1. Integrada na série Notas de leitura, vamos publicar, em dois postes, uma apreciação "À Viagem de Tangomau", a última obra do nosso camarada Mário Beja Santos, feita pelo outro nosso camarada José Brás, ele próprio um autor muito importante na bibliografia da Guerra do Ultramar (ou Colonial). Porque, sem dúvida, estamos mais uma vez perante uma excelente prosa do camarada José Brás, infelizmente para nós, às vezes um pouco arredado do Blogue, chamamos a especial atenção aos nossos leitores para esta forma diferente de abordagem a um livro.
ENTRE O RELATÓRIO E A FICÇÃO
"A VIAGEM DO TANGOMAU" - uma obra prima
Por José Brás
Título danado, este que aqui ponho. Raios me partam!
De onde me virá esta desgraçada tendência para a secura e para a
dureza, algumas vezes mais parecendo mesmo uma busca qualquer de
desamor, ou pelo menos de incompreensões e animosidades variadas, quando
entro na discussão do homem, da sua história conhecida, dos seus
anseios, dos trambolhões que dá em cada dia do seu calvário, e também
das suas supostas alegrias e vitórias, que a mim sempre me parecem
pequenas, comparadas com o que deveriam ser no seu projecto de Deus?
Digo isto, indo nós ainda no princípio desta arenga, desta
conversa de mesa de cabeceira, pode dizer-se porque o principal da
leitura que fiz ao livro do Mário, a fiz na cama, noite fora varando o
silêncio da mata de sobro que enreda o Monte Moinho do Meio.
Andando eu, ainda, às voltas com o título que lhe quero pôr, mais
ou menos decidido que possa estar no que, encimando, se pode ler, e já
aqui tenho o anúncio desta cagança velha, quase tão velha como eu, na
aparência de patada inesperada.
É que as palavras têm peso, cada uma por si se estiver só mas
variando quando se juntam a outras. Variando no significado, no sentido,
na intenção de quem as junta, na música interior dos sentimentos de
quem as lê, sobretudo se quem as lê ou ouve, as sente para si escritas
ou para amigos próximos, queridos amigos ou apenas conhecidos de
estórias bem ou mal contadas.
E até, diria mais, mesmo que não me abalance a
profundidades teóricas, digo que as mesmas palavras postas no conjunto
em posições diversas, podem verter-se em gritos de raiva ou em lamúrias,
em casos fora deste, evidentemente, como uma equipa de futebol em que
troquem as posições, os defesas, os médios e os avançados.
Experimentemos com as que constam do título e do subtítulo
presentes, peguemos nelas, mudemos-lhe a posição no conjunto e avaliemos
se o que se dizem é o mesmo!
Então, por exemplo…
A VIAGEM DO TANGOMAU
- uma obra prima entre o relatório e a ficção
Podemos começar já a comparação desta
hipótese com a da primeira escolha, e, de mão sobre o coração e cabeça
limpa, neste fórum em que cada um vai ter que se defrontar consigo
próprio, ponhamos prós e contras a ver se os eus que temos e nos têm, se
se entendem nas variáveis do jogo proposto.
Por exemplo! A mim, ou a um dos de mim, me parece que estas duas
propostas se encontram em extremos opostos na possível objectividade de
uma interpretação asseada.
Na primeira, até parece que, quem escreve, suponhamos que nem sou eu,
quererá marcar desde logo uma cor de negativo na apreciação do que vier a
produzir-se como opinião.
ENTRE O RELATÓRIO E A FICÇÃO, assim, sem mais nem menos, como
marca inicial, sabendo como sabemos que a primeira imagem é quase sempre
a que perdura na cabeça de quem vê, de quem sente, de quem guarda o que
vê e o que sente, e que, por um lado, relatório traz consigo o ferrete
de coisa menor como escrita, formal e sem ponta de liberdade criativa na
forma, no estilo e no conteúdo, e que ficção é quase sempre coisa tida
como fruto de imaginações fora do quadro de um real que nos cerca e
esmaga à maioria, largas vezes resultado de um outro lado de uma
extremada liberdade criativa.
Só depois aparece, em itálico e maiúsculas menores, o título da
obra, A VIAGEM DO TANGOMAU a que se acrescenta a qualidade de obra
prima, na verdade, qualidade já emparedada no espaço imaterial que fica
entre um relato objectivo e uma ficção sem ferramentas de medida.
Mas experimentemos outras hipóteses, ainda que isto possa parecer
um exercício meio-maluco de quem instalou na cabeça uma certeza a que
agora quer sujeitar as variantes possíveis de forma a fazer a verdade
única da coisa.
A VIAGEM DO TANGOMAU
Entre o relatório e a ficção - uma obra prima
E que dizer desta outra tentativa de busca de uma
solução clara, rigorosa e justa, como imagem primeira, A VIAGEM DO
TANGOMAU, de quem quer dar opinião honesta sobre o que leu; sobre as
emoções que viveu, lendo; sobre a minúcia do relato do acontecimento
objectivo, dos transes circunstanciais de situações extremas, dos
personagens reais-quase-imaginação, dos sentimentos, das aflições, das
carências absolutas, da paisagem avassaladora, da solidariedade, da
fraternidade, da consciência de um humano profundo em cada
homem-quase-deus?
E que dizer também da qualidade da escrita, do respeito pelas
regras da construção literária no meio de tamanha exaltação de almas, do
talento em que evolui a minúcia longa do descritivo, seja do armamento;
seja da fisionomia dos homens e das suas qualidades intrínsecas ou
aparentes; seja da paisagem espantosa; seja do risco e da iminência do
perigo radical; seja da violência com que se enfrenta e elimina o
inimigo a quem não se odeia?
Entre o relatório e a ficção, aparece, assim, atenuado pelo que
tem atrás, o principal do bolo, e seguido da cereja definitiva que
contrapõe e dilui os exageros de (pré)conceitos que carregam, em cada um
que lê, de seu modo, relatório e ficção.
Uma obra prima - entre o relatório e a ficção
A VIAGEM DO TANGOMAU
Aqui, já nem parece aconselhável continuar o jogo,
tão evidente me aparece a possibilidade de diferenças nas minhas
próprias leituras, e, mais ainda, nas leituras de cada qual, receptor do
que aqui ler e, melhor, se comprou o livro e lhe deu a volta.
Pior ainda, é, querendo eu emendar a mão, arredondar, adoçar o
título, fazer a experiência de tirar palavras que carreguem
negativamente o que devo dizer, e ver-me na dificuldade de não ser capaz
de o fazer.
Por exemplo, o título do livro,
A VIAGEM DO TANGOMAU, tem, obrigatoriamente, de permanecer e ninguém discordará disso, aposto singelo contra dobrado.
Uma obra prima, dê lá por onde der e seja lá qual for a vossa
opinião, não a tiraria daqui nem a tiro, porque é mesmo isto que penso
do livro que acabo de ler, ainda que possa desconfiar da minha
insipiência crítica, seja por falta de ferramentas teóricas de análise;
seja por falta de distanciamento que a emoção da leitura roubou; seja,
até, por alguma espécie de insanidade intelectual que me possa ocorrer
nesta etapa da vida.
Entre o relatório e a ficção… se pudesse, seria talvez a parte que
aceitaria apagar se a isso fosse obrigado em exigência incontornável.
Mas não tiro!
Primeiro, porque ninguém me obriga, e, segundeiro (sic), porque
quando leio este livro de viagens, sinto-me um pouco, desculpem os que
me julgarem exagerado, sinto-me um pouco como ao ler Fernão Mendes (ou
Mentes?) Pinto na sua sublime
“Peregrinação”. Quero eu dizer com isto
que nunca sei se a quantidade, o rigor e minúcia das peripécias
dramáticas das mil viagens e dos personagens delas, são realidades que
ultrapassam a ficção ou se são ficção que, na ânsia da busca do mais
fundo do humano, recua até se emaranhar na própria realidade, misturando
o profano e o sagrado porque caminhando para Deus, ainda que Deus se
unifique no ideal dos muitos deuses que conduzem as ânsias e os gestos
dos humanos que se cruzam na paisagem, nas dores e nas alegrias e se
prolongam e confundem uns nos outros.
E a minha grande perplexidade perante este grande livro e perante
as suas personagens, o Tangomau, sobretudo, vem da descoberta de um
homem que, com alguns pontos de toque comigo próprio - a preocupação com o
mundo, a procura desse fio que haveria de ligar todos os seres sobre a
Terra porque todos buscando a felicidade e o caminho para o Infinito; a
sede de justiça social; a aflição pelos horrores do crime colectivo se
não erguessem eles próprios os muros que os separam irremediavelmente -, e
de um homem que ao mesmo tempo e em aparente independência de razões e
de razão, se assume herói numa guerra cruenta e distante do seu passado
individual, se adapta à ideia da morte e da aniquilação de um inimigo de
quem desconhece quase tudo, e da aniquilação de si próprio, na
consciência de que, quem mata, se mata a si também, um pouco em cada
bala, um pouco em cada emboscada, um pouco em cada noite de espera pelo
inimigo que é seu mister eliminar, ainda que possa renascer também um
pouco de cada vez e sair da experiência um outro, se não no talhe da
figura, pelo menos no olhar e na alma que o comanda.
E esse homem, visto assim, é um ser diametralmente diferente de
mim, este leitor que agora escreve sobre o que leu e que, obviamente,
vivendo por esta via o que viveu por outras e reais o autor, se modifica
também um pouco e ganha opinião, provavelmente diferente da que teria
antes da leitura.
Mas para entender tal diferença entre os dois, é necessário que
deixe para trás a preocupação com o título do que aqui se escreve, e
passar à releitura do livro, tentando conhecer um Tangomau que ainda o
não é, distraído no quotidiano da urbe grande com suas representações de
vida e de morte, nas letras, na música, nas artes em geral, na
aquisição de algum saber científico, na preocupação do sustento, nas
relações e nas convenções sociais que o ligam à família e aos amigos, em
círculos que sempre se fecham mais facilmente do que abrem…
E passar à ideia da entrada no serviço militar, nessa altura já e
o mesmo que a entrada na guerra em África, pela quase certeza de ter
que a viver num futuro muito breve, e ter de a assumir no quotidiano de
um mundo novo e também desconhecido até aí, nos tempos, nos lugares, nos
modos; nas regras sociais internas, regulamentos, valores, práticas,
aprendizagens intensivas que haviam de contrariar as do civil, cidadão e
urbano culto que crescera homem exaltando a vida e o amor entre as
gentes.
Há que acompanhar a sua transformação no seio de uma sociedade
hierarquizada, potenciadora da submissão aquiescente e da prepotência
dos poderes, que grassava nos quartéis de Lisboa e arredores, e nos
quartéis do mundo inteiro, acho eu, geradora de uma cadeia de comando em
que o de cima esmaga o de baixo e o de baixo se submete ao de cima em
nome do RDM e dos altos desígnios pátrios das Forças Armadas como um
dogma total e irrecusável.
E embarcar com ele para o calor da Guiné, sentir-lhe o espanto no
mergulho vertiginoso da comodidade de Lisboa ou da pacatez de Ponta
Delgada e da travessia marítima em primeira classe, para um Bissau ainda
assim-assim, até ao aparente vazio do Cuor, no calor sufocante de uma
viagem fluvial pela estranha e longa nomenclatura dos lugares que
ladeiam o Geba, adentrando a mata e o risco, até Bambadinca, até à
bolanha de Finete, avançando sempre como se às arrecuas nos sinais de
civilização, de olhar espantado, a custo tomando nota, descobrindo o
anúncio daquela guerra tonta, de milícias, de armamento tosco, de
palavrear novo, de cumprimento gentílico, de desconforto absoluto, de
andança permanente na lala, na floresta de galeria, na embosca, na
armadilha, no combate inevitável e na inevitabilidade da raiva, da dor,
do amor, do ânsia de aniquilar um inimigo escorregadio, na sua rápida
progressão de branco em negro, na proximidade do caos e na consciência
absoluta de o combater e de se salvar, ao mesmo tempo mandinga, balanta,
fula, alferes e milícia, um negro de Missirá, de Finete, da aldeia do
Cuor, de Mato de Cão, dos lugares onde matou, morreu e renasceu outro, e
um branco das salas da cultura de Lisboa onde se salvou, de novo
renascendo, não o mesmo que partira dois anos antes, nem o que renascera
dos corpos decepados de seus soldados negros, mas um novo, na
justificação plena de que Tangomau não é
“aquele que morre ausente ou
desterrado da pátria”, mas um outro que tendo-se da Pátria desterrado, a
manteve sempre em si na provação, e a devolveu aos seus mais clara e
justa.
Porquê, então, o RELATÓRIO do título desta abordagem?
Lembro-me de ter lido de um camarada do blogue, Henriques da
Silva, um magnífico texto de abordagem ao livro do Mário que, entre
muitas palavras de agrado e de positiva opinião sobre a leitura, tocava
na questão da minúcia e do pormenor, considerando - Detecta-se uma certa
"overdose" no que concerne as descrições exaustivas das armas e
mecanismos das mesmas…” Mauser, G3, Dreise, Breda, Vigneron, bazooka,
lança-granadas-foguete, morteiros, granadas ofensivas e defensivas, suas
peças desmontadas e remontadas, limpeza, utilidades, performances,
peso. As ferramentas de um suposto combatente, pás, machadas-picareta,
artefactos antigos ou modernos de uma guerra que se teria de assumir por
inteiro.
Lembro-me também de, em comentário, ter eu concordado com
Henriques da Silva nessa abordagem, excepto na afirmação da “overdose”
das descrições, comentando, então,
“Partilho inteiramente a opinião
de Henriques da Silva, quanto à qualidade da obra literária em apreço,
seja qual for o ângulo porque a queiramos analisar, mesmo estando apenas
acerca de metade da sua leitura.
Discordo da apreciação que faz a um alegado exagero de
pormenor na descrição do armamento e de outros dados, episódios,
paisagens e pessoas. Penso mesmo que tal "exagero", abordando numa
riquíssima e dinâmica escrita, quase nos pondo nas mãos, nos olhos e na
alma as coisas a que dá vida, é mesmo um achado imprescindível que eleva
o livro a um nível muitíssimo elevado.”
E eu acrescento aqui e agora os exercícios e as manobras, a
prática de patrulhar, de emboscar, de reagir ao fogo, de atacar em golpe
de mão ou …
E acrescento ainda a paisagem, o envolvimento, o Convento, a Tapada, os
itinerários de vinhas ou de mar-à-vista na Região Oeste, de tabancas
de gente pobre da Guiné, de arrozal, de floresta quase virgem, de
rios que serpenteiam paralelos ou se cruzam, se continuam, de tarrafo,
de bolanhas.
E ponho mais ainda os teatros de Lisboa, as peças e os actores,
os filmes, a música de Pucini e seus cantores, as bibliotecas, as
tertúlias literárias. Ou Ponta Delgada com sua praxis, sua cultura às
claras ou na sombra dos dias, a arquitetura da cidade e, de novo as
salas de música, os museus, as famílias. E Bissau com seus edifícios,
suas avenidas, Pidjiguiti, alguns museus e bibliotecas e restaurantes e
hospital e hotel e QG, no Cuor os palmeirais, o poilão, as laranjeiras, a
extensa lista de nomes de lugares como o Chicri, Sansão, os Nhajões,
Malandim, Gambana, Amedalai, Xime, Madina Colhido, Colicumbel, Taibatá,
Canturé, Buruntoni… trilhos e picadas, operações, as cenas de combate, a
violência do fogo, as gentes do inimigo abatidas, moranças ardendo,
armas apreendidas, e as minas anti-carro no efeito das suas explosões
sob GMC’s e Unimogues, sob o corpo de gente nossa, e as fomes e sedes,
os medos, o cansaço, o esgotamento físico e psicológico, o antagonismo
tribal e religioso, os usos e os costumes, tudo entremeado por citações,
pequenas e extensas passagens de obras filosóficas, de romances, de
poesia, de evocações de obras de outras guerras, comparações,
lembranças de ditos e sentenças, chamados a propósito e em consonância
com o que se escreve sobre a vida, seja um chá no Chiado, uma leitura de
poesia, uma emboscada em Samba Silate, uma flagelação em Finete.
Pode parecer exagerado o pormenor de tão abundante descrição dos
gestos, das coisas, das urbes grandes e pequenas, dos actos, dos
exemplos, dos pensamentos, dos sonhos, das raivas, das dores, das mãos
que se dão ou se retiram, da busca de razões e das verdades, das
descobertas, das confirmações, de Deus e de deuses, do mínimo, das
partes e do todo, do outro e de si próprio, uno, múltiplo e repartível.
Pode parecer, sim um exagero.
A mim, contudo, o que parece é que sem isso, sem os pormenores e
as minúcias, sem os odores e os sons, sem as texturas, as formas e os
volumes, sem os tempos e os lugares exactos de cada peça, de cada arma,
de cada casa, de cada livro lido, de cada concerto, de cada terreno que
se pisa, de cada emboscada sofrida ou montada, de cada noite na humidade
da mata, de cada patrulha, de cada choro, de cada praga, sem estas
coisas descritas ao pormenor da realidade real, como um gigantesco e
plural relatório sobre coisas, gente e animais, como, repito, se
poderia, depois, garantir a sua recriação extrema em que o real se
aproxima tanto da ficção, que se torna ficção o que é real e real parece
ficção.
Como se poderia entender esse homem que de Lisboa parte para
Mafra e para Ponta Delgada e para Bissau, cristão, humanista, homem
pleno dessa cultura que se constrói pelo belo segundo padrões urbanos, e
nessas viagens se vai transformando gradualmente no guerreiro que se
completa comandando tropas negras e brancas, mais negras que brancas,
diga-se, de tropas negras combatendo outras tropas negras e dela recebe
combate total, a bem dizer, irmão contra irmão, em o ódio, em raivas, em
juras de morte recíprocas, e também na certeza de que nenhum soldado
pode evitar o jogo extremo da vida e da morte, mesmo que sem o amparo de
grandes filosofias, de pátrias seguras ou de história longa e assumida?
Como poderia tal branco de Lisboa se tornar guerreiro negro do
Cuor, N’Baké, sábio e corajoso irmão do negro com quem jogava a vida de
mão dada?
Como, finalmente, se poderia aceitar que se colocasse no título
disto a palavra ficção, ainda por cima envolta na afirmação da ideia de
obra prima, sem se imaginar que cada leitor se vá envolver profundamente
com o viver deste homem e destes homens, brancos e negros, por dentro e
por fora brancos negros e negros brancos, com eles respirando os odores
do capim apodrecido, sofrendo as picadas de mosquitos, delirando nas
febres do mesmo paludismo, na pista do mais profundo que pode ter ser
humano, tentando, cada um à sua medida, encontrar-lhe os resquícios
dessa mesma humanidade que os pode levar a dizer – este podia ser eu.
Por isso, ainda muito cedo na leitura da obra, enviei ao Mário a
peça seguinte que foi posteriormente editada no blogue: - “Acabei de
participar na visita que o senhor General te fez em Missirá
(1).
E se digo participar em vez de assistir, é apenas porque também
lá estava quando descobriste os dois pontinhos que haviam de resolver-se
na figura de helis, cavalos de Tróia que haveriam de abrir-se para
despejar o homem e essa gente/sombra do do monóculo decorativo.
Aliás, cortava "cibo" convosco porque os cibos que vos davam
jeito no reforço dos abrigos de Missirá, eram os mesmos cibos que eu
cortava a Sul de Medjo, muito perto de Quebo, uma Tabanca abandonada
junto a um dos braços em que o Rio Cacine capricha a Norte, ainda antes
de caprichar a Gadamael Porto, mesmíssimos cibos que também nos faltavam
em Medjo para os mesmos fins.
Saindo um pouco da tua lavra, meto aqui enxada para de dizer do
caricato que foi, nessa tarefa, ter eu atravessado uma água não muito
funda e dessa água ter saído cravadinho de sanguessugas, perdendo algum
tempo de cigarro aceso numa mão e pauzinho fino na outra, para me livrar
das bichas, uma a uma.
Voltando a Missirá (adiantando que outra Missirá tínhamos na
estrada Aldeia Formosa (outro Quebo-Buba), Missirá, esta, abandonada
também e lugar pouco abençoado para tropa branca, voltando a Missirá,
digo, ao teu e não ao do Sul, também eu me espantei com os maus modos do
homem, retrato exacto nas perguntas e nas questões que te colocou,
desse militar antigo, feito na Academia deles, cheio de empáfia e de
mando, mestres duma infalibilidade alejada do real da guerra em que
andávamos e que por mais comissões feitas não entenderiam nunca,
provando-se dito não sei de quem que eu li um dia
"a guerra é coisa demasiado complexa para ser dirigida por militares".
Acabara há pouco de viver a tua revolta contra as parvoíces
dessas operações volumosas em que te meteram para atacar Madina,
porque também em Medjo se meteram um dia duas Companhias a dormir pelo
chão para atacarem Salancaur.
Salancaur ficava a tão curta distância de Medjo que quase os
ouvíamos falar na bolanha de arroz que cultivavam com esmero. Por isso,
Bissau imaginou que saindo de madrugada, atacaríamos ao nascer do Sol e
quase almoçaríamos de novo em Medjo. Afinal, três dias não deram para
vencer aquela mata densa, aberta à faca para se poder avançar fora da
picada. A fome e a sede começaram a fazer efeito e as evacuações por
esgotamento, fome e sede. Acabaram com o plano de Bissau.
Sei que estranharás que afirme lá estar contigo mas confirmo isso
a pés juntos, porque a ler-te, sinto o cheiro do capim podre e aquele
bafo que dele sai a cada passo; sinto as picadas dos mosquitos que nos
atacam nos olhos, no nariz, nos ouvidos e na boca; sinto a majestade
daquela mata sub-tropical que nos esmaga e desorienta o passo e a
vontade; sinto o sabor do sangue dos amigos estraçalhados pelas minas e
basucadas.
E se sinto tudo isso, e muito mais que a insipiência da minha
palavra não explica e esta mensagem curta não justifica explicação,
apenas porque o dizes tão bem que me repões de pés e de alma no Sul da
Guiné e num tempo que talvez fosse melhor esquecer.
Continuarei a caminhar nos meus trilhos de Guileje pela palavra
que me falta ainda ler-te, e nem sei se hei-de agradecer-te, se lamentar
o tempo e o modo que reviverei recuperando-me aqui como se fosse lá.
Obrigado, Mário”.
(Continua)
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Notas de CV:
José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo (Guiné) entre 1966 e 1968
Mário Beja Santos foi Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca (Guiné) entre 1968 e 1970
Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10358: Notas de leitura (399): Guiné-Bissau - O Estado da Nação (2) (Mário Beja Santos)