segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

Publicação da sétima e última parte das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que o autor me facultou um exemplar, em Bissau, em Março de 2008,  tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

A partir de hoje, o empresário e nacionalista Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai, pai do actual 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama, em 1949) passa a integrar a nossa Tabanca Grande. Desejamos-lhe muita saúde e longa vida. E estamos-lhe gratos por nos ter disponibilizado o texto policopiado  com as suas memórias que vão de 1946 até 1974. Cadogo Pai nasceu em 1929, terá portanto 81 anos. Foi conselheiro de Estado no tempo de 'Nino' Vieira. Teve também funções governativas antes do golpe de Estado do 1998 (L.G.)

Parte II (pp. 13-17)

Num belo domingo à tarde, numa visita a casa de uma amiga no Bairro da Ajuda, a Dona Micteia, encontrei dois amigos, Eugénio Peralta e Valdemar Oliveira. À chegada encontrei-os na rua. Um deles disparou-me:
- Já sabe que prenderam o Pipi Pereira ? - respondi, dizendo que sabia. Informaram-me que foi preso de madrugada. Sem resposta mais a dar, traí-me de emoção, disparei para casa do Sr. João Vaz, para obter a confirmação. Bati à porta, ele saiu e confirmou-me a notícia da prisão do nosso companheiro Pedro Pinto Pereira, dando-me a notícia de que a seguir seríamos nós. Ele, João Vaz, eu e António Augusto Carvalho (ANCAR).

24. Tudo aconteceu no domingo. No dia seguinte, segunda-feira, encontrei o nosso companheiro António Carvalho, dei-lhe a notícia da prisão do Pedro Pinto Pereira, e a informação que tinha, que a seguir seríamos nós. Alarmou-se, foi informar a esposa, uma senhora portuguesa. Sem controlo, decidiram ir pedir protecção ao Sr. Tenente Castro, que era elemento ligado à PIDE. Este levou-os à PIDE para serem ouvidos em declarações, o que nos complicou a vida a todos após as declarações prestadas.

25. O Sr. António Carvalho, reconheço que não tinha intenção de me prejudicar, porque a seguir às suas declarações, veio-me avisar que eu seria chamado para ser ouvido em declarações. Só que ele não sabia, por motivos de segurança como já disse, cada um só sabia os contactos que tinha. Eu não podia ser ouvido, sem avisar o João Vaz e ele aos que ele sabia dos seus contactos.

26. Informei a minha mulher da situação e da aflição que tinha de contactar os companheiros dos meus contactos. Que tinha de partir de João Vaz ou de um deles. Sugeriu-me sair à rua. Deparei por sorte com o Sr. Armando Lobo de Pina, de passagem, vindo do serviço da [Casa] Ultramarina onde era empregado. Informei-o da situação e da urgência de contactos com os companheiros e da resposta. Aconselhou-me, cerca das 11h45, para estar à porta, que estaria de passagem. Assim aconteceu, a senha foi para eu suportar tudo e não mencionar nomes, porque seria perigoso. Aceitei porque eram muito graves as declarações do Sr. António Carvalho, comprometiam altas figuras que não nos convinham que fossem figuras tocadas, caso do  Mário Lima, Artur Augusto Silva [, pai do nosso nosso amigo Pepito, preso pela PIDE em 1966, no aeroporto de Lisboa, encarcerado na Prisão de Caxias durante 5 meses sem culpa formado, libertado por influência de Marcelo Caetano, impedido de regressar à Guiné], Severino Gomes de Pina, etc.

27. Eram 15 horas e mais alguma coisa, apareceram dois agentes da PIDE, abordaram-me, que me me queriam falar, disponibilizei-me, mas deram-me a entender que não era no meu escritório, mas sim lá em cima. Quando perguntei em cima, aonde, virou a gola da camisa, um deles, de nome Silva, para me mostrar o distintivo da PIDE. Foi assim que se deu início ao que iria ser a prisão do nosso alargado grupo, alguns dos quais só na prisão viríamos a conhecer.

28. A seguir à prisão do Pedro Pinto Pereira, prenderam o João Vaz, deixando todos alarmados, a aguardar os acontecimentos, cada um nas suas ocupações. Deram-nos o tempo de passar as festas de Natal e Novo Ano, eram fins do ano de 1966.

29. Já em 1967, certo domingo, dia 16, estava eu de volta das obras das minhas actuais instalações, apareceu-me o Sr. Domingos Maria Deybs, com um jornal na mão, a anunciar um convite para almoço de confraternização dos amigos do Inspector da PIDE. Perguntou-me se eu ia tomar parte no almoço. Naturalmente a minha resposta foi desabrida, a perguntar a que título iria tomar parte em tal almoço!!!

Afinal era a senha, o mesmo aparato de força ocorreu com os companheiros a seguir citados e, a partir do nosso mesmo conterrâneo, contactou os camaradas: Armando Lobo de Pina, Elisée Turpin, Milton Pereira de Borja, Lindolfo, ex-empregado de Mário Lima Wanon. Assim fomos todos presos na madrugada do dia 17 de Janeiro de 1967, os quatro camaradas contactados e comigo cinco prisões.








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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste anterior:

13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6848. Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações

domingo, 15 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6855: Controvérsias (102): Polémica M.Rebocho / V.Lourenço, resposta a António Graça de Abreu (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), dirigida a António Graça de Abreu, com data de 12 de Agosto de 2010:

Meu Caro António

Acabei de ler o teu post 5275, já com um tempinho, que deriva da publicação de uma tese de doutoramento sobre a formação de oficiais, mas tem servido mais para alimentar a polémica sobre a rivalidade entre pessoal do QP e do QC, principalmente ao nível de comandantes de companhias de combate. Digamos, que nesta dicotomia, está contida uma desvirtuação ao conteúdo do livro. E assim, o arriscado, é embrenharmo-nos na polémica, sem o conhecimento suficiente dos dados em questão, que nos dêem suporte e racionalidade às intervenções.

Constatei que, quando escreveste o post, ainda não tinhas lido o livro. Mas manifestas, mais uma vez, o teu carinho pelos oficiais do QP, defendendo-os como se, entre eles, não houvesse bons, assim-assim e maus. Devo dizer-te que houve. Não posso, naturalmente, é quantificá-los conforme as espécies. Mas isso é como tudo e em todas as profissões: no Sporting nem todos os jogadores dão o mesmo rendimento, nem todos revelam o mesmo empenho. Lembro-me do Oceano, quando era bastante tosco, e que acabou a carreira com grande nível, porque foi sempre empenhado. Mas em todas as actividades encontras pessoas mais ou menos diligentes.

Ao longo da sua explanação, o Rebocho enaltece vários oficiais, e desanda noutros. Nunca transmite essa ideia bipolar de que o pessoal do QP aferia por igual e era cobarde. O que ele sustenta, com recurso a diferentes conceitos e experiências, é que o comportamento desses oficiais do QP que se refugiaram da guerra, ou que se revelaram inaptos para a guerra, resultou da má estruturação dos métodos de selecção e da qualidade dos cursos ministrados. A tese do Rebocho não pode ser reduzida a uma vingança, antes, deve ser avaliada pelas diferentes análises ali expostas, e que terão criado um fio condutor relativamente às conclusões finais (são várias as conclusões, em função da conjugação de muitos e diferentes dados). Digamos que a tese pode ser comparada a um estudo sobre a proeficiência de uma empresa.

Portanto, ousaste escrever o post com base num artigo jornalístico, provavelmente de muito má qualidade, que vai além do objecto da questão, e explora sentimentos desavindos em 25 de Novembro. De que interessa as acções judiciais que correm termos, entre o autor e o V.Lourenço, para apreciação das ideias-chave? E porque é que vens referir que no blogue tem havido alguns defensores da tese da derrota militar na Guiné? Acaso não levas em consideração que uma qualquer guerra torna-se um conjunto de vários factores de influência, que tem mostrado, com frequência, serem os mais fracos a obterem o melhor resultado? Então nos centros de decisão que frequentaste essas questões não eram debatidas? Ou nunca tiveste acesso a esses níveis?

A tua formação é em História, curso que não frequentei, mas adivinho que os historiadores sejam alertados para as fontes, que aprendam técnicas, que sejam instruídos na selecção dos meios que permitam identificar o facto histórico. Por isso pisco-te o olho, por teres tomado uma manipulação jornalística, como uma fonte para a apreciação das élites militares em Portugal, no que respeitou à guerra de África.

E quando leres o livro, certamente ficarás surpreendido com as declarações prestadas pelo teu ídolo, o general Durão. E ainda mais, quando chegares à página 488 e não encontrares a frase que citas da peça jornalística. No entanto, eu tenho memória de um ou mais conteúdos daquela frase, juntos ou separados, embora contextualizados, sem o valor meramente especulativo da inserção que fazes. Falta de cuidado!

Quanto ao estudo já escalpelizado da autoria do Sr Coronel Morais da Silva, porque não apresenta argumentos, apenas a crueza da evolução dos números, se tiver que ser utilizado neste processo, só pode confirmar que cada vez havia mais milicianos no comando das companhias de combate, e o autor, relativamente ao remanescente dos anos anteriores, não sabe onde é que se encontravam, ou o que teria influenciado as alterações relativamente a capitães do QP, o que fragiliza qualquer intervenção.

Decorre do anterior, arrisco eu, a resposta à tua pergunta final: o que é que te tem levado a alinhavar tantas páginas?

Se não te importas, darei conhecimento deste texto aos editores, para eventual publicação no blogue.

Entretanto, recebe um abraço com muita amizade.
José Dinis
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6730: Controvérsias (95): Não me move, nem alimento, qualquer querela QP-Milicianos (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6825: Controvérsias (101): Puros e Espúrios 2 (Mário Gualter Rodrigues Pinto)

Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

1. Texto de Carlos Geraldes, membro da nossa Tabanca Grande, de 69 anos, residente em Viana do Castelo, ex-Alf Mil, CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66):


A Guerra Colonial: Todos Querem Ser Heróis! (*)

E nem se lembram de que tudo partiu de uma mentira, com mais de quinhentos anos. Mentira piedosa dirão alguns, mentira necessária, dirão outros, mas na verdade não passou de uma redonda e grosseira mentira, repetida vezes sem conta! Foi a nossa epopeia!

– Mas descobrimos novos mundos!
– Como? Não existiam já antes?
–  Desbravámos novos caminhos, novas rotas! Evangelizámos!
– Mas onde plantámos os nossos Padrões (quais marcos de propriedade), e nos estabelecemos com fortificações, não foi para mais facilmente assaltar, roubar e reduzir à mais cruel escravidão outros seres humanos como se fossem gado para exploração, abate e consumo?

 Desde tempos imemoriais que a regra foi sempre a mesma. Quem tinha a força tinha o direito. E como povo “civilizado” que éramos (!?) considerávamo-nos também superiores aqueles que não tinham os nossos costumes e que até nem praticavam nem conheciam a nossa religião. Eram os “infiéis, os gentios, gente bárbara e sem a alma que apenas a fé cristã proporcionava aos convertidos, conforme então piamente se acreditava.

E a pretexto que era urgente converter essas multidões de gentios, aproveitava-se, já agora também, para os aligeirar dos bens que possuíam e até de outras riquezas que eles nem sabiam serem objecto da nossa cobiça, só porque nos considerávamos com muito mais direitos a essas riquezas do que eles. Assim devastámos tudo o que de tentador se nos aparecia pela frente. Ouro, pedras preciosas, especiarias, minério, tudo era avidamente carregado a bordo de caravelas, naus, e todos os navios mercantes que vieram depois. Como paga deixávamos algumas bugigangas, espelhos, facas, aguardente… e os nossos rudes costumes também, nunca conforto e civilização!

Mas mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, já dizia o poeta sábio. E os povos das nossas colónias ganharam coragem e sublevaram-se. Veio por isso a guerra colonial.

Dos altares da Pátria teceram-se louvores, cânticos e hinos aos soldados que rumaram em armas para as terras africanas. A juventude de um povo analfabeto e desinformado, cego e magnetizado por tanto aparato, seguia como uma legião de cordeiros para uma matança sem fim à vista. Quando lá chegavam, com as G-3 em riste, assaltavam as tabancas, as moranças, correndo pelas picadas mais distantes, disparando a torto e a direito. O que é que interessava uma ou duas centenas de pretos a mais ou a menos? Ninguém lhes pedia contas disso, só tinham de lhes dar uma “ensinadela”, de os meter na “ordem”. Estavam “superiormente” autorizados a matar, dizimar, desfazer tudo quanto lhes desse na real gana. Não era a ali a África selvagem, o lugar de todos os infernos, o cenário perfeito onde os brancos podiam praticar impunemente todas as espécies de atrocidades? Então…?

Inchados de orgulho pateta, contam como eles trataram como “vinha vindimada” as terras dos “pretos”, como corriam atrás das raparigas de impudicos peitos nus, como suaram as estopinhas, mergulharam na lama até aos peitos, passando pelos maiores perigos e tormentas, como só eles passaram!

Mas não admitem, nunca, como tremeram de medo no meio da escuridão da mata e que, sempre que sentiam as “costas quentes”, também fizeram o gosto ao dedo, só para aliviar um agora denominado de “stress” (para não lhe chamarmos “pura selvajaria”), chacinando velhos, crianças e mulheres indefesas, galinhas, cabras, vacas e, até morros de “baga-baga” tudo varrido na frente, com umas boas rajadas da velha G-3, tiros de “bazooka” ou granadas de morteiro atiradas ao acaso.

E agora, porque voltaram, até já se julgam heróis, apenas porque também lá estiveram. Só porque fizeram aquela viagem por um mundo que não entendiam, escondidos atrás de uma arma, cumprindo “ordens” que não compreendiam nem discutiam, julgam ter direito a um estatuto de heróis!

Periodicamente, os que ainda restam dessas “expedições” reúnem-se para confraternizar à mesa de um qualquer restaurante. Pançudos, com os ralos cabelos já esbranquiçados exibindo, por vezes, as velhas boinas das “Campanhas de África”, contam chalaças marialvas, recitam os nomes das velhas armas que usaram, riem-se e choram com saudades dos tempos que já lá vão. No fim fazem juras e saudações militares. Qual Vietname, qual carapuça! Ninguém é mais digno de crédito e admiração do que eles!

.../...

Ao chegar a casa, dão um beijo na mulher, calçam as pantufas e com um profundo suspiro de alívio e sentimento do “dever cumprido”, ficam para ali a “ruminar” o inevitável Telejornal, porque a seguir vai dar a bola!

E não é que agora, vêm todos dizer que foram uns heróis?!

Carlos Geraldes
carlos.geraldes@live.com.pt

2. Nota do editor L.G.:

Este texto, com data de 7 de Julho,  vem no contexto de algumas reacções à publicação do conto do Mário Cláudio, Para o livro de ouro do Capitão Garcez.

O Carlos queixou-se de ter sido "silenciado"... Ora não é prática nossa silenciar ninguém, muito menos um camarada que costuma cumprir com lealdade e fair play as regras de convívio do nosso blogue, e é um activo colaborador. O que aconteceu é que os editores foram de certo modo surpreendidos pela "crueza" da sua linguagem e pelas considerações (menos felizes) que faz da generalidade dos antigos combatentes da guerra colonial... Ora essa generalização é abusiva, meu Caro Carlos, na falta de um verdadeiro retrato, sócio-antropológico,  a corpo inteiro,  da nossa geração que combateu em África...

O próprio autior entendeu meter esse texto, inicialmente na gaveta,  por o achar "um pouco forte"... Três meses depois de o terescrito, decidiu reenviá-lo em 7 de Jullho...

Arrefecida, entretanto, a polémica à volta do conto do Mário Claúdio, perdeu-se a oportunidade (editorial) de publicar o texto do Carlos Geraldes... Mas, enfim, nunca é tarde para o fazer... O texto fica postado (bem como as explicações das a seguir pelo autor):

Olá queridos amigos:

Tenho estado de facto a "hibernar" se bem que a estação não seja muito propícia a isso.

Fui despertado pela "polémica" sobre um belíssimo texto, inédito (?), de Mário Claudio, escritor que mal conheço, apenas pela notoriedade que lhe advém dos inúmeros trabalhos que publicou e consequentes prémios arrecadados. Aliás, sinto até um certo orgulho por me ter cruzado com ele duas ou três vezes numa pastelaria em Paredes de Coura, onde ele, me parece, deve ter residência temporária. Facto que muito enobrece tais idílicas e serenas paragens do nosso Minho profundo. Mas nunca me atrevi a falar-lhe, nem sabia tão pouco que também tinha estado na Guiné a cumprir o serviço militar.

Estamos todos de parabéns, portanto. A Tabanca Grande ficou MAIOR!

Quanto à tal "polémica", deixem que vos diga que não vale nada! Até faz lembrar as "bacocadas" à volta da obra do Saramago. Como sempre, quando a caravana passa, ficam cães a ladrar. Não é que não tenham o direito de ladrar. É a maneira de eles se expressarerm e, o direito à livre expressão, foi uma das mais importantes conquistas de Abril. Mas atenção à responsabilidade! Responsabilidade para com os outros, para os que estiveram, os que estão e os que estarão nesta terra que nos criou. Responsabilidade pelo futuro que construímos com os nossos exemplos pois isso, infelizmente, ainda não é muito perceptível pela maioria. Apenas nos interessamos pela notoriedade de aparecer, de dizer coisas, muitas delas toscamente apreendidas, imitadas sem delas nos apercebermos totalmente, sequer. E assim se cria agora esta estéril "polémica" que já cheira a coisa morta logo à nascença.

Nos princípios deste ano tinha escrito um pequeno texto, inspirado num comentário pouco abonatório sobre o nosso blogue.  Declarava alguém que a existência deste e de outros blogues do género, só serviam para certos indivíduos fanfarrões se virem pavonear de hipotéticos feitos nas guerras de Àfrica.

Como achei, depois, que o texto estivesse um pouco forte, guardei-o na gaveta. Mas agora perante as palavras de Mário Cláudio e as consequentes reacções, vou servir-me dele como mais uma testemunha de defesa do "réu", embora nunca tivesse sido para aqui chamado, apenas porque assim sempre foi a minha percepção da realidade vivida na Guiné.

Também eu fui testemunha (ainda nos benévolos tempos de 1964/66) do ambiente denso que a guerra arrastava atrás de si. Nunca a leitura de Joseph Conrad me parecera tão real ("O Coração das Trevas"). Estavamos ali a viver num cenário quase idêntico, emoções de tal maneira semelhantes, que a nossa mentalidade ia-se moldando a pouco e pouco à tenebrosa lógica da guerra com as suas obscenas crueldades tornadas puras banalidades. O acto de maltratar outro ser humano, mutilá-lo, matá-lo, esventrá-lo, esmagá-lo contra uma parede, trazia tanta impacto moral, tanto remorso, como matar um insecto importuno. E além disso até era um acto legal! A guerra tudo justifica!

Matar uma jovem mãe, com um tiro certeiro de G-3 que a atravessasse de lado a lado e esmigalhasse também a cabeça do bebé que ela transportava à costas numa fuga alucinada, era um acto merecedor de aplausos pela pontaria certeira do bravo soldado ansioso de mostrar uma valentia que nunca iria ter de outro modo.

Quem falou mais nesse crime? E em muitos outros que se seguiram? E os prisioneiros mantidos em Nhacra ( a "idílica" Nhacra!) dentro de uma jaula de arame farpado? E o prisioneiro morto com um canivete sucessivamente espetado no pescoço, só para o calar, na atrapalhação de uma noite de operação em território IN?

Bom, a guerra tem os seus fantasmas e é bom que os saibamos enfrentar de uma vez por todas.

Hoje parece que lidamos ainda com essas recordações, como se se tratassem de bilhetes postais de um passado heróico, feliz e distante. Por isso me repugnam certas basófias, certas festanças e jantaradas como se quisessem comemorar factos gloriosos do nosso passado comum. Feitos glorificados por uma "história" embelezada por uma certa doutrina política e nada interessada em mostrar a pura realidade.

Desculpem-me este desabafo mal amanhado, mas assim de repente é o que sinto cá por dentro.

Um grande abraço. Viva Àfrica, viva a Humanidade!
Carlos Geraldes

PS. Em Anexo envio o tal texto escrito em Abril deste ano [A guerra colonial: todos querem ser heróis]
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4357: Questões politicamente (in)correctas (39): Havia racismo nas Forças Armadas Portuguesas ? ... E no PAIGC ? (Nelson Herbert)

Guiné 63/74 - P6853: Futebol e nacionalismo na década de 1950 (Nelson Herbert, filho do jogador da selecção da província, Armando Lopes ou Búfalo Bill)





1. Foto e texto de Nelson Herbert, com data de 6 do corrente:

Caro Luis

Segue uma foto ilustrativo do poste referente a futebol e nacionalismo na Guiné (*)...A selecção provincial da Guiné de 1964 [ou de 1954?]... se não me falha a memória...integrada na sua maioria por futebolistas originários de Cabo Verde...

Dos futebolistas na foto, ainda consigo identificar alguns...mas quiçá o Mário Dias ne possa ajudar na identificaçãao dos restantes...

De pé da esquerda para a direita: Antero Bubo (caboverdiano); o jogador seguinte é guineense, cujo nome me escapa; Armando Lopes (Búfalo Bill,  meu pai) (**); o nome dos restantes também me escapa...

Agachados: terceiro a contar da esquerda, o guarda redes principal Júlio Almeida (antigo funcionário da granja de Pessubé que trabalhou com Amilcar Cabral e é referenciado como um dos fundadores do PAIGC); quinto atleta, Joazinho Burgo; o último...escapa-me o nome mas sei que é avô do Miguel, da selecção de Portugal... que esteve no Mundial.

Mas o Mário Dias quiçá seja a pessoa indicada para ajudar na identificação destes futebolistas ...

Mantenhas

Nelson Herbert (foto à esquerda)
USA

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Nelson, salvo melhor opinião, a foto que me mandaste, não pode ser de 1964, mas sim do princípio dos anos cinquenta, como a própria legenda manuscrita sugere... Nessa altura, o teu pai  já tinha mais de 30 anos... Recorde-se que ele nasceu em 23 de Agosto de 1920, é 4 dias mais novo do que o meu pai, Luís Henriques.

Aproveito para saudar os nossos dois velhos, que passaram, como militares, pelo Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, na II Guerra Mundial. Oxalá eles continuem a dar-nos a alegria do seu convívio. O meu velho já começou a comemorar o feito que é, para um homem da sua geração,  chegar aos 90: hoje mesmo vai a um convívio luso-alemão de "velhas guardas"... que incluirá uma partida de futebol entre portugueses, da Lourinhã,  e alemães, em férias... Entre os portugueses da minha terra há muita gente que ele, o meu velho, treinou quando meninos e moços... Ele próprio praticou futebol até meados dos anos 50... E hoje é o sócio nº 1 do Sporting Clube Lourinhanense.

O futebol é (ou pode ser) um traço de união entre os povos. Acabo de ler, no blogue do BART 1914, que o português Norton de Matos é o novo treinador da selecção de futebol da Guiné-Bissau.

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Notas de L. G.:

(*) Vd. poste de 6 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6831: (Ex)citações (88): Futebol e nacionalismo nos anos 50/60 (Nelson Herbert)

(**) Vd. postes de:

 15 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5109: Meu pai, meu velho, meu camarada (18): Do Mindelo a... Bambadinca, com futebol pelo meio (Nelson Herbert / Luís Graça)

12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5101: Meu pai, meu velho, meu camarada (17): Ilha de S. Vicente, S. Pedro, 1943: Armando Duarte Lopes (Nelson Herbert)

sábado, 14 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6852: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4): Memórias das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
O que se passou nas minhas férias não foi exactamente assim mas andou lá perto.
Não entrego a limpeza dos meus livros e a desorganização disciplinada dos meus papéis a quem quer que seja. Tinha o corpo molengão, as leituras eram convidativas para fugir à fornalha do sol.
Prometo extinguir o fogo à minha biblioteca nos próximos dias...

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4)

por Beja Santos

Uma vasta memória de factos de três guerras, entre 1961 e 1974

O projecto inicial está cumprido, quer dizer, foram limpas 6 estantes e cerca de 700 livros, está ali acumulada papelada avulsa que precisa de ordem para uma utilização possível em A Viagem do Tangomau. Vamos para nova empreitada, limpar 8 estantes para onde anarquicamente vou acumulando o que vem de Lisboa, desde catálogos de exposições, livros de ficção, ensaio e, inevitavelmente, as coisas da Guiné. A temperatura não abranda, o melhor é pôr no gira-discos uma música suave, talvez uns metais do período barroco. É nisto que a vista se queda no tampo da secretária: “Para ler em breve. É o primeiro livro com uma visão conjunto sobre as guerras coloniais. Está datado, mas levanta dúvidas pertinentes. É matéria para o blogue”. Olho displicentemente para vassouras, balde, detergentes e panos de limpeza. Pego no livro e deito mãos à obra.

“Memória das Guerras Coloniais” , de João Paulo Guerra (Edições Afrontamento, 1994) foi o primeiro esforço individual de memorizar as três frentes da nossa guerra colonial. O autor, no prefácio, avisa-nos que deve haver cautelas, mecanismos de leitura que travem a vontade de ver certezas em tudo quanto se lê: “Não são juízos. São factos, muitos deles postos em dúvida no próprio texto, porque é por vezes difícil de distinguir nas fontes a informação da propaganda. Separadas por um abismo ideológico, o regime colonial português e os movimentos de guerrilha que o combateram partilhavam uma mesma concepção oficial e única da verdade histórica. Vem daí a inquinação das fontes”. Findo o império, importa pôr de pé o contexto em que decorreram os factos, iluminar o palco onde tiveram lugar os acontecimentos, conhecer as reacções e as atitudes políticas nesse percurso onde se adejaram espectros como o complexo da Índia, o confronto de várias linhas conservadoras dentro das Forças Armadas, a gradual contestação entre a Fé e o Império, quem foram os apoiantes da causa portuguesa nos diferentes territórios, isto sem esquecer refractários e desertores e como se processou, nos três territórios, o cessar-fogo. Essa, em síntese, a tarefa a que se arrogou João Paulo Guerra.

Primeiro, o papel do colonialismo na História, como nasceu o sentimento das independências no chamado Terceiro Mundo, um fenómeno inevitável se bem que tenha sido alimentado pelos grandes actores da guerra fria. A partir dos anos 50, os areópagos internacionais põem na mira de fogo o trabalho forçado, os colonatos, o estatuto dos indígenas e os equívocos da presença portuguesa em África. A eleição de Kennedy veio desequilibrar irreversivelmente a natureza dos apoios que Portugal tinha no chamado mundo ocidental. Para escapar à solidão, a política externa portuguesa é forçada ao malabarismo de negociar em permanência com os diferentes vizinhos, nos três territórios. A solidariedade africana adensa-se, com o apoio do bloco soviético, dos nãos alinhados, dos países árabes e da China.

Segundo, as campanhas militares não escapam à lógica da qualidade dos dirigentes, da coesão dos princípios, da energia na mobilização, na gradual superação das contradições. O autor estuda Angola em primeiro lugar, desvela a estratégia dos três movimentos e da resposta das autoridades portuguesas, assim concluindo: “No final de 1973 e no início de 1974, a FNLA estava confinada à fronteira com o Zaire, a UNITA constituía uma pequena reserva entre o Moxico e o Bié; o MPLA estava reduzido a pequenas bolsas de guerrilha ao longo da “Estrada do Café”, tinha irradiado do Leste para Sul, com bases localizadas a Sul de Gago Coutinho (Lumbala) e a Leste de Mavinga e pela acção combinada das tropas portuguesas e da UNITA tinha retrocedido para o Cazombo, após o impetuoso avanço a partir da fronteira com a Zâmbia, em parte devido ao abandono da guerrilha pelos líderes e combatentes da Revolta do Leste. A situação em Angola era, do ponto de vista militar, a única dos três teatros de guerra que podia considerar-se favorável às posições portuguesas. O regime colonial não tinha ganho a guerra em Angola. Mas estava a ganhar tempo”.
E chegamos à leitura dos acontecimentos na Guiné, as chamadas guerras da pacificação, a chegada, em 1927, da CUF que nunca impediu que a economia colonial da Guiné tivesse saído de um estado primitivo. Apresentadas as populações, o autor convoca Amílcar Cabral, a sua vida e a sua obra, o seu papel até na fundação do MPLA e como, com este, coordenou a luta contra a dominação colonial na esfera internacional. E chegamos à surpresa de 1963: em vez de atacar postos de fronteira, o PAIGC aparece em Tite, Bedanda, Fulacunda e Empada. Em escassos meses, o Sul ficou desarticulado. Em Junho desse ano o PAIGC instalou-se no Oio. As tropas portuguesas viram-se confrontadas com um inimigo que separara populações e criara santuários que se podiam atingir e até eliminar, mas temporariamente, tropas e populações do PAIGC podiam voltar horas depois, findas as operações: foi esta a lógica implacável que Cabral e os seus companheiros estabeleceram para a luta de libertação. A partir de 1964, se bem que com menos ímpeto, a guerrilha progrediu para o Norte, Nordeste e Leste. A partir de 1966, Madina do Boé é alvo de intensas flagelações com artilharia. O historial dos acontecimentos veio a conhecer agravamentos de todos os tipos.

O aspecto tumultuoso da evolução da guerra obviamente que foi acompanhado de divergências e contradições entre os políticos e militares. Em 1964, Schultz proclamara que a paz tinha voltado ao território. Em 1970, Spínola declarava que a situação evoluía num sentido francamente favorável. Bethencourt Rodrigues, o último governador confessou muito mais tarde que a situação se tornara duríssima para as nossas tropas. João Paulo Guerra descreve essas diferentes linhas de força e evidencia como o espectro da guerra sem saída vai mudando a mentalidade dos militares, a começar pelo próprio Spínola que ficou atónito quando Caetano lhe terá dito em 1972 que “Não é forçoso que vençam”.

Impõe-se uma pausa, o que se irá ler a seguir tem a ver com a Guiné e Cabo Verde, depois o autor detém-se longamente em Moçambique e por último temos a complexidade das questões que eram omissas na imprensa, desde as desinteligências entre a igreja e o regime até aos cessar-fogos. Coisa estranha, está agora a arrefecer, vou para as limpezas e depois acabo a leitura do livro. Não deixa de ser agradável passar uma boa parte das férias numa biblioteca a arder. Poiso o livro de João Paulo Guerra ao lado dos livros que constituirão as arremetidas seguintes: “Ébano”, de Ryszard Kapuscinski, e “Quadros de Viagem de um Diplomata (Senegal, Guiné e Cabo Verde) ”. Verão que esses conteúdos não os irão desapontar.
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Nota de CV:

Vd. poste de 13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6850: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6851: Estórias cabralianas (63): As Sereias do Rio Geba... ou a violência doméstica subaquática (Jorge Cabral)...


Guiné-Bissau > Regiião de Bafatá > Bafatá > Rio Geba > 15 de Dezembro de 2009 > A magia do Rio Geba que o nosso Jorge Cabral, aquando da sua longa viagem por estas paragens, em 1969/71, povoou de sereias...  (Na foto, o músico e médico João Graça; editada por L.G.).

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do Jorge Cabral, com data de 12 do corrente:

Amigos,

Com este calor, só no fundo do Geba, brincando com as Sereias…

Abraços

Jorge Cabral



2. Estórias cabralianas  > AS SEREIAS DO GEBA: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SUBAQUÁTICA
por Jorge Cabral (*)

Foi na Guiné que aprendi a contar estórias às Crianças. Comecei lá e nunca mais parei. Ainda ontem conheci uma Menina. Disse-me que tem um gato e eu falei-lhe das minhas duas moscas, uma de cama, coitada, cheia de febre… Em Missirá, na Escola, comecei com a Branca de Neve e os 7 Anões, mas logo desisti.
- Neve? O que é Neve?
- Muito branca!
- Então era Branquinha, irmã do Furriel.
- E Anão? O que é?
- É um Homem Pequenino!
 - Suma, Alfero?

Impossível continuar…

Parti então para a invenção. No fundo do Geba viviam as sereias, metade mulheres, metade peixes, que de noite abandonavam o rio e vinham brincar para a floresta. Há muitos, muitos anos, levaram um rapaz, que hoje ainda lá vive…
O sucesso foi imediato.

Gostaram tanto que contaram às Mães e estas aos Pais, os quais consultaram os Homens Grandes, que obviamente garantiram a veracidade do relato. Agora de noite as sentinelas redobravam a atenção… e passei a contar com muitos voluntários nas idas ao Mato Cão…

Na altura andava muito zangado com o meu Soldado Daíro que batia na Mulher… Ainda por cima era atrevido e apresentava justificações absurdas…
- Alfero, Boi bate na Vaca, Galo na Galinha, Homem na Mulher…É assim!

Ameacei-o com uma valente porrada e parecia ter acalmado, até que numa tarde, oiço os prantos da Mulher.

Regressado, ele e os outros do Mato Cão, vinham muito excitados. Tinham assistido ao Macaréu.
- Desta vez não escapas, Daíro -  avisei logo.
- Alfero, pergunta ao Furriel, se não ouviu no Macaréu, as sereias a gritar… Elas também levam dos Maridos… É assim.

Jorge Cabral

___________
 
Nota de L.G.:
 
(*) Vd. último poste desta série > 26 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6787: Estórias cabralianas (62): À Tesão, Pelotão!... Este é o Alfero Souza, meu amigo (Jorge Cabral)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6850: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3): Amílcar Cabral, de Oscar Oramas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Não há aqui nenhuma encenação, ler foi o melhor remédio para o braseiro que vivemos na semana passada.
É mentira que dentro das florestas a temperatura é mais amena, eu já tinha esquecido a tortura dos suores viscosos dentro das florestas galeria, na época seca, naquela guerra que vivemos.
Defendi-me a ler, sempre reverenciando a Guiné, como a nossa agremiação merece.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3)

por Beja Santos

Amílcar Cabral lembrado por Oscar Oramas

Nem ao anoitecer sopra uma aragem. Não é para me gabar, as estantes estão limpas e as aranhas removidas. Socorro-me de um música de fundo pletórica, avassaladora, já andou aí pelos ares a banda sonora da Lawrence of Arabia, depois o Blade Runner, agora Passage to India. Aspirei, bruni, até relampeja o óleo para as madeiras. Agora começa a arrefecer, é tempo de pegar num testemunho de alto nível, o do embaixador cubano Óscar Oramas Oliva, a primeira pessoa fora do PAIGC que viu Amílcar Cabral morto naquela noite de 20 de Janeiro de 1973.

A tradução é abaixo de cão, é muito difícil haver tantas gralhas por página (“Amílcar Cabral, para além do seu tempo”, por Óscar Oramas, Hugin, 1998). Mas o conteúdo é suculento, para além da má tradução e das obrigações propagandísticas de um embaixador cubano. Talvez não valha muito a pena determo-nos nas origens, do meio em que cresceu e dos estudos em Portugal de Amílcar Cabral, é matéria consabida, não é por aí que se encontrará inovação no retrato político. Cabral pertenceu à linha dos visionários africanos, numa linha de compromisso entre a praxis marxista e a lucidez em escapar ao envolvimento proporcionado pelas garras da guerra fria. Conhecia o suficiente das estruturas sociais da Guiné e Cabo Verde a ponto de se saber que foi por puro fanatismo que misturou uma com outra, como se o fosso histórico e cultural pudesse ser iludido. E nesse fanatismo se conduziu à perdição e comprometeu as relações entre dois povos.

Oramas tem razão em contextualizar a luta de Cabral nesse momento particular em que África se lançou nas independências, no estabelecimento hábil de relações de vizinhança que estabeleceu com o déspota de Conacri e o intelectual Senghor, sempre timorato de uma guerra de secessão que roubasse Casamansa ao Senegal. O Amílcar Cabral dos anos 50 é um guineense filho de cabo-verdianos que tem consciência de que não existe proletariado na Guiné e de que o papel das empresas coloniais se distingue de tudo quanto se passa em Angola ou Moçambique, por exemplo. Juntou-se a outros intelectuais e assalariados, assim se constituiu a linha dirigente do PAI, berço do PAIGC. Nesses anos 50 formam-se diferentes grupos ditos de autonomização e libertação e parecia claro que era imiscível qualquer forma de associação natural entre cabo-verdianos e guineenses. Cabral consegue dar a volta, tal a sua determinação, estabelece linhas gerais para a mobilização, ideologização, formação dos quadros, tenta o agrupamento de todas as forças de independência, e enquanto no interior começa a subversão, instalado em Conacri Cabral movimenta-se na cena internacional, capta apoios, recebe ajudas na formação para a luta armada, incluindo armamento. No congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, faz reprimir aqueles que praticaram abuso do poder nas chamadas zonas libertadas e denuncia a perversidade da “regulandade” (a criação de grupos de súbdito em torno dos chefes), a “catchorindade” (o servilismo) e a “mandjoandade” (espírito de clã). A região Sul é o primeiro trunfo do PAIGC. Em 1965 a organização da unidade africana reconhece o PAIGC como o único interlocutor válido. Cabral dá provas de ser um exímio organizador, um educador vigoroso, dotado de oratória vibrante e convincente. 1968 marca o grande confronto com um Spínola que não quer só vitórias militares, vem disposto a grandes concessões no terreno social e traz um plano de desenvolvimento económico. Cabral continua a achar prematuro a captura e ocupação das localidades que possam representar ser um presente envenenado para os guerrilheiros. O relacionamento com o Senegal é normalizado e vai levar a uma viragem na frente Norte. Oramas inclui um capítulo sobre a participação cubana na luta da libertação da Guiné, tem muitíssimo interesse refere que Cuba está muito próxima das concepções de Cabral e que recebeu lança-roquetes GRAP, canhões sem recuo de 82 mm e roquetes portáteis Strella 2 que só tinham sido usados pelos soviéticos em manobras internas. Outros pontos que merecem amplo desenvolvimento no trabalho de Oramas é a actividade internacional de Amílcar Cabral, que aparece profusamente documentada e as suas ideias políticas, e é aqui que Oramas deixa uma nota inequívoca dos princípios doutrinários de Cabral. Admira a obra de Frantz Fanon, considera que África pode e deve fazer a sua própria contribuição para a luta geral de libertação nacional, designando esta luta como um acto de cultura. Considera que o conceito de partido é o resultado da luta de classes e que compete a esse partido ser o instrumento de transformação da sociedade: para atingir e ferir de morte o colonialismo e para construir o progresso da nação. Defende acerrimamente a centralização dizendo com ironia: “Sou um ditador democrático, pois tomo decisões e delas informo os meus companheiros”.

E chegamos ao capítulo crucial em que Oramas descreve o assassínio de Cabral.

Minutos depois de se terem ouvido os disparos, Oramas é chamado por Otto Shacht, chefe de segurança do PAIGC. Cabral apresenta um orifício de bala na parte posterior da cabeça, já está morto. Shacht informa o embaixador que já sabe quem assassinou Amílcar Cabral. Ouvem-se tiros perto, o embaixador retira, alguém o informa que ouve pessoas a correr em direcção à praia e que se ouviram motores de barcos. Fica-se a saber que Aristides Pereira fora sequestrado. Acompanhado por um ministro da República da Guiné, vão ter com Sekou Touré que estava rodeado pelos conjurados que explicam ao presidente da Guiné Conacri que a direcção do PAIGC tem estado controlada pelos cabo-verdianos que humilham os guineenses. Sekou Touré manda prender os revoltosos. Os vários diplomatas presentes contestam a Sekou Touré que mande prender todos os militantes do PAIGC. Sekou Touré recua e manda alojar os dirigentes do PAIGC em hotéis. O que mais impressiona em todo este testemunho de Oramas é sentir-se que o complot é constituído exclusivamente por guineenses.

Oramas não se compromete seriamente a acusar a PIDE, limita-se a explanar algumas hipóteses e deixa mesmo no ar a possibilidade de um envolvimento indirecto de Sekou Touré. Convém recordar que todos os testemunhos escritos e gravados sobre os revoltosos desta conjura de 20 de Janeiro desapareceram, cada um é hoje livre de especular sobre os motivos de fundo deste assassínio. Oramas termina o seu depoimento lembrando uma frase de Amílcar Cabral: “Eu sou simplesmente um africano cumprindo o meu dever no meu país, no contexto do nosso tempo”.

Quisera eu que a canícula abrandasse, o ar continua abafado, à cautela começo a ouvir o 1.º Acto da Ópera “Parsifal”, com a direcção de Pierre Boulez. Contrariando a lógica das coisas, em vez de uma leitura ligeira vou de emersão para “Memórias das Guerras Coloniais”, de João Paulo Guerra. À falta de genica, embalado pela aragem, entro na leitura. Preparem-se.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 12 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6847: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 – P6849: Memórias de Mansabá (11): Sexta-feira, dia 13 de Agosto de 1971 (Carlos Vinhal)

1. Esta estória poderia fazer parte da série Efemérides, mas na verdade não teve importância nenhuma no desfecho da guerra colonial.


Mansabá, Sexta-Feira, 13 de Agosto de 1971*

Tarde quente do dia 13 de Agosto de 1971 que se adivinhava enfadonha. Como não tinha nada que fazer, estava deitado na cama deixando correr o tempo, ouvindo pela milionésima vez uma das duas cassetes que tinha.

O meu Pelotão estava de Serviço ao Aquartelamento e eu estando de Sargento de Ronda, só entraria ao serviço lá para a 1 hora da manhã. De repente lembrei-me que era Sexta-feira e ao mesmo tempo dia 13.

Como não sou supersticioso, saltei da cama e logo pensei que era o dia indicado para se fazer aquelas tarefas que se não devem fazer nestes dias ditos azarentos.

Vesti-me e fui ao quarto dos condutores procurar um voluntário para ir comigo ao exterior do arame farpado rebentar granadas velhas. Não foi difícil encontrar alguém, porque toda a gente gostava assistir ao espectáculo dos rebentamentos.

Enquanto o condutor foi aprontar um Unimog 411, fui levantar um Rádio e avisar o meu Alferes, que estava de Oficial de Dia, dos meus intentos, para que ele por sua vez avisasse todos os Postos de Sentinela à volta do Aquartelamento e mais quem achasse por direito ser prevenido.

Carregada a viatura, dirigimo-nos para o exterior do arame farpado, estrada de Mansabá para o K3, como quem vai para um picnic, para junto de uma árvore morta onde eu costumava, num buraco existente junto a ela, destruir o material que ia armazenando e que não tinha cumprido a sua missão de explodir quando lançado contra o IN.

Depois de dispostas, com cuidado, as granadas velhas no buraco, juntei-lhes uns pedaços de TNT providos de detonadores eléctricos para provocar o rebentamento controlado à distância.

Após o rebentamento e enquanto o fumo se dissipava, aproximei-me do local para verificar se tinha corrido tudo bem ou seja que nenhuma das munições ficasse inteira. Mal me abeirei da árvore, fui recebido por um enxame de abelhas selvagens, em polvorosa, que me perseguiram enquanto eu fugia a sete pés.

Como não fui suficientemente lesto fui picado na cabeça e nas mãos. Enquanto corria, pelo Rádio começaram a chamar por mim. Quando pude, parei e atendi. Era um militar das Transmissões a comunicar-me que o Comandante ordenava que me apresentasse imediatamente no seu gabinete.

Desmontei o serviço, carregámos as tralhas na viatura e lá fomos a caminho do Aquartelamento, não prevendo eu já nada de bom.

Quando entrei na porta da Secretaria, o gabinete do Comandante só tinha acesso por lá, fui alvo do riso por parte dos presentes. O meu aspecto era algo caricato pelos inchaços na testa provocados pelas picadas das abelhas, mas ao mesmo tempo vi caras de preocupação pelo que me esperava lá dentro.

Bati à porta e à voz de ENTRE, entrei, fiz a continência da praxe e em sentido esperei pela pancada. Indiferente ao meu aspecto, perguntou-me o Comandante, muito furioso:

- Nosso Furriel, quem o autorizou a ir fazer rebentamentos para o exterior do quartel?

Respondi que ninguém, e que julgava ter competência suficiente para saber qual era a melhor ocasião para destruir material perigoso, depositado na Arrecadação do Material de Guerra, à minha responsabilidade, desde que antecipadamente desse conhecimento do facto.

- Mas eu não soube de nada!!!

Disse-lhe que previamente tinha avisado o nosso Alferes Bento que estava de Oficial de Dia, para que ele por sua vez alertasse os postos de vigilância e providenciasse pela minha segurança e do condutor que me acompanhava.

- Vá chamar imediatamente o nosso alferes.

Fui ao Bar dos Oficiais procurar o Oficial de Dia para ele me acompanhar ao gabinete do nosso Capitão. Com os dois já na sua presença, foi a vez de o alferes ser interpelado:

- Nosso alferes, o nosso furriel Vinhal deu-lhe conhecimento de que ia fazer rebentamentos?

- Sim, meu Comandante, deu.

- E você avisou-me?

- Não meu Comandante, avisei toda a gente mas não me lembrei do senhor.

- Nosso furriel, pode retirar-se. Por esta vez escapou de uma porrada, mas tenha cuidado comigo!!!

O que se passou no Gabinete do Comandante depois de eu sair não sei, mas adivinho que o alferes tenha ouvido das boas.

Cá fora, na Secretaria, fiquei a saber pelo nosso Primeiro Rita que, quando se deu o rebentamento, o Capitão, julgando tratar-se de um ataque ao aquartelamento, deitou a fugir pelo gabinete fora, mas quando viu que toda a gente continuava sentada a trabalhar, impávida e serena e, ainda por cima com ar de riso, ficou furioso. Sabendo posteriormente que tinha sido eu o autor do rebentamento, julgou chegada a hora de dar a porrada que  me havia prometido tantas vezes.

Restabelecida a ordem, dediquei-me a tratar as picadas das abelhas e a reflectir sobre a tarde que tinha passado. Não foi enfadonha, mas convenhamos que naquela Sexta-feira dia 13, melhor tinha sido ficar na cama, sossegadinho, a ouvir pela milionésima vez a música de uma das duas cassetes que tinha e da qual sabia de cor e salteado a sequência das canções.

Perdendo agora um pouco de tempo a falar do meu inesquecível e caro Comandante, Capitão C, sempre digo que foi um dos meus melhores amigos na tropa que, não me conhecendo de lado nenhum, me tinha um amor cego. Quantas vezes aquele homem me ameaçou com porradas, nunca tendo, felizmente, pretexto suficientemente forte para levar avante a sua vontade.

Felizmente, para mim, mais tarde este senhor, depois de uma série de baixas por doença (?) ao Hospital Militar 241 de Bissau, foi definitivamente evacuado para o HMP de Lisboa.

Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art.ª MA
CART 2732
Mansabá, 1970/72

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Notas de CV:

(*) Esta estória foi publicada na I Série do nosso Blogue (Poste DCLX)

Vd. poste de 21 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6770: Factos e Feitos mais importantes da CART 2732 (3): De Agosto de 1971 a 19 de Março de 1972 (Carlos Vinhal)

Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 – P6792: Estórias avulsas (90): Recordações (José Marques Ferreira, ex-Sold Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462)

Guiné 63/74 - P6848: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações


Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que me chegou às mãos, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

II Parte > Excertos (pp. 8-11)

14. Numa sessão da Câmara Municipal, o Major Matos Guerra que era o Presidente anunciou-nos que ia destruir, com uma bulldozer nova encomendada, e por ordem do Sr. Governador Arnaldo Schultz, o bairro do Cupelom, suspeito de ser um ninho de terroristas.

Repliquei, pedindo-lhe para nos informar onde é que a população iria ser alojada. Respondeu que não sabia. Dei-lhe como exemplo o bairro de Alvalade, em Lisboa, onde se cosntruiu o bairro, primeiro, para depois se desalojar as pessoas.

Foi uma discussão que durou, foi suspensa para o jantar e depois retomada até de madrugada. Nós, a vereação, coesa, recusámos a proposta de decisão, que ficou suspensa. Isto pode ler-se na acta da Câmara Municipal.


A seguir, houve uma nova provocação, sempre para estudo das minhas reacções. O secretário da Câmara Municipal, António Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a dizer que havia uma proposta para mandar uma delegação da Câmara Municipal de Bissau a Lisboa, para representar a Guiné, a exemplo das outras províncias, numa manifestação de apoio ao Professor Salazar por ter decidido desencadear a guerra contra as províncias colonizadas.

Pediram-me para ir assinar a proposta. Perguntei de quem era a decisão. Respondeu-me que fora decidido pelo Governador e o Sr. Presidente da Câmara. Respondi que, por mim, eram eles que deviam assinar. Insistiu e eu respondi para dizer ao Sr. Governador e ao Sr. Presidente da Câmara que eu recusava-me a assinar a proposta. Passou o telefone ao Presidente da Câmara que me confirmou o pedido. Dei-lhe a mesma resposta, negativa, com pedido de para a transmitir ao Sr. Governador.

16. Aconteceu esta cena de manhã. Desligaram o telefone de imediato. Telefonei ao Sr. Benjamim Correia, a dar-lhe conhecimento do ocorrido. Combinámos recusar assinar. O Dr. Armandino Pereira não tinha telefone em casa. Desloquei-me de carro para o avisar. Combinámos recusar assinar a proposta.

17. À tarde, recebemos uma convocatória para uma reunuião na Câmara após o jantar. Eu e o sr. Benjamaim Correia comparecemos, mas o Dr. Armando Pereira desculpou-se, dizendo que estava incomodado, pelo que não poderia deslocar-se à Câmara, de noite.

18. No dia seguinte, quinta-feira, era o dia normal das sessões de Câmara, o Presidente da Câmara veio ao nosso encontro, à porta, com uma amabilidade fora do habitual. Cumprimentou cada um e, ao dirigirmo-nos para os nossos lugares, convidou-nos para um encontro no seu Gabinete, com o Dr. Manuel Marques Palmeirim, que fora mandado pelo Sr. Governador Arnaldo Schulz para ter uma reunião com os vereadores.

19. Fui o primeiro a entrar. Convidou-me a ficar na cadeira mesma à sua frente e, depois de cada um ocupar o lugar que lhe fora oferecido, disparou:
- Senhores Vereadores, parece que se estabeleceu na Câmara uma confusão, para se atender o pedido do Sr. Governador, de se mandar uma delegação da Câmara a Lisboa para tomar parte numa manifestação em apoio ao Professor Salazar.

Respondi, pedindo desculpas, para dizer que não havia confusão nenhuma. Apontei para o livro que tinha aberto à minha frente, a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU), que diz que é a Câmara que decide e delibera, não é o Sr. Governador que desencadeia a iniciativa. Respondeu-me:
- Tem razão o Sr. Carlos Gomes.


20. Fez-me três perguntas. A primeira foi a seguinte:  Sendo a Câmara que iria reunir para tomar a decisão, qual seria a minha opinião.

Respondi-lhe que, por mim, se fosse a Câmara a decidir teria que indicar o Presidennte, a quem compete a representação da Câmara.

Fez-me a segunda pergunta:
- E se o Presidente não puder ir ?

Respondi que, por mim, nesse caso seria o Sr. Vice Presidente, Dr. Armando Pereira, no caso de aceitar a missão.

Fez-me a terceira pergunta:
- E se o Dr. Armando Pereira não puder ir ?

Respondi-lhe que teríamos que decidir por escrutínio secreto… Mas se a escolha recaísse na minha pessoa, recusaria aceitar a missão.

21. O Sr. Governador teve que ser ele a decidir, mandando o Sr. Presidente da Câmara representar a Guiné.

22. A partir dessas provocações, nunca mais tive vida sossegads, sucederam-se prisões e mortes (Durante Vieira e outros)… A minha construção continuou a evoluir, mas com desassossego.

 [ Revisão / fixação de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.] 

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6847: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (2): Tempo Africano, de Manuel Barão da Cunha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Tinha outros propósitos para as férias, limpezas a fundo, calcorrear no interior das florestas, banhar-me nas praias fluviais.
A canícula pregou-me uma partida das maiores, reduzi as limpezas, tomei banho pelas 8 da noite com 30º e li que me fartei.
Quem paga é a malta do blogue.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (2)

por Beja Santos

A canícula acentua-se, invade a biblioteca, traz um bafo com odores de seiva de pinheiro. Em definitivo, desisto de fazer limpezas, vou esperar por uma aragem, irei resistir de livro na mão a toda esta fornalha. Uma sensação de modorra invade-me, sacudo o torpor pondo a ópera “Fidélio”, de Beethoven no gira-discos. E pego no número de Janeiro a Julho de 2006 da revista Mamasume, da Associação de Comandos. É aqui que vem publicado o artigo do coronel Raúl Folques acerca da Operação Neve Gelada, que se realizou a 20 de Março a 3 de Abril de 1974. Terá sido a última grande operação na Guiné. Sei que o Amadu Djaló esteve lá, ele relata este episódio, aliás em tons muito pessimistas.

Segundo Folques, na segunda quinzena de Março de 1974, a situação no canto Nordeste do teatro de operações da Guiné era crítica e deteriorava-se rapidamente. Canquelifá estava a ser diariamente bombardeada com morteiros 120 mm, foguetões e canhões sem recuo. Havia indícios de que se preparava um assalto com tropas de infantaria à localidade, cuja guarnição estava nos limites da resistência física e psíquica (CCaç 3545 com milícias e artilharia). O comandante-chefe, Bethencourt Rodrigues, determinou que o Batalhão de Comandos fosse resolver a situação. Pela análise fotográfica, concluiu-se que o In organizava as suas bases de fogos em duas posições, pelo que as Companhias de Comandos foram lançadas em direcção a estas duas posições, para desarticular e desbaratar o agressor. Duas Companhias de Comandos dirigiram-se para as bases de fogos e assaltaram as respectivas posições. O inimigo retirou com pesadas baixas, infligindo às nossas tropas 3 mortos e 20 feridos. Folques comenta que os heli-canhões estacionados em Nova Lamego demoraram muito tempo a chegar à zona de combate, tendo tido uma acção reduzida na exploração do sucesso obtido. Fez-se uma recolha significativa do material capturado e nos dias seguintes a região foi batida, tendo havido contactos esporádicos com bigrupos In. Folques refere ainda que esta operação consolidou a posição de Canquelifá, tendo o In perdido uma bateria de morteiros pesados, dado que foram capturados três morteiros de 120 mm completos, mais uma culatra, dois tripés e um prato base. O In terá sofrido 26 mortos confirmados.

No número de Janeiro a Junho de 2008, a revista Mamasume apresenta dois extensos trabalhos, um de autoria do co-editor Virgínio Briote sobre os comandos da Guiné da história de Brá e outro sobre a Operação Tridente, da autoria de António Vassalo Miranda. O Virgínio publica extractos do seu diário, estamos em meados da década de 60, transcreve relatórios das operações e até aparece publicado um bilhete apreendido a uma enfermeira, talvez familiar de Domingos Ramos, dirigente do PAIGC. Não acredito que o Virgínio Briote, com os dotes que lhe conhecemos, não irá mais tarde engrossar e condimentar esta belíssima prosa. O relato da Operação Tridente é uma versão pessoal, alguém que participou do princípio ao fim e que se apresenta como testemunha ocular que sentiu no corpo e alma todos os 73 dias que esta operação durou. Vassalo Miranda foi furriel dos Comandos, chefe da primeira equipa de assalto. Apresenta a composição das forças dos cinco agrupamentos, os Comandos do alferes Saraiva, mais os meios da Marinha e da Força Aérea. O autor não regateia elogios às forças inimigas, que deram sempre a cara à nossa ofensiva e resistiram até ao limite. No final, as nossas tropas puderam percorrer as três ilhas (Caiar, Como e Catunco) em todas as direcções, como é sabido ficou depois um aquartelamento em Cachil, que mais tarde veio a ser abandonado. Gosto muito do final deste depoimento, assim: “Muitos anos depois do 25 de Abril de 1974, por motivos de saúde, estive internado no hospital Egas Moniz. Partilhava o mesmo quarto com um cidadão guineense que ali estava para ser operado a uma catarata. Tornámo-nos amigos e durante o período de maior sofrimento sempre me apoiou. Falámos dos tempos idos e... chegámos à conclusão de que tínhamos estado na ilha na mesma altura, só que em barricadas diferentes. 42 anos depois, não tenho qualquer rancor. Perdi camaradas e amigos. Eles também. Irei morrer sem que o meu sonho se concretize. O sarar das feridas, juntando os sobreviventes de ambos os lados na praia de Caiar, numa confraternização de homens que lutaram com dignidade, para honrar as bandeiras que defendiam e que acabaram por se entrelaçar”. Este punhado de revistas “Mamasume” irá para o espólio da nossa biblioteca.

Já corre uma brisa, o melhor será pegar nos panos de pó e começar a limpeza das estantes. Mas olho para a capa de “Tempo Africano”, de Manuel Barão da Cunha, com lindas ilustrações de Neves e Sousa (Didáctica Editora, 1971), vou ainda mergulhar nesta prosa antes de passar para as operações triviais de higiene, conservação e limpeza de uma biblioteca que tanto amo. Manuel Barão da Cunha é autor de “Aquelas Longas Horas”, “A Flor e a Guerra” e de um “Tempo Africano” noutra edição, todas essas obras já aqui foram alvo de recensão. Não escondo que é este o livro da minha preferência. É uma escrita sincopada, tudo músculo sem gordura, uma reportagem pintalgada de testemunho e de alguma memória ficcionada. Estamos em Luanda em 1970 e recordam-se os acontecimentos de 1961, que Barão da Cunha viveu em directo, nos tiroteios de Luanda, nos blindados que foram ajudar os fazendeiros. O autor procurou as personagens, são civis que refizeram a vida, a camaradagem permanece, disseminou-se pelas muitas localidades de Angola. Esta prosa obedece a um eixo central das preocupações de Barão da Cunha: exaltar o militar anónimo, elogiar o acto fraterno, chamar a atenção para o sublime desses gestos heróicos a uma metrópole desatenta (não esquecer que estamos num período anterior ao 25 de Abril). Depois emergimos em Tabassai, na região de Pirada, estamos ainda em 1970. Tabassai fica sensivelmente a meia distância entre Pirada e Bajocunda, pertence ao regulado da Pachana. Voltando atrás, em 1965, é provável que Barão da Cunha rememore acontecimentos que viveu, descreve usos e costumes, temos novos reencontros, há mesmo uma ida ao Morés, temos de novo os comportamentos de heróis anónimos na permanente elegia de Barão da Cunha.

Suavizou o calor, agora vou às lides domésticas. Estão já seleccionadas as leituras em que vou mergulhar, seja qual for a intensidade para a onda de calor para amanhã: “Amílcar Cabral” contado pelo embaixador cubano Oscar Oramas; “As Memórias das Guerras Coloniais”, por João Paulo Guerra (sem dúvida o primeiro grande condensado do contexto da guerra colonial no seu possível deve e haver) e esse sublime “Ébano” do prodigioso Ryszard Kapuscinski, muito provavelmente o livro que melhor descreve, em crueza e humanidade, a diversidade das pessoas africanas. É este o proveito que vou tirando da canícula, que me incita a viajar por África à volta da minha biblioteca.

(Continua)
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Notas de CV:

Clicar nas imagens para as ampliar.

Vd. poste de 11 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6845: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6846: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Cabo Felgueiras

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 10 de Agosto de 2010:


Memórias boas da minha guerra (6)

O Cabo Felgueiras

Chamava-se Joaquim Freitas, mas era mais conhecido por Felgueiras, por ser natural dessa terra. Foi dos melhores militares que conheci. Além de manejar bem a arma G3 e a Metralhadora, era um mimo na utilização da Bazuca. Incutia muita confiança nos companheiros, porque respondia ao inimigo sempre da melhor forma. Apontava invariavelmente para o ponto de onde vinha o ataque. Esteve sempre nos principais confrontos, sem se esquivar. Se era destemido (estou a lembrar-me de quando se lançou a salvar o Banharia, com uma granada de fumos activada no seu bolso), ele era ainda o primeiro a ajudar os colegas em dificuldades, chegando a transportá-los às costas.

Também era brincalhão e provocador e, por isso, estava sempre ligado às borgas e às discussões. Era um líder entre a malta da caserna. Porém, tal como os demais, deixou na terra a sua amada, de quem recebia amiúde a esperada correspondência. Confessou-me que a futura sogra não gostava dele e, com ele ausente, iria fazer tudo para a filha o largar. Quando eu o via a dar chutos nas ervas e tudo o que lhe aparecia pela frente, já era sabido: más notícias. Então Felgueiras, que se passa? - perguntava eu. E ele, normalmente respondia – A mulher de bigode fode-me. Era a mãe da namorada. E lá adiantava que devia andar ali mouro na costa, porque “aquela filha da puta” andava a meter a filha na convivência de outro pretendente, um parente afastado, bom cristão e herdeiro de muita terrinha para trabalhar. Ora o Felgueiras que tinha bom aspecto e era cativante tinha capacidade suficiente para dominar a sogra (o sogro era um morcon, que não riscava nada). E, como estava longe, desesperava. O tempo foi passando e ele lá foi lutando para merecer aquele amor sofredor, que o acompanhou durante os dois anos de degredo e de revolta.

Em Dezembro de 1967 tivemos quase 2 semanas de descanso, em Bolama, a seguir à Operação “Quebra Vento”, realizada em Gubia de Empada, para implantação de um aquartelamento. Recordo-me ter dito ao Felgueiras que havia um macaco pequenino no Bar da Messe e que eram um espectáculo as habilidades que ele fazia. E que o militar, dono do macaco, tinha tido o desplante de afirmar que estava para ali desterrado, enquanto nós andávamos de um lado para o outro, a conhecer a Guiné.

Quando saímos de Bolama, apareceu-me o Felgueiras todo orgulhoso e satisfeito, dizendo que tinha uma prenda para mim. Deitara a mão ao macaco e agasalhou-o. Não faço ideia como passou na Porta de Armas. Não lhe disse nada, mas senti um certo gozo. A proeza do Felgueiras não tinha ficado por ali. Como a ideia dele era oferecer-me o pequeno saguim, o Felgueiras não quis ficar de mãos a abanar e conseguiu trazer do Bar da Messe outro macaco, também domesticado, mas maior.

Na minha Companhia, uma das principais figuras era um 1.º Sargento, odiado por todos. Mandava na Secretaria e controlava a parte financeira. Como cobiçava o lugar do Vagomestre, a cargo do furriel assim designado, responsável pela gestão da alimentação dos militares, tratou, na primeira oportunidade, de o tirar do posto. Este lugar era, na mão dos desonestos, uma consabida fonte de receita. Não se soube como, mas não demorou que as contas do Vagomestre acusassem um saldo negativo e, pior que isso, teve de repor o dinheiro à sua custa, sem lhe darem qualquer possibilidade de recuperação na gestão. A família teve que lhe mandar o dinheiro para a Guiné.

Ninguém gostava desse 1.º Sargento e ele também não perdoava a hostilidade generalizada. Cada um fazia questão de ostensivamente o ignorar. E ele, para se pagar, lá procurava cuspir ódio e veneno contra os milicianos. Foram várias as histórias tristes deste sujeito, que procurarei lembrar noutro local.

Faltavam menos de 15 dias para o regresso. Estava eu de serviço no QG – Quartel General - e as orientações superiores eram que, numa Companhia de 150 militares, apenas um terço estava autorizada a sair do Quartel. Ordens são ordens, mas nem sempre se levavam à risca, especialmente em quartel de maior acalmia. Ora, os soldados, mesmo sem dispensa, procuravam “desenfiar-se”. Por norma e lealdade, antes do “desenfianço”, cada um perguntava se podia sair. E eu só lhes dizia: Se acontecer alguma coisa, avisem logo, porque tenho que fazer o relatório das anomalias antes das 8,00 horas – hora do render da guarda. Todos os dias se fazia a chamada do recolher obrigatório. Ao ver que o terço estava “aumentado”, quando era eu o Sargento Dia, puxava a formatura para debaixo de umas árvores enormes, junto ao refeitório. Com menos luz, e com as sombras das árvores, aquela formatura parecia muito maior. E para mais realce, à aproximação do Oficial Dia, lá ia chamando, em voz bastante alta, números aleatórios, que, invariavelmente, recebiam a resposta de pronto! Sem o deixar chegar, e com todos em sentido, gritava eu para o Oficial de Dia - Vossa Senhoria dá licença? Ao que ele respondia, perguntando: - Está tudo? - Sim, respondia eu.- Então, mande. E, logo de imediato, destroçavam uns para cada lado, sem hipótese de recontagem. Eu não conseguia juntar mais que 23 ou 24 presenças! Era arriscado, mas, como estávamos nos últimos dias, sentia-me bem com a satisfação da “malta”.

- Aquele que vai ali não é o Tripeiro? - perguntava o 1.º Sargento ao Sargento que o acompanhava, ambos a passear na avenida do Pilão. - É mesmo, respondeu-lhe. - Ouve lá, ó Tripeiro, anda cá - chamou - Como é que andas cá fora, se estás detido, e, claro, sem qualquer dispensa? - Sabe, é o Furriel Silva que está de serviço e com ele não há problema. É um gajo porreiro – confiou o Tripeiro. Ah, sim? Então quando é o Furriel Silva, é tudo à balda? – questionava de fala amolecida o Viscoso, que, para melhor tirar dele, aproveitou para lhe pagar uma cerveja no Bar Jagudi. Era caso de admiração, porque o somítico, para não gastar um tostão, só bebia água del cano. Cerveja só se alguém lhe pagasse. E assim, estando no Bar a beber também se mostrava à nossa tropa, a confraternizar!

- Silva, acorda que estás fodido. O detido, o Tripeiro, foi visto pelo Primeiro perto do Pilão – alertou-me, bastante aflito, o Campos. Virei-me para o outro lado e, meio a dormir e meio acordado, devo ter-lhe respondido mais ou menos: - Caga nisso que eu cago no Primeiro.

Seriam cerca de 8,30 entraram no meu quarto o Machado e o Faria, e em tom muito sério, dispararam: - Olha que o Primeiro esteve à espera para ver se apresentavas faltas até ao render da guarda. Agora está a fazer uma participação contra ti, por o Tripeiro andar a passear em Bissau. Já mandou chamar o Tripeiro para depor. E aquele gajo, que gosta tanto de ti, vai-te foder. Mexe-te rapidamente.

Vi num relance a gravidade da situação. Mas, que hei-de fazer? questionava-me repetidamente. Tantas vezes debaixo de fogo, estava afinal numa situação mais negra. Tudo de mau vinha à cabeça, e por momentos fiquei paralisado. Qualquer processo naquela altura iria obrigar-me a ficar na Guiné, como tantos outros condenados, e precisamente no momento mais ansiado e carregado de projectos. Havia de aparecer aquele filho da mãe a lançar mais uma vez a peçonha, a alimentar a sua inveja e a gozar com o sofrimento alheio.

Assaltou-me uma ideia. Dirigi-me rápido à caserna e vi que os soldados pareciam já estar à minha espera, adivinhando o que me ia na mente. Logo ali à entrada, perguntei em voz alta: - Atenção malta, Vocês viram ou não viram o Tripeiro, ontem, no recolher obrigatório?

A resposta surgiu unânime e categórica. - Vimos. - Por acaso ele até estava mesmo à minha beira – respondeu logo em voz alta e firme o Cabo Felgueiras. - Ok, era só isso. E afastei-me. (Por sinal o Cabo Felgueiras não tinha estado na formatura do recolher.)

Ora o certo é que o Primeiro não conseguiu testemunhas para promover o processo. E o próprio Tripeiro, chamado a depor, também negou tudo, incluindo a cerveja que tanto havia custado ao nosso querido Primeiro Sargento.
Confesso que esta foi das maiores satisfações que senti em todo o meu serviço militar.

Depois do regresso não vi mais o Felgueiras. Que estava em França e, às vezes, vinha gozar férias em Agosto, informou um irmão. Tenho pena de não o poder abraçar.
Que sejas muito feliz e que tenhas dominado a velhota de bigode!

Silva da Cart 1689

1 - Na piscina de Bolama ( Berguinhas, Silva e Miranda ) - Novembro/Dezembro 1967.

2 - No mato, cerca de Catió, com Sedas à minha direita e Felgueiras à minha esquerda) - Fev 68.
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Nota de CV:

Vd. poste de 4 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6824: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (5): Morteiradas em Canquelifá

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6845: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (1): As Viagens do Bispo Portuense à Guiné e a Cristianização dos Reis de Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Agosto de 2010:
Queridos amigos,
Aproveitei o calor para voltar à Guiné em espírito.
Não estava tempo para deambular pelas florestas, deixei-me levar pelas surpresas de uma biblioteca em fogo. Como irei contar.

Um abraço do
Mário



Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (1)

por Beja Santos

O propósito era de que aquele primeiro dia de férias fosse destinado às limpezas de seis estantes, qualquer coisa como 700 livros que aguardavam a remoção de poeiras e aranhas. O amanhecer da floresta avisava um princípio de canícula e na verdade até o rezingar dos grilos parecia profundamente dolente, a bicharada fugia da fornalha do sol. Entrei na biblioteca com balde, panos, vassouras de diferente porte e pá.

Impunha-se remover escolhos até chegar às estantes, resmas de papel, sacos de plástico, caixas de sapatos sem identificação. Iam desaparecendo os escolhos quando se destacou uma folha a negro tracejado, assim dizendo: “Para ver com mais cuidado, há aqui coisas para o blogue, material pouco classificável”. Amolengado com o calor intempestivo e o espectro de tanta limpeza, sentei-me. Como vou dar notícia, o dia começou com leituras, para meu proveito, daí o meu pedido da vossa atenção.

Primeiro, pus-me a remexer no catálogo da exposição de Manuela Jardim (artes plásticas), Luís Vasconcelos (fotografia), Pedro Cunha (fotografia) e Germano Almeida (literatura) que se realizou de Março a Maio de 2006 na Livraria Municipal Verney, em Oeiras. O motivo inspirador da exposição era panos da Guiné e Cabo Verde, de Manuela Jardim, nascida em Bolama. A panaria guineense, sobretudo a manjaca, é de uma enorme beleza. Manuela Jardim revela um grande talento nos motivos escolhidos para a sua pintura. Onde me detive mais foi na fotografia de Pedro Cunha, que integra a redacção do Jornal Público. As suas fotografias da Guiné-Bissau expostas na Verney datam de 1996. Escolhi três, a saber: dois amigos, adolescentes, que pousam para o fotógrafo, e que nos dão a imagem de uma enorme sinceridade/serenidade; um jovem que parece caminhar sobre as águas e que no fundo se equilibrou na quilha de uma canoa, tendo como pano de fundo um arvoredo reflectido nas águas; e um jovem repetidor que aproveitou a ausência do mestre para chamar a si a insigne missão de revelar as letras e os seus sons. São fotografias muito belas, o catálogo terá como destino a biblioteca do blogue.


Segundo, já aqui se fez a recensão de “As viagens do Bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné e a cristianização dos reis de Bissau”, da autoria do Almirante Teixeira da Mota. A edição então utilizada era da Alfa, que comprei na Worten por cerca de 4 euros. A edição que ora folheio foi-me oferecida em Março de 1974 quando o almirante dirigia o Centro de Estudos de Cartografia Antiga, na Junta de Investigações Científicas do Ultramar. Tem dedicatória e sobretudo tem algumas fotografias que faziam parte do espólio pessoal do almirante. Impressionou-me aquela vista parcial da cidade de Bissau com o navio Funchal atracado ao cais do Pidjiquiti, coisa que não acontecia no meu tempo, os navios deste porte ficavam ao largo, éramos embarcados e desembarcados em lancha. A fotografia tem uma relativa nitidez, fala-nos de uma Bissau que já não existe, grande parte deste arvoredo, as instalações e os monumentos desapareceram, estão danificados ou submetidos à indiferença. A outra fotografia mostra-nos um homem grande do “chão papel”, mais propriamente do regulado de Bijemita. Percebe-se porque é que Teixeira da Mota foi buscar este homem grande. O seu livro é uma obra de história, fala do estabelecimento dos portugueses na ilha de Bissau, sobretudo a partir do século XVII. Neste volume encontramos uma descrição da ilha de Bissau pelo padre Manuel Álvares (1616) a relação da primeira viagem do bispo D. Fr. Vitoriano Portuense à Guiné, há documentos sobre a ilha de Bissau, os papéis estão sempre na berlinda. Aliás, aparece aqui também um opúsculo relativo ao baptismo em Lisboa de D. Manuel de Portugal, filho do rei de Bissau. A sobrecapa tem uma bela gravura com a planta da Praça de S. José de Bissau segundo José Luís de Braun, datada de 1780. Trata-se de um belo livro que também seguirá para a biblioteca do blogue.

Interrogo-me, nesta altura a biblioteca está quase a arder, nem mesmo as cantatas de Bach no melodioso fio de voz de Dame Janet Baker trazem refrigério a esta biblioteca encravada numa floresta do concelho de Pedrógão Grande, porque é que tenho aqui um conjunto de números da revista Mamasume, da Associação de Comandos. Recordo-me que me foram oferecidas pelo seu presidente, José Lobo do Amaral, quando visitei as instalações a seu convite. Há alguns post-it em certos números. Encontro a Operação Neve Gelada (20 de Março a 3 de Abril de 1974) num dos números, noutro número um extenso trabalho sobre a Operação Tridente, Ilha do Como, de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1974 e também um trabalho do Virgínio Briote sobre os Comandos da Guiné. Vou reler tudo com mais cuidado e fazer a respectiva recensão mais tarde. Entretanto, o calor aperta, faz algum sentido embrenhar-me nesta atmosfera de guerra dos comandos com tal temperatura. A vantagem é que vou buscar à cozinha um copo de água, não quero desidratar entre a ilha do Como e Canquelifá...

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de3 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6818: Notas de leitura (141): Corte Geral, de Carlos Lopes (Mário Beja Santos)