sucata que desconfiado me interrogou sobre o que estava ali a fazer. Só depois de me ter devidamente identificado como oficial e lhe ter assegurado que estava apenas a filmar um camaleão numa árvore (!) é que fui mandado embora, incólume e sem que a máquina me fosse apreendida.)

No dia 10 (de Junho) vai haver um desfile militar, no qual não tomarei parte, pois não fui escalado para o efeito, pelo que não me poderão ver na televisão, se esta cobrir o acontecimento.


Bissau, 19 Jun.1964
Ontem fiz uma emboscada.
Não apanhei ninguém, mas, em contrapartida, fiquei todo mordido pelos mosquitos. Até através da roupa, eles picavam. Tenho de começar a usar repelente.

Quanto às minhas aventuras não tenham receio, nunca faço as coisas sem ser a 200% pelo seguro. Nunca deixo as coisas à larga só porque dizem que aqui à volta de Bissau não há nada. Exijo o máximo de cuidado e vigilância aos meus homens e parece-me que estou a alcançar bons resultados.
Continuamos ainda em Bissau e julgo que ficaremos por cá algum tempo.
Nesta última semana houve um atraso nos aviões militares de modo que até recebi cartas antigas depois de outras mais recentes.

Bissau, 27 Jun. 1964
Inesperadamente, o meu aniversário foi comemorado aqui, como um verdadeiro dia de festa, pois tanto eu como o 1.º sargento e um cabo fazemos anos no mesmo dia (23 de Junho). Assim o capitão aproveitando a coincidência decidiu que esta data se deveria comemorar com o máximo de brilhantismo possível. O alferes Cardoso encarregou-se de tudo, tal como ele gosta de fazer e, à noite, os soldados tiveram rancho melhorado e os sargentos e oficiais jantaram todos juntos numa grande mesa cá fora ao ar livre. Todo o recinto estava iluminado por candeeiros Petromax e outras lanternas a petróleo. Nas árvores até havia grinaldas e balões de papel colorido. Pareciam as festas dos Santos Populares. E não faltou o folclore, pois às tantas, os soldados vieram para defronte de nós, tocar acordeão e dançar o vira. O capitão fez um discurso, declarando que daqui para a frente, aquele dia passaria a ser festejado como o dia da nossa Companhia.
Liguei o gira discos e ouviram-se, no maior silêncio, alguns fados cantados pelo Alfredo Marceneiro, que me tinham emprestado. No fim houve distribuição de vinho do Porto e toda a gente cantou e dançou como se estivesse numa romaria aí na nossa terra.
Mais tarde, na companhia do capitão e do alferes Cardoso, fui até o bar da Messe dos Oficiais acabar a noite, bebendo leite gelado e comendo os bolos que os meus pais me tinham mandado.

Mas algo de muito mais importante sucedeu nestes últimos dias que quase conseguia apagar da minha memória as recordações dos festejos do meu dia de anos.
Foi o meu baptismo de fogo, ocorrido na noite do dia 25 para o dia 26 de Junho.
Mas comecemos pelo princípio.

No dia 22 avisaram-me para preparar o meu Grupo de Combate, pois iríamos tomar parte, a 25, numa acção a nível de um Batalhão (um Batalhão tem três Companhias). Assim o fiz e, no dia marcado, pelas duas da tarde, lá partimos, o meu Grupo, o do alferes Carvalho e o do alferes Barros, um alferes de uma outra Companhia mais antiga que se veio juntar a nós para nos apoiar com a experiência que já tinham destas situações. No grupo de comando além do nosso capitão, iam também o alferes médico o enfermeiro e um cabo telegrafista.

Deslocámo-nos em 10 viaturas de caixa aberta até Mansoa, onde chegámos por volta das 18H30. Vieram receber-nos os oficiais de lá (um tenente-coronel, vários capitães e alferes).

Mansoa é uma vilória pequena, mas, segundo parece, de grande importância estratégica. Tem meia dúzia de casas em pedra e cal, um aquartelamento rodeado por arame farpado e uma central eléctrica alimentada por um gerador a diesel.
Como só sairíamos dali às 23H00, abancámos para jantar.

À hora prevista saímos em direcção a Porto Gole, onde nos estaria esperando mais um pelotão para reforçar a nossa coluna e nos guiar até ao nosso objectivo, algures um pouco a norte de Enxalé. Não vos digo mais nomes porque também não os sei e também porque não devem vir mencionados no mapa escolar que têm aí.
Prosseguindo por uma estrada de terra batida como são quase todas aqui na Guiné, entrámos definitivamente em território que sabíamos ser controlado pelo inimigo. A coluna tinha agora uma dúzia de viaturas lideradas por uma auto-metralhadora que seguia na frente para nos dar a sensação de alguma segurança.
O estado da estrada era péssimo e por diversas vezes as viaturas por pouco não capotavam quando metiam as rodas nos enormes buracos formados nas bermas da picada. Como a noite era escuríssima, podem imaginar o estado de pânico que começou a apoderar-se de todos nós, amontoados a esmo e violentamente sacudidos dentro das caixas abertas das grandes camionetas GMC que rosnavam teimosamente pelo meio do capim que não nos deixava ver o caminho. As paragens sucediam-se constantemente, ou por dificuldades de progressão no terreno, ou por razões de pura precaução, pois era impossível não estarmos já a ser detectados pelo inimigo.

No camião onde eu seguia, disfarçado, sem galões para parecer um simples soldado, como mandam as regras da contra-guerrilha, os homens nem murmuravam, tensos pela espera, constantemente sacudidos pelos violentos solavancos da viatura. Alguns não aguentando mais, vomitavam desesperadamente para o vazio, debruçados nos taipais. Outros a quem os intestinos pregaram a partida, aproveitavam as constantes paragens, saltavam fora e mesmo ali, no meio da mais completa escuridão, aliviavam-se de qualquer maneira. Quando a camioneta arrancava era uma aflição para recuperarem o lugar vago junto dos companheiros. Cada vez era maior a barafunda e a mais completa desorganização. Tudo o que tínhamos aprendido nos livros estava a ruir em total desastre. Era o salve-se quem puder de um bando de toupeiras atarantadas.

A horrível viagem só terminou às 03H30 da madrugada, no meio de uma enorme recta coberta de lama que atravessava de lés-a-lés um extenso arrozal agora abandonado. Dali para a frente o resto do percurso seria a pé. Reorganizada a coluna, formada pelos vários pelotões, embrenhou-se então pelo mato que ladeava a bolanha.

Entretanto, com o nascer da lua, a noite tornara-se magnífica. O luar era tão intenso que tudo iluminava como se fosse dia. Naquela região o mato (ou seja a selva) parecia um verdadeiro jardim tropical. Por várias vezes não pude de deixar de me sentir maravilhado olhando em redor, aspirando todos aqueles perfumes espalhados no ar.

Em fila indiana, seguia primeiro o pelotão do Guedes, o oficial que comandava o grupo de soldados que se tinha juntado a nós em Porto Gole, depois ia eu e o meu grupo e atrás vinha o pelotão do Barros. O Carvalho tinha ficado na retaguarda, incluído na reserva do Batalhão.
Aliás já em Mansoa, quando o capitão nos perguntou qual de nós dois queria ficar na reserva, (perante o silêncio embaraçoso do Carvalho), eu, talvez com alguma daquela bazófia aprendida em filmes de aventuras, não vi outra saída senão oferecer-me como voluntário para avançar…

Pelas 06H30 da manhã do dia 26 estávamos perto do objectivo, um acampamento inimigo, descoberto pela aviação que, conforme o combinado, veio iniciar o ataque com um bombardeamento cerrado à clareira que divisávamos à nossa frente, findo o qual deram por terminada a missão deles e regressaram à base.

Recomeçámos então a caminhar para lá, na direcção do tal suposto acampamento. À medida que progredíamos íamos encontrando algumas casas de mato abandonadas, escondidas no meio da vegetação.
De repente ouviram-se vários disparos. Um dos nossos soldados, que seguia na frente, viu ou julgou ver qualquer coisa que se mexia e, sem hesitar, disparou uma rajada.
Ficámos de repente como que paralisados sem saber o que fazer, mas num abrir e fechar de olhos todos se atiraram ao chão procurando abrigo atrás da mais insignificante árvore que estivesse por perto, disparando em todas as direcções.
Tinha chegado o momento. Era agora que a guerra iria começar. As nossas vidas estavam a ser colocadas na balança do destino.

Nos primeiros instantes fiquei de tal maneira baralhado que não descortinava onde estavam os meus homens, pois cada um tinha-se protegido o melhor que podia, sem qualquer preocupação de manter a formação em que seguíamos, tal como tantas vezes tínhamos executado nos treinos. No meio de uma gritaria tremenda e só depois de muitos berros com palavras de comando é que pude, juntamente com a ajuda de alguns sargentos e, atirando para trás das costas todas as normas de prudência, conseguir finalmente disciplinar e organizar minimamente o meu pelotão. Os furriéis alguns tanto ou mais espavoridos do que eu não pareciam querer recuperar à medida que tudo se foi acalmando.
Finalmente chegou-se à conclusão que tinha sido um falso alarme. O inimigo não dava mostras de verdadeiramente existir, apesar daquele alarido todo.
Mas a maioria de nós ainda não queria confiar. Após um difícil cessar-fogo, verificámos que afinal nada havia por ali, senão cabanas desertas, abandonadas talvez à pressa. Queimámos tudo à medida que prosseguíamos, embrenhando-nos cada vez mais pelo mato. Mas agora, comigo à frente, pois os velhinhos recusaram-se, alegando que como já estavam a pouco tempo do fim da comissão, não estavam para se arriscar desnecessariamente. De modo que, obedecendo às ordens do capitão, não tive outro remédio senão ocupar o início da coluna.

Ainda tivemos mais alguns alarmes falsos e eu ia ficando rouco de tanto berrar, tentando que os meus soldados não disparassem como doidos sem saber para onde nem porquê, à mínima agitação da folhagem que nos envolvia.
Por vezes surgia até o perigo de nos matarmos uns aos outros, com alguma bala perdida. Mas finalmente veio a calma e a confiança e lá continuámos em direcção ao objectivo que estava a ser custoso de alcançar.

Entretanto íamos encontrando, debaixo das árvores, mais casas de mato escondidas que não estavam assinaladas nos nossos mapas. Toda aquela área dissimulava um enorme acampamento que abrigava dois grupos inimigos, o do Caetano e o do Nicolau, nomes que só nessa altura vim a conhecer.

Connosco iam também quinze soldados nativos de etnia Fula (nossos amigos) que além de ajudarem a carregar as munições mais pesadas de bazuca e de morteiro, sempre que encontrávamos um acampamento, largavam tudo para fazerem o saque. As roupas e utensílios de cozinha eram deixados para eles. Os colares e outras coisas sem importância eram para os nossos soldados.
Encontrámos várias fotografias de supostos chefes inimigos e facturas de casas comerciais que até então me eram desconhecidas mas que poderiam vir a revelar-se de algum interesse.

Quando finalmente chegámos à grande clareira, encontrámos quatro velhos (dois homens e duas mulheres) que se deixaram capturar sem resistência. Um deles tinha aspecto de homem grande mas não deveria ser um chefe importante pois, obviamente, não teria sido abandonado assim, na precipitação da fuga.

De repente, de uma moita bem perto do local, onde momentos antes, tinha parado o nosso capitão, surgiu um negro que desatou a correr. Os soldados que se encontravam mais perto abateram-no logo com uma quantidade exagerada de disparos, ávidos que estavam por matar. Não satisfeitos por finalmente terem abatido um inimigo, um deles, num acto de pura selvajaria, cortou uma das orelhas do cadáver exibindo-a como se tratasse de um troféu de caça.

Mas as barbaridades não ficaram por aqui. Como uma das velhotas era cega e mal se aguentava de pé, o capitão deu ordens para que a libertassem. No entanto, soube depois que um dos soldados mais velhos, do pelotão dos veteranos, a matou com uma violenta cacetada na cabeça deixando-a ali estendida no meio dos destroços do acampamento.

Depois de tudo revistado e pouco ou nada de valor ter sido encontrado, regressámos à estrada onde tinham ficado as viaturas, trazendo os prisioneiros atados de mãos atrás das costas e ligados uns aos outros pela cintura.

Durante toda a operação, por mais incrível que pareça, não disparei um único tiro, nem meti o bedelho no tratamento aplicado aos prisioneiros que se fartaram de apanhar tareia. Foi um espectáculo que nos envergonhou, tanto a mim com ao capitão. Prometi a mim mesmo que, sempre que sair com o meu pelotão, não permitirei tais barbaridades. Matarei apenas para não ser morto. De certeza que os meus soldados saberão respeitar-se muito melhor como homens.

Regressámos a Mansoa perto das 17H00. Comemos qualquer coisa e voltámos a Bissau já de noite. Sim, porque aqui às 19H30 já é noite.

Estávamos todos bastante cansados, depois de uma noite em branco com dez horas seguidas de marcha através de bolanhas e do mato mais cerrado. Quando caí na cama, adormeci imediatamente só acordando às 10 horas da manhã seguinte, de sábado.


Bissau, 26 Jul. 1964
Hoje estou de oficial de dia no quartel do Batalhão 600, para onde nos mudámos há dois dias Deixámos a Granja onde não tínhamos água canalizada nem energia eléctrica. Agora estamos melhor instalados. Com esta mudança passo a fazer menos vezes de oficial de dia, pois como somos agora quinze oficiais, só estou de serviço de 15 em 15 dias.

Todos os dias desembarcam novos Batalhões, até perfazerem os 7.000 militares que o novo Governador (Arnaldo Schultz) tinha pedido.
A cidade vê-se aflita para albergar tanta gente. Os altos comandos aparentemente nada fazem quanto a isso e até dá a impressão de não estarem a par da chegada dos novos contingentes, pois nada está preparado para eles, quando cá chegam.

Em todos os oficiais, recém-chegados, nota-se logo um certo ar de desprezo e de espanto por nós e por tudo isto, a par de uma amargura enorme por terem cá vindo parar.
São unânimes em considerar completamente inacreditável, este estado de coisas.
Os que, como eu, já têm dois meses de Guiné, não se exaltam, nem bradam aos céus por tudo e por nada. Rimo-nos e fazemos chacota, demonstrando a máxima descontracção. Não nos importamos que algo funcione mal, até porque sempre funcionou assim.
E, se calhar, nem saberia funcionar doutro modo. Chegámos àquele ponto em que já nos damos por satisfeitos por a buzina, do nosso jeep empanado na berma da picada, ainda tocar.
__________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo

Guiné 63/74 - P4847: Buba: o Alf Mil Lourenço (CCS/BCAÇ 2834) e o Fur Mil Trms Pinho (CCAÇ 2382) (Manuel Traquina)

Guiné > Região de Tombali > Contabane > CCAÇ 2382 (1968/70) > Malta da CCAÇ 2382 instalada nma monumental baga-baga (candidato ao concurso O Melhor Baga-Baga da Guiné...), nas proximidades de Contabane, uma tabanca e destacamento destruídos na sequência do ataque, de três horas, levado a cabo pelo PAIGC em 22 de Junho de 1968.

Contabane foi então abandonado pelas NT e pela população. Mais tarde será feito um reordenamento, mesmo frente ao Saltinho. Por lá passou o nosso camarada Paulo Santiago, quando foi comandante Pel Caç Nat 53 (1970/72). A povoação hoje chama-se Sinchã Sambel.

Foto: © Manuel Traquina (2008). Direitos reservados



1 Pedido de esclarecimento do editor L.G., em 8 de Agosto de 2009, ao Manuel Traquina:


Manuel: Quem era o Alf Lourenço ? E o Fur Pombo ? (*) A que unidades pertenciam ? ... Presumo que à CCS do Batalhão...

Já li o teu livro, vou fazer um recensão. Gostei. És um bom contador de histórias... Parabéns... Podes adaptar e mandar mais umas tantas para o blogue...

PS - Não havia nenhum Alf Lourenço na Companhia dos Maiorais... Fiz confusão com o José Belo (que está na Suécia)... Vou ter que rectificar...


2. Resposta do autor do poste (*), com data de 20 de Agosto:Amigo Luis Graça:

Em relação à poesia dedicada ao torneio de futebol de salão em Buba (*), esclareço que o Alferes Lourenço (0 árbitro) pertencia à CCS do BCAÇ 2834. O Furriel Pinho foi na altura alcunhado de "o triste Pombo" Era o Furriel de Transmissões da [CÇAÇ] 2382 (A Companhia do Olho Vivo). Escrevi já anteriormente um pequeno artigo sobre ele, "O Pinho e os seus Rádios" (**). Era um grande amigo, um bom camarada infelizmente falecido hà cerca de um ano.

No meu livro (***) ele é falado algumas vezes e consta também a sua foto na despedida de Buba onde tem um ferimento na cabeça.

Um Abraço
Traquina

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4797: Cancioneiro de Buba (1): A paixão do futebol (João Boiça / Manuel Traquina)

(**) Vd. poste de 17 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3214: Venturas e Desventuras do Zé do Ollho Vivo (3): Contabane, 22 e 23 de Junho de 1968: O Fur Mil Trms Pinho e os seus rádios

(***) Traquina, Manuel Batista - Os tempos de guerra: de Abrantes à Guiné. Abrantes: Palha de Abrantes. 2009. 230 pp., 70 fotos [Contactos do autor, ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70: Telefones: 241 107 046 / 933 442 582; E-mail: traquinamanuel@sapo.pt] .

Vd. também poste de 5 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4642: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (18): Manuel Traquina, ribatejano, escritor... e fadista (Luís Graça)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4846: O nosso encontro com o PAIGC em Mampatá (Carlos Farinha)

1.  Mensagem de Carlos Farinha (*), ex-Alf Mil da CART 6250/72, Mampatá e Aldeia Formosa, 1972/74, com data de 2 de Agosto de 2009:

Caro Luís e restante equipa editorial

Quando da minha adesão à Tabanca Grande, enviei algumas fotos relativas ao encontro pacífico da minha companhia CART 6250 com os militares do PAIGC. O Luís no comentário que fez, achou que seria interessante relatar a minha experiência desse encontro.

Então aí vai, mas as lembranças não estão muito nítidas. Fica ao vosso critério a publicação do texto. Se acharem que não tem qualidade, cortem.

Já me ia esquecendo, quando enviamos um texto qual é a melhor forma de nos identificarmos? Só o nome chega? Bom, desta vez, vou indicar, também, o número do primeiro poste que é P4745.

Um abraço
C.Farinha


Junho de 1974 - Encontro com os militares do PAIGC

Segue um relato simples de como decorreu o primeiro contacto pacífico com militares do PAIGC que nos visitaram. As lembranças não estão muito nítidas mas, procurarei dar uma imagem do acontecido da forma como o vivi.

Não sei quais foram as razões para o PAIGC nos escolher para efectuar a visita, só o PAIGC poderá responder a essa questão, de qualquer forma penso que não será alheio a essa situação o facto de não haver quartel, propriamente dito, e a tropa viver misturada com a população. Como curiosidade, gostaria de acrescentar que o quartel/povoação de Mampatá foi visitado algumas vezes por jornalistas estrangeiros, devidamente assessorados pelo Comando do Batalhão de Aldeia Formosa, em que se procurava mostrar e valorizar a relação pacífica com a população em que, fisicamente, não havia barreiras ou qualquer tipo de segregação.

O golpe militar de 25 de Abril foi por todos nós sentido com mais ou menos intensidade dependendo da consciência política de cada um, contudo, para nós que já tínhamos 22 meses de comissão, esse facto ainda veio retardar mais a nossa substituição que, de facto, já não aconteceu tendo a Companhia sido concentrada nos arredores de Bissau, acho que o local se chamava Pujunguto, com menos condições que aquelas que tínhamos no mato, mas porque queríamos ir para casa aceitávamos tudo. Os sentimentos em relação ao 25 de Abril foram um misto de euforia contida, com alguma ansiedade à mistura.

Uma delegação do MFA veio à sede do Batalhão em Aldeia Formosa, no dia 16 de Maio segundo diz o camarada Carvalho (poste P3771**), que nos procurou explicar o novo rumo para o país e, aquilo porque todos suspirávamos, a comunicação do fim das hostilidades com o PAIGC.

Passada esta data, recebemos indicação para levantamento dos nossos campos de minas e, operacionalmente, a nossa actividade ficou reduzida a alguns patrulhamentos sempre nas redondezas do aquartelamento. Nesta actividade, se por acaso fossem detectados elementos do PAIG, a indicação era para não hostilizar.

No início de Junho de 1974, a povoação de Mampatá foi visitada por um Comissário Político do PAIGC que contactou com a população e militares africanos. Não me lembro se, oficialmente, a tropa foi informada desta visita.


Nos fins do mesmo mês uma força militar do PAIGC, penso que dois bi-grupos, vindo pela estrada/picada da Chamarra, chegaram próximo da povoação de Mampatá. Todos nós, militares, acorremos alvoroçados ao encontro dos nossos ex-inimigos com alguma curiosidade mas, sem receio.

Não alimentamos revanchismos ou qualquer tipo de vingança sem sentido porque, tanto nós como os militares do PAIGC, passámos por momentos maus, perdemos camaradas e vimos outros sofrer. Do que se tratava agora, era sarar as feridas abertas por anos de lutas entre os dois povos e encetar um novo relacionamento ajudando a construir um novo país emergente.


Já não me lembro como foi o primeiro contacto, sei que não houve gelo ou hesitações e se procurou comunicar. Pessoalmente, lembro-me que o militar com quem mais falei se chamava Fuam, acho que era este o seu nome, não sei se é assim que se escreve, identificou-se como comandante de bi-grupo (identificado na imagem). Lembro-me, ainda, que uma das conversas que tivemos foi saber se dos contactos que tínhamos tido na estrada Mampatá / Nhacobá, em quais é que tinha participado.


Como este encontro se realizava às portas da aldeia de Mampatá, convidámos os militares do PAIGC a entrar na povoação/quartel onde continuou a confraternização, nomeadamente com a população e militares africanos.
Além das bebidas oferecidas por nós directamente, foi dado arroz à população que o cozinhou e o distribuiu aos militares do PAIGC.

Houve troca de presentes e lembro-me, ainda, que o meu presente para o Fuam foi o meu isqueiro, naquela época ainda fumava, que me ofereceu um par de meias.

Já não me lembro de mais, vou ficar por aqui mas, se algum camarada que ler este texto tiver algo a acrescentar acho que o deve fazer. Desculpem as fotografias que não têm muita qualidade mas, mesmo assim, junto mais uma ou duas.


O comandante da força do PAIGC assinalado na imagem

A força do PAIGC em progressão

A entrada dos militares do PAIGC em Mampatá.

Fotos e legendas: © Carlos Farinha (2009). Direitos reservados
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4745: Tabanca Grande (166): Carlos Farinha, ex-Alf Mil da CART 6250, Mampatá e Aldeia Formosa, 1972/74

(**) Vd. poste de 21 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3771: Blogoterapia (86): Recordações da Guiné, nem sempre as melhores (António Carvalho)

Guiné 63/74 - P4845: Bibliografia de uma guerra (53): Dois livros: “Memórias de um guerreiro colonial” e "Trauma" (Belarmino Sardinha)





1. O nosso Camarada Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, 1972/74, Mansoa,Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, enviou-nos a seguinte mensagem:





Com data de 11 de Agosto de 2009,
Subject: Livros
To: Luís Graça

Aos meus Estimados Camaradas e Amigos Editores,

Não sei quem está de serviço de dia, por isso não endereço a nenhum em especial.

Se entenderem que tem interesse divulguem.

Confesso não me encontrar motivado para escrever no ou para o blogue, embora considere este de leitura diária, obrigatória e uma força viva necessária e extremamente importante para nós e para o próximo.

Entendi, por isso, não dever ficar só para mim e decidi-me a alinhar estas palavras com a informação recolhida recentemente, dois títulos que encontrei publicados pela Âncora Editora, na sua colecção Guerra Colonial e na colecção Holograma, histórias relatadas na primeira pessoa, ou seja, por quem viveu os acontecimentos. É como uma continuação do blogue ou Tabanca Grande mas já em livro.

“Memórias de um guerreiro colonial” de José Talhadas, Sargento-Mor Fuzileiro Especial reformado, começa por nos dizer qual era a sua vida enquanto miúdo, os seus problemas sociais e a sua vivência no mundo do trabalho, a razão da sua ida voluntária para a marinha passando depois a descrever-nos as comissões de serviço que fez na Guiné e Angola.

Não me compete nem pretendo fazer aqui qualquer apreciação literária ou estabelecer comparação entre o autor e outros com igual fortuna, apenas e só dar-vos a conhecer a obra e deixar ao vosso critério a sua leitura. Trata-se de um camarada que partilhou o mesmo espaço, a Guiné, num corpo de elite cujas intervenções no blogue são escassas e por isso pouco conhecida a actuação desta tropa de elite na guerra.

Quem sabe se este e outros camaradas não se apresentam um dia destes na porta d’armas da Tabanca Grande. Já estaremos melhor documentados sobre eles para os recebermos.

Quanto ao livro intitulado "Trauma" de H. Bastos Machado, médico reformado, inserido na colecção Holograma, conta-nos, de forma romanceada, uma experiência, embora sem o referir, não deixe de ser na primeira pessoa.

Este livro trata de um problema comum nas três frentes da Guerra, o trauma ou stress, embora a experiência deste militar médico se tenha desenrolado em Moçambique com uma curta passagem por Angola.

Para aqueles que procuram conhecer melhor como se desenrolava o teatro de operações nas três frentes da Guerra, ou como foi/era a vida de outras forças armadas e as suas actividades militares, aqui fica este modesto contributo.

Com um abraço para todos,
BSardinha
____________
Nota de M.R.:


Guiné 63/74 - P4844: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (19): Dias em Binar - 4

1. Mensagem Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 15 de Agosto de 2009:

Caro Vinhal

Para ti, Luís , Briote e M. Ribeiro um grande abraço.

Mando mais um capítulo de Viagem … à consideração e na esperança de não maçar muito os eventuais Camaradas leitores. Se acontecer… paciência... avisem!!

Trata-se da ligeira abordagem de uma das verdades da guerra, muito comum mas ao que sei, relativamente pouco falado e muito menos aprofundado.

Outro abraço, para os que ficaram de fora no primeiro !!

Até breve
Luís Faria


Dias de Binar - 4

Voluntários da noite

Se muitos dos dias em Binar ao que recordo, eram cinzentos e convidavam à sorna e à ociosidade, às peguilhices desportivas entre ditos e bocas sibilinas e às conversas da treta, para não falar em divertimentos mais ou menos atentatórios da sanidade mental dos intervenientes, já as noites, a partir de certa altura e quando não havia trabalho pré-programado, por norma passaram a não o ser.

Formámos um pequeno grupo de voluntários da noite, tendo grande parte delas passado a ser, como se diz agora stressantes e interactivas emocionalmente condicionadas e participativas, em que a acção era assumida por este pequeno núcleo duro voluntário - Cap. Mamede, Cap. da 17, Urbano e eu – reforçado de quando em vez com os Furs. Mealha (MECAuto) ou o Metralhinha (TRMS) ou o Madaleno (Atirador) o que por vezes causou problemas de adaptação a mim e julgo que ao Urbano também.

Por norma este grupo reunia-se para a acção após um lauto jantar melhorado, de bianda com salsicha ou com atum(?!). Meia de converseta com o café e uns uísquitos ou similar à mistura, para ajudar à digestão do banquete e à boa disposição.

De seguida e já cientes de quem iria tomar parte, havia uns momentos de relaxe e de concentração de espírito nas tácticas a utilizar na acção que se avizinhava e que por vezes durava até ao nascer do sol ou até à cerimónia do içar da Bandeira, altura em que por norma e querer nos obrigávamos a estar presentes, salvo qualquer contratempo de maior.

Neste tipo de acções não podia haver, nem havia hierarquia, só respeito mútuo e autoconfiança.

A calma não podia ser simples figura de retórica e os nervos tinham que ser de aço! A dissimulação e a camuflagem deviam andar de mãos dadas com a observação arguta e atenta do terreno que se pisava; o engodo e agressividade tinham que estar presentes e usados na dose e altura certas, sob pena de passarmos a ser presa em vez de predadores.

Nos momentos em que essas condições estavam reunidas, era altura de desferir o golpe, sem misericórdia, não olhando a quem, esperando causar o maior estrago possível aos adversários ou até, se eventualmente possível, aniquila-los!

Éramos um grupo voluntário de companheiros amigos e nessas acções, todos sabíamos e tínhamos consciência de que, cada um tinha que olhar por si e não devia contar com ajuda dos outros!

Se sofrêssemos estragos causados pelo adversário, a culpa era unicamente individual e não do grupo, pelo que não podíamos nem devíamos responsabilizar outrem, senão a nós próprios!

Assim, a amizade e companheirismo nunca foram postos em causa e quando apanhávamos no pelo acabávamos por ganhar força e engenho para o próximo confronto, tentando aprender com os erros cometidos e aprimorando as nossas técnicas.

O importante era não ser aniquilado extemporaneamente. Devíamos tentar continuar e aguentar! Perder uma ou outra batalha não é perder a guerra!

A hora do arranque chegava. Olhava-mo-nos e cada olhar diz-nos que quer vencer. Todos o queremos, é certo!

Umas últimas chalaças para descomprimir e momentos depois ouvia-se um vamos a isto!?...

Dirigíamo-nos para os nossos lugares. Se tudo corresse à maneira, a noite iria ser longa!

O objectivo de todos era arrasar o adversário!

O baralho era posto na mesa. As cartas eram baralhadas e dadas!

A jogatina de Póker aberto começava!

Um abraço a todos e… desculpem
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4823: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (18): Dias em Binar - 3

Guiné 63/74 - P4843: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (3): Os Cipaios



1. Terceira história tirada das "Gavetas da Memória" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66





Os cipaios

Daí em diante, sempre que surgiam problemas das mais diferentes espécies, entre os habitantes da tabanca, vinham ter com o alfero esperando por uma solução, qual decisão milagrosa que só ele poderia encontrar.

De uma vez era um jovem soldado da milícia nativa que, aflito com as pretensões do futuro sogro, que exigia um número exagerado de vacas pela mão da filha, vinha pedir socorro ao seu chefe militar, pois em desespero de causa estava até decidido a fugir com a noiva, pondo em perigo o futuro tranquilo que gostaria de vir a ter na companhia do seu amor. Enquanto o alvoroçado sogro apelava para que eu fizesse cumprir a tradição e a lei dos antepassados, o jovem argumentava que os tempos agora eram outros. Que o amor nestes novos tempos era diferente e em tudo mandava, muito acima dos interesses materialistas. Que os casamentos combinados foram sempre um tormento para a verdadeira felicidade dos jovens casais que se queriam casar por amor.

A noiva, muito envergonhada, assistia a tudo de longe, nitidamente com medo que o pai a viesse arrebanhar dos braços do seu amado, revoltada também por se sentir tratada como uma mercadoria.
Eram os sinais da modernidade que também por ali, estavam chegando, em parte devido também ao nosso aparecimento por estas terras, abalando as ancestrais tradições, rasgando horizontes até agora nunca descortinados.

E o nosso alfero, arvorado em Salomão das tabancas, tinha que os aturar com toda a calma, tentando com uma escassa sabedoria não os desapontar, ditando leis que nem ele sabia se teriam qualquer veracidade ou validade. Mas quando notava que a incredulidade e a inquietação lhes assaltavam as feições, duas ou três palavras bem-soantes num tom o mais inapelável possível, punha uma pedra sobre o assunto. O sogro ficava com a promessa mais ou menos certa que o genro lhe pagaria o melhor que pudesse pela princesa que levava para o leito e, o nosso noivo aliviado por o fardo pré-nupcial não lhe vir a ficar muito pesado, sorria mais satisfeito.

Pirada > Binta Sulé > Não será a noiva desta história, mas podia ser

Mas por vezes surgiam também questões mais complicadas, resultantes certamente de um passado vivido na incompreensão e na crueldade colonialista.

No centro da aldeia, junto das casas comerciais, construídas de pedra e cal com telhados de telha importada da metrópole, existiam também as acomodações de um posto de polícia civil, constituída por dois cipaios.
Estes foram sempre a presença odiada da autoridade civil que, agora, com a chegada da tropa originava que a autoridade exercida sobre as populações nativas se fosse esbatendo. Por isso os cipaios, de vez em quando tinham acessos de brutalidade gratuita, só para fazer lembrar que era eles a que deviam obediência.

Numa dessas ocasiões deram-se mal, pois os habitantes da aldeia, sentindo que o alfero não deixaria de lhes dar razão, correram ao aquartelamento a denunciar mais uma brutalidade cometida por eles que, pelos vistos mais de uma vez, e num acto de pura arbitrariedade e estupidez, teriam espancado um jovem.

No meio da noite, já tinha passado a hora do jantar, Iaia o jovem mais culto da aldeia, acompanhado por mais dois velhotes, chegou-se à porta do aquartelamento e pediu à sentinela para falar com o alfero.

Como eram pessoas bem conhecidas, foram logo levados à minha presença.

Com alguma emoção explicaram-me que os cipaios, indivíduos odiados por todos (até porque pertenciam a uma outra etnia, eram balantas), andavam a conspirar na sombra contra mim, tentando tudo por tudo para me desacreditar, falando mal de mim e ameaçando tudo e todos, afirmando que só a eles é que deveriam continuar obedecer como sempre o tinham feito até ali. Como que a fazer prova disso tinham ido à tabanca prender um pobre diabo e levaram-no para o posto onde lhe aplicaram umas palmatoadas valentes, por um motivo fútil qualquer que, eu na ocasião já a ferver na ânsia de fazer justiça, nem ouvi bem qual tinha sido.

Naquela altura, como era já tacitamente aceite que o nosso domínio territorial tanto a nível administrativo como a todos os outros níveis deveria ser incontestável, não seriam uns simples cipaios que o iriam beliscar. Portanto teria mesmo que tomar medidas e ao mesmo tempo aproveitar para fazer justiça pelas minhas próprias mãos, para fortalecer a minha imagem, impor a minha autoridade, dar realidade a um mito de justiça que finalmente estava chegando por aquelas bandas.

Mandei chamar o Antunes, o meu furriel mais enérgico, e com ele e alguns dos seus homens, armados até aos dentes, marchámos para o centro do povoado, rodeados por uma verdadeira multidão de nativos ansiosos por saber qual seria a minha atitude. A notícia de que algo insólito estava para acontecer espalhou-se rapidamente.

Chegados diante da casa dos cipaios, chamei por eles com altos berros bem autoritários. Lentamente os facínoras foram aparecendo um a um diante de toda aquela gente como se os tivesse arrancado da cama, ainda estremunhados.

Rapidamente e com um tom de voz o mais assustador possível, adverti-os que dali em diante não lhes seria reconhecida qualquer autoridade sobre a população civil. Ai deles se me chegasse aos ouvidos qualquer desobediência nesse sentido. Que ficasse bem claro que a partir do dia em que a tropa tinha ali chegado, só ela ditaria as leis sobre toda a aldeia. Eles passaram a não ter qualquer poder ou autoridade sobre a população.

- Agora só tropa é qui na manda! – sentenciei eu bem alto em dialecto crioulo, para que todos me pudessem entender.

No meio de uma algazarra tremenda pouco faltou para que toda aquela gente que os rodeava, não os linchasse logo, fazendo-se vingar por décadas e décadas de humilhação e crueldade gratuita.

De cabeça baixa aqueles dois membros da polícia civil, tão odiada e temida, não eram mais que duas feras acossadas e mortalmente assustadas perante um perigo que nunca suspeitaram poder vir a enfrentar algum dia. Como dois verdadeiros brutamontes nem souberam sequer responder, e mirando-me com uns olhos cheios de ódio, fecharam-se cautelosamente no tugúrio que lhes servia de abrigo.

Soube no dia seguinte que tinham abalado bem cedo. Nunca mais os tornei a ver. Só alguns meses depois é que o Comandante da Companhia me perguntou se alguma vez eu tivera tido problemas com os cipaios, por causa de uma conversa que ouvira em Bafatá.

Parece que os poderes estavam definitivamente a tombar para uma predominância clara e absoluta do poder militar sobre o poder civil, tal o grau de empenhamento a que esta guerra estava a conduzir a força militar presente na região.

Quanto a problemas domésticos do foro administrativo civil nunca me constou que tivessem havido, pelo menos durante o meu reinado. Mas o mais natural é que os nativos os tenham sabido resolver, como sempre o fizeram ao longo de tantas e tantas gerações de gente livre, sem precisarem do homem branco para nada.
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Nota de CV:

Vd. Último poste da série de 16 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4827: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (2): A jibóia