1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2014:
Queridos amigos,
Esta monografia do Império tinha subjacente a experiência dos dois autores, já com boa tarimba da escrita. Pretendiam obra de informação geral, e foram bem sucedidos, deixaram um documento elaborado com vivacidade e muito boa arrumação.
No caso específico da Guiné, a monografia ficou ultrapassada poucos anos depois, Teixeira da Mota publicou a sua “Guiné Portuguesa” em 1954, como hoje soe dizer-se, tornou-se seminal, para além de carrear dados científicos mais atualizados, o oficial de Marinha, colaborador direto de Sarmento Rodrigues, trazia ideias sobre as grandes mudanças em curso e que eram necessárias imprimir à Guiné.
Inexoravelmente, o trabalho de Galvão e Selvagem tornara-se uma relíquia. Mas uma boa relíquia.
Um abraço do
Mário
Império Ultramarino Português (2)
(Monografia do Império), por Henrique Galvão e Carlos Selvagem(*)
Beja Santos
Editado em 4 volumes, a obra “Império Ultramarino Português” de Henrique Galvão e Carlos Selvagem, pela Empresa Nacional de Publicidade, veio a revelar-se uma importante obra de divulgação, séria, rigorosa e com dados atualizados até 1948.
A Guiné aparece no primeiro e segundo volumes. No primeiro volume, teve-se em conta a descrição do projeto henriquino e a chegada à costa da Guiné; referiu-se seguidamente o comércio negreiro o papel histórico de Cabo Verde, o declínio da presença portuguesa sobretudo durante o domínio filipino, a tentativa de retoma com a restauração, a criação de companhias majestáticas, que foram sucessivos falhanços e deu-se destaque aos principais acontecimentos ocorridos no século XIX; com as mudanças políticas e militares decorrentes das campanhas do capitão Teixeira Pinto, ensaiou-se na Guiné um despertar económico que se revelou tímido e inconsequente. Os autores recordam o termo das operações de pacificação quando o régulo de Canhambaque, nos Bijagós, aceitou a obediência portuguesa, em 1936.
No segundo volume, os autores espraiam-se em generalidades sobre as terras e o mar: a criação da província, a situação geográfica, a formação geofísica, configuração, solo e subsolo – orografia e hidrografia, meteorologia… era suposto tratar-se de matérias monótonas, o leitor ficará surpreendido com a vivacidade da redação.
Enquanto decorria a demarcação da fronteira luso-francesa, à volta de 1886, sucediam-se as rebeliões sustadas a muito custo. As fronteiras ficarão praticamente demarcadas em 1906, mas haverá ainda alguns ajustes. A promulgação dos diplomas fundamentais da Carta Orgânica do Império e da Reforma Administrativa Ultramarina veio contribuir para estabilizar a vida interna da Guiné.
Os autores tecem comentários à designação geográfica da Guiné e citam João Barreto, um divulgador hoje contestado e reconhecidamente desatualizado. O termo Guiné, escreveu Barreto, procederia de uma pequena povoação indígena fundada nos começos do século XI nas margens do rio Níger, a 14º de latitude Norte. Zurara escreveu na sua crónica ora Guiné ou Guinée, ou Guinéa ou Ghyné; João de Barros, em Ásia, falou da região da Guiné a que os mouros chamam Guinauhá; Duarte Pacheco, no seu Esmeraldo chama-lhe simplesmente Guiné. Depois do descobrimento do rio Senegal, o vocábulo Guiné passou a designar especificamente toda a costa ao Sul do Senegal. Com a descoberta da Costa da Mina passou a fazer a distinção entre Guiné Superior e Guiné Inferior.
Henrique Galvão e Carlos Selvagem eram já escritores experimentados quando se afoitaram a este projeto, momento há em que produziram literatura de muito boa qualidade. Veja-se a propósito do que escreveram sobre orografia e hidrografia: “Este tapete verde assente sobre terras vermelhas não tem rugas nem ondulações importantes. É um território sem relevo – um interminável plaino, cortado de rios e braços de rios, cujas elevações não vão além de escassos cinquenta metros. Apenas na região do Boé se eleva suavemente até aos 300 metros. Esta modéstia orográfica é largamente compensada pela exuberância hidrográfica”.
Quem viveu na Guiné, sabe que o ano quanto a temperaturas, se divide em época seca e época das chuvas. Os autores trazem um aporte curioso. Alfredo Carvalho guerra, no seu “Subsídio para o estudo do clima da Guiné Portuguesa”, divide o ano, quanto a temperaturas, em quatro períodos:
• Período fresco: os meses de dezembro, janeiro e fevereiro, em que também se verificam as maiores amplitudes térmicas;
• 1.º Período quente: março, abril (mês de transição) e maio, com grandes amplitudes térmicas ainda em março e abril;
• Período das chuvas: junho, julho, agosto e setembro;
• 2.º Período quente: outubro e novembro (meses de transição).
Falando dos povos que habitam a Guiné, deixam o seguinte comentário: “Não se conhece, de Norte a Sul da África Negra, em tão reduzida área territorial, tal concentração de tipos etnicamente tão variados”.
A propósito dos caráteres dos povos indígenas, apresentam os Grumetes do seguinte modo: “São um tipo curioso de mestiços indígenas, disseminados entre a grande massa negra, mas vivendo sobretudo nos aglomerados europeus, constituem como que uma casta aparte, embora sem raízes étnicas comuns. São descendentes de quaisquer das raças nativas (mais especialmente dos Papéis e dos Manjacos) que, tendo recebido o batismo, se assimilaram aos europeus no trajo, nos usos, nas profissões. Renegando a sua origem, consideram-se superiores aos outros indígenas, embora, no fundo, conservem a mesma psicologia, vícios e superstições. São preciosos auxiliares das colunas de operações que marcham contra as tribos sublevadas e na defesa das praças de Bissau, Cacheu e Farim. Foram sempre o grande elemento intermediário entre europeus e indígenas puros, exceção feita aos Futa-fulas e Mandingas”.
A propósito deste capítulo sobre povos, usos e costumes, encontramos outra curiosidade, não se resiste à sua reprodução. "Uma comissão chamada de “Civilização e assistência a indígenas”, funcionando sobre a presidência do Governador, nos termos da legislação de 1935, ocupa-se da elevação do nível espiritual e material da população não civilizada pela melhoria e expansão da instrução, construção de postos sanitários, habitações e fontes, distribuição de sementes selecionadas, proteção e valorização de terras e produção indígena, combate às doenças, etc. O seu programa é muito vasto, mas os recursos materiais disponíveis não lhe permite realizá-lo a não ser a um ritmo muito lento que, em muitos casos, se tornará inoperante”.
Tratando-se de uma obra de divulgação, os autores não se eximem em emitir considerações pessoais, e nem sempre pacíficas. Um exemplo: “A Guiné pode considerar-se uma província onde pode viver uma população branca. Será ainda discutível a sua capacidade como colónia de fixação de europeus”.
Há ainda capítulos sobre a organização política e administrativa, transporte e comunicações, economia, finanças e crédito.
Esta monografia do Império é muito mais do que uma simples curiosidade, mesmo aos olhos de hoje. Autores experimentados, vê-se que consultaram muito e têm ideias próprias sobre o assunto. Com a publicação em 1954 da monografia “Guiné Portuguesa”, de Avelino Teixeira da Mota, o trabalho de Galvão e Selvagem foi ultrapassado e não mais retomado.
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Notas do editor
(*) Poste anterior de 23 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14400: Notas de leitura (695): "Império Ultramarino Português", Empresa Nacional de Publicidade, 1950 (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 24 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14404: Notas de leitura (696): "Os Segredos da Censura", por César Príncipe (Manuel Joaquim)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 27 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14410: Parabéns a você (880): Armando Pires, ex-Fur Mil Enf do BCAÇ 2861 (Guiné, 1969/70); Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA da CART 2732 (Guiné, 1970/72); Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp do BCAÇ 4612/74 (Guiné, 1974) e Maria Dulcinea, Amiga Grã-Tabanqueira (Bissorã, 1973/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14405: Parabéns a você (879): Rui Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 816 (Guiné, 1965/67)
Nota do editor
Último poste da série de 25 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14405: Parabéns a você (879): Rui Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 816 (Guiné, 1965/67)
quinta-feira, 26 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14409: Memória dos lugares (287): A entrega do Cumeré ao PAIGC
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua magnífica série.
Fernando Rodrigues, furriel miliciano, com efémera passagem pela Guiné.
Um camarada que assistiu à entrega do Cumeré ao PAIGC.
Conhecemo-nos há décadas! Somos moços de uma geração onde a guerra no então Ultramar impunha restrições objetivas a uma juventude cujos olhares se fixavam numa imensurável procura de um futuro perpetuamente próspero. Porém, nem tudo era assim. O conflito de além-mar, em plena efervescência, suscitava razões óbvias que entrosavam num rol de preocupações e que se entrelaçavam com respostas invariavelmente inacabadas.
Fernando Augusto Rodrigues, ex-furriel miliciano, natural de Beja, após o 25 de Abril de 1974 deparou-se com a sua mobilização para a Guiné. Uma comissão inesperada, tendo em conta que a guerra nas antigas províncias ultramarinas já sinalizava o seu fim. Todavia, a sua hora chegou e o camarada lá partiu.
Estávamos em junho do 1974 e a sua rendição individual tinha como objetivo substituir um 1º sargento que se encontrava em Bafatá. A decisão do nosso sargento não terá sido pacífica, uma vez que o antigo camarada recusou sair, sendo que a decisão final sobre o Fernando foi uma estadia temporária num outro quartel.
Desta situação inesperada, eis o bom do meu amigo Fernando, nosso camarada de armas, a fazer parte do expediente normal do conhecido quartel do Cumeré. Um aquartelamento que normalmente recebia os piriquitos recém chegados a solo guineense. Um sítio, aliás, onde eram dadas à rapaziada as primeiras instruções básicas para o conflito real que se seguia num palanque indesejado.
Acontece que na fase de evacuação das nossas tropas, o Cumeré registou um maior afluxo de soldados que esperavam desalmadamente o seu embarque para o nosso País, agora livre, onde a família, em uníssono, aguardavam os seus ente queridos.
Sintetizando: o nosso antigo camarada furriel miliciano Fernando Rodrigues não foi um soldado de guerra, mas um militar que se confrontou com um regime de transição e de subsequentes entregas dos nossos antigos quartéis. Assim, teve o privilégio em assistir, “ao vivo e a cores”, não obstante o dia apresentar-se cinzento e chuvoso, à entrega do Cumeré ao PAIGC.
Cumeré, onde o pessoal da minha companhia aguardou pela hora do regresso à nossa Pátria Lusa. Recordo que foi justamente nesta derradeira estadia na Guiné que me deparei com o meu último “ataque” de paludismo. Sei que a febre não deu tréguas, os arrepios de frio muito menos, restando porém a certeza que a guerra no terreno tinha, finalmente, acabado.
A guerra, aquela com a qual então me deparei, era sim em “vale de lençóis”, sobrando a certeza que não fiz parte de um grupo de camaradas que, na altura, dizimavam líquidos fresquinhos para aconchegar mágoas passadas. Tanto mais que já cheirava a “Lisboa Menina e Moça” e a um “Cravo Vermelho”, símbolo da Revolução, esperar-nos-ia em solo firme.
Neste relato o nosso camarada lembra duas das suas viagens, já em tempo de paz, sendo uma delas a Nhacra, onde foi jogar futebol e comer leitão assado e uma outra que o levou a conhecer Mansoa e a sua ponte, um local apetecível para imagens fotogénicas, asseguravam os conhecedores da zona.
Por outro lado, o Fernando reconhece que embora o tempo fosse de paz, as histórias de guerra teimaram em persistir. Fala sobre um caso mortal de um furriel miliciano que se encontrava no QG, mas que “ao entrar de serviço e ao acender um cigarro, ter-se-á encostado a um arame e inesperadamente a arma que transportava disparou, sendo o seu fim trágico”. Outro camarada que fará parte de um infindável rol de falecidos e cujo fim foi uma comissão militar na guerra do ultramar.
Resquícios de uma peleja onde a facilidade do pessoal permitia descuidos que, humanamente, eram considerados impensáveis. Contudo, a verdade que todos nós conhecemos, diz-nos que houve camaradas que partiram para o além face às suas pretensas fragilidades em saber lidar com um conteúdo de uma guerrilha extremamente traiçoeira. O facilitismo permitia devaneios, depois lá vinha a desgraça.
Faltou, talvez, uma preparação profícua a contingentes de soldados que partiam para os campos de batalha mal preparados, desconhecendo os conteúdos que a guerra impunham. Sei, e reconheço, que essa era a verdade amiudadamente constatada. Só o tempo do conflito permitia uma adaptação aos horrores a cada instante deparados.
O nosso antigo camarada Fernando Rodrigues, acabou a sua curta comissão na Guiné a prestar serviço no QG (Quartel General), sendo o seu regresso a Lisboa no dia 3 de outubro de 1974.
Para trás ficou a certeza que foi um dos militares portugueses que se deparou com o içar da bandeira do PAIGC no Cumeré, precisamente no mastro que fora antes ocupado pela bandeira nacional portuguesa.
Fotos do furriel miliciano Fernandes Rodrigues
Aspeto geral do quartel do Cumeré
Atrás as tropas do PAIGC perfiladas para cerimónia
O dia da entrega do Cumeré ao PAIGC e o içar da bandeira
No quarto
Com o furriel Joaquim Fernandes de Vila de Condes
Como cenário de fundo o rio Geba
Passeando numa rua em Bissau
Um abraço camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
8 DE FEVEREIRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14230: Memória dos lugares (285): a ponte-cais de Binta e o madeireiro Manuel Ribeiro Carvalho (José Eduardo Oliveira / Antº Rosinha)
Guiné 63/74 - P14408: (Ex)citações (268): Emoção e bom senso (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Março de 2015:
EMOÇÃO E BOM SENSO
Nas nossas memórias, a intenção normalmente passa por transparecer emoções, racionalidade, por vezes agressividade, porque não vivemos numa redoma de vidro e somos afectatos pelo que se passa à nossa volta, tonando-nos alvos fáceis das chuvas ácidas e do Sol inclemente.
Há dias que tudo nos agride e qual espoleta sensível, facilmente deixamos rolar as lágrimas, assim como respondemos violentamente a qualquer situação que em dias normais deixaríamos passar com sorriso nos lábios, ou com um encolher de ombros, denotando assim a pouca importância da questão.
Temos uma geração inteira que teve pouco tempo para ser criança e muito menos para ser jovem, passou pela ditadura e pela guerra, teve medos anseios e viu o que nenhum ser humano está preparado para ver. Há quem tenha visto demais e aí chegados, uns reagem de uma maneira tornando-os insensíveis enquanto os outros o horror, permanece para além do imaginável e desejável.
De uma forma de outra, uns e outros ficaram condicionados ao reflexo daquele tempo. Muitos de nós começámos a usar a G3 antes mesmo de termos feito sexo pela primeira vez. Digo sexo, porque fazer amor, só mais tarde descobrimos o que era isso. Depois alguns choraram a sua desdita e outros mataram antes de amar.
Assim como quem usa uma bengala muito tempo, há momentos que sente necessidade de a voltar a usar, também ao longo da vida, quem tivesse uma G3 teria impulso de a usar numa briga da vizinhança, num desaguisado na estrada ou lavagem da sua honra, sim porque a ocasião fez o ladrão e os resultados não seriam diferentes do que se passa nos países onde as armas são de livre acesso, onde por exemplo os veteranos têm a opção de adquirir a arma com que prestaram serviço, com resultados funestos que todos ouvimos falar.
Há tempos li que os crimes, acidentes, etc com armas de fogo, já custaram três vezes mais vidas do que as que os americanos perderam em todas as guerras em que foram intervenientes, inclusive na guerra civil. Mas é assim, a G3 é um símbolo dos tempos de guerra mas também da paz, da mudança, da liberdade, da alegria e da esperança, não discuto se concretizada ou não, pois cada um é livre de estar contente ou não e de o dizer livremente.
Quem não se lembra da emoção com que lhe pegou a primeira vez e mais tarde a usou quase como adereço? Nessa altura não sabíamos que a passaríamos a usar como um turista usa a máquina fotográfica, para captar coisas boas e coisas más. A G3 empunhada pelo povo fardado, também tem que ser símbolo da Justiça e da equidade entre cidadãos, que têm o direito de ser defendidos acima da própria vida, e mal vai um país que não tem orgulho nas suas forças armadas.
Num arremedo de poema escrevi uma alegoria intitulada “se eu tivesse uma G3”.(*)
Essa G3 representa um símbolo daqueles anos de juventude, de algum desencanto, assim como um grito de revolta, pois todos têm o dever de perseguir a felicidade e não se contentar com o que nos querem dar.
Sejam ousados e exijam nada menos que o impossível, porque o não, esse está sempre garantido! Mas eu estou de acordo que por estas e outras razões, ainda bem que nós por cá não podemos ter uma G3. Razão tinham os hippies que gritavam no auge do movimento, façam amor e não a guerra.
Um abraço para todos e boas amêndoas.
Juvenal Amado
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Notas do editor
(*) Vd. poste de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14392: Blogpoesia (405): Paranóia ou lamentos de veterano - Ah! se eu tivesse uma G3! (Juvenal Amado)
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14383: (Ex)citações (267): Será que nós estamos escrevendo milhares de postes à procura da juventudo "perdida" na guerra? (José Manuel Matos Dinis)
EMOÇÃO E BOM SENSO
Nas nossas memórias, a intenção normalmente passa por transparecer emoções, racionalidade, por vezes agressividade, porque não vivemos numa redoma de vidro e somos afectatos pelo que se passa à nossa volta, tonando-nos alvos fáceis das chuvas ácidas e do Sol inclemente.
Há dias que tudo nos agride e qual espoleta sensível, facilmente deixamos rolar as lágrimas, assim como respondemos violentamente a qualquer situação que em dias normais deixaríamos passar com sorriso nos lábios, ou com um encolher de ombros, denotando assim a pouca importância da questão.
Temos uma geração inteira que teve pouco tempo para ser criança e muito menos para ser jovem, passou pela ditadura e pela guerra, teve medos anseios e viu o que nenhum ser humano está preparado para ver. Há quem tenha visto demais e aí chegados, uns reagem de uma maneira tornando-os insensíveis enquanto os outros o horror, permanece para além do imaginável e desejável.
De uma forma de outra, uns e outros ficaram condicionados ao reflexo daquele tempo. Muitos de nós começámos a usar a G3 antes mesmo de termos feito sexo pela primeira vez. Digo sexo, porque fazer amor, só mais tarde descobrimos o que era isso. Depois alguns choraram a sua desdita e outros mataram antes de amar.
Assim como quem usa uma bengala muito tempo, há momentos que sente necessidade de a voltar a usar, também ao longo da vida, quem tivesse uma G3 teria impulso de a usar numa briga da vizinhança, num desaguisado na estrada ou lavagem da sua honra, sim porque a ocasião fez o ladrão e os resultados não seriam diferentes do que se passa nos países onde as armas são de livre acesso, onde por exemplo os veteranos têm a opção de adquirir a arma com que prestaram serviço, com resultados funestos que todos ouvimos falar.
Há tempos li que os crimes, acidentes, etc com armas de fogo, já custaram três vezes mais vidas do que as que os americanos perderam em todas as guerras em que foram intervenientes, inclusive na guerra civil. Mas é assim, a G3 é um símbolo dos tempos de guerra mas também da paz, da mudança, da liberdade, da alegria e da esperança, não discuto se concretizada ou não, pois cada um é livre de estar contente ou não e de o dizer livremente.
Quem não se lembra da emoção com que lhe pegou a primeira vez e mais tarde a usou quase como adereço? Nessa altura não sabíamos que a passaríamos a usar como um turista usa a máquina fotográfica, para captar coisas boas e coisas más. A G3 empunhada pelo povo fardado, também tem que ser símbolo da Justiça e da equidade entre cidadãos, que têm o direito de ser defendidos acima da própria vida, e mal vai um país que não tem orgulho nas suas forças armadas.
Num arremedo de poema escrevi uma alegoria intitulada “se eu tivesse uma G3”.(*)
Essa G3 representa um símbolo daqueles anos de juventude, de algum desencanto, assim como um grito de revolta, pois todos têm o dever de perseguir a felicidade e não se contentar com o que nos querem dar.
Sejam ousados e exijam nada menos que o impossível, porque o não, esse está sempre garantido! Mas eu estou de acordo que por estas e outras razões, ainda bem que nós por cá não podemos ter uma G3. Razão tinham os hippies que gritavam no auge do movimento, façam amor e não a guerra.
Um abraço para todos e boas amêndoas.
Juvenal Amado
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Notas do editor
(*) Vd. poste de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14392: Blogpoesia (405): Paranóia ou lamentos de veterano - Ah! se eu tivesse uma G3! (Juvenal Amado)
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14383: (Ex)citações (267): Será que nós estamos escrevendo milhares de postes à procura da juventudo "perdida" na guerra? (José Manuel Matos Dinis)
quarta-feira, 25 de março de 2015
Guiné 63/734 - P14407: História da CART 3494 (5): O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA. - Hipopótamo do Corubal emboscado no Udunduma (Jorge Araújo)
1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 6 de Fevereiro de 2015:
Caríssimos Camaradas
Os meus melhores cumprimentos.
A presente narrativa fez-nos regressar ao meu tempo de residente no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, recuperando as memórias e as imagens de uma das muitas ocorrências que aí contabilizámos durante o 2.º semestre de 1973, as quais estão já a uma distância temporal de quarenta e dois anos.
Trata-se de um episódio pouco vulgar naquele contexto, envolvendo um mamífero artiodátilo [hipopótamo] que, por ter ousado invadir território proibido, naquele dia de OUT1973, foi emboscado… e morreu.
O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA
- Hipopótamo do Corubal emboscado no Udunduma -
1. - INTRODUÇÃO
Com as rotações entre a CART 3494, a CCAÇ 12 e a CART 3493, ocorridas nos primeiros dias de Março de 1973, os cenários, os contextos e as missões destes diferentes contingentes militares passaram a ser bem diferentes dos [as] vividos [as].
Enquanto a CCAÇ 12, sediada em Bambadinca, foi colocada no Aquartelamento do Xime, por troca com a CART 3494, esta passou a ocupar o Aquartelamento de Mansambo, onde se manteve até ao final da sua comissão [8 de Março de 1974], por efeito da CART 3493, aí instalada desde Janeiro de 1972, ter sido transferida para Cobumba, Região de Tombali, Território do Cantanhez, deixando de estar sob a jurisdição da sua unidade mãe – o BART 3873.
Como consequência de todas estas mudanças, e recuperado o que já deixei expresso nas narrativas anteriores [P12565 + P12586 + P12734], fui contemplado com a missão especial de comandar uma secção do meu GComb [o 1.º], num total de doze elementos, com o objectivo de proteger a [s] Ponte [s] do Rio Udunduma, actividade que registava já, à data, quatro anos, e por isso se chamar de «Destacamento da Ponte», local situado a quatro kms. de Bambadinca, na estrada Bambadinca-Xime.
Porque as condições aí existentes, quer logísticas quer físicas, eram incrivelmente pouco dignas e degradantes, como podem ser confirmadas através da descrição e visionamento das imagens já publicadas nos postes acima referidos, as recordações desse local são muitas e variadas, não se esgotando num simples texto, uma vez que aí permanecemos os últimos seis meses do ano de 1973, ou seja, fará brevemente quarenta e dois anos.
Já vos contei anteriormente algumas das acções especiais [desafios permanentes de superação] desenvolvidas durante esse 2.º semestre de 1973, assim como os contrastes do mesmo cenário. Agora, volto à vossa presença com os mesmos propósitos de sempre, o de fazer história escrevendo sobre o quotidiano da nossa passagem pelo CTIG, mesmo que o objecto [assunto] não esteja intrinsecamente relacionado com o confronto militar.
Aproveitando mais algumas fotos de diferentes espaços desse contexto e adicionadas as outras relacionadas com a ocorrência em referência [OUT1973], nada expectável de vir a acontecer por ali, permitiu-me estruturar este texto passando para o papel os principais factos narrados oralmente por quem a presenciou, uma vez que nesse dia me encontrava ausente do local.
Como o subtítulo acima referido faz supor, iremos contar a história macabra sobre um hipopótamo adolescente que foi emboscado no Rio Udunduma e que não conseguiu escapar com vida. Identificámo-lo como sendo oriundo do Corubal, numa lógica de proximidade, mas nada nos garante que assim seja, uma vez que os dois principais habitat de hipopótamos da Guiné-Bissau [hippopotamus amphibius, nome científico], estão identificados como sendo na Ilha de Orango, no Arquipélago dos Bijagós, e no Parque Natural das Lagoas de Cufada, na região de Buba.
Sobre estes dois espaços onde vivem e se desenvolvem os hipopótamos da Guiné-Bissau, citaremos alguns apontamentos encontrados na nossa investigação na área das actividades de ecoturismo e biodiversidade, seguindo por correio interno os respectivos originais para leitura mais aprofundada, não deixando de os referir na altura própria [com a devida vénia aos seus autores].
2. - O DESTACAMENTO DA PONTE
As fotos que seguem têm por objectivo identificar os principais pontos da nossa missão, ajudando a circunscrever o contexto onde a acção se desenvolveu.
3. - O LOCAL DA EMBOSCADA AO HIPOPÓTAMO
4. - O HIPOPÓTAMO
Hipopótamo é o nome genérico um mamífero ungulado de grande porte pertencente à família Hippopotamidae. É um mamífero artiodátilo [que possui um número par de cascos (ou dedos) nas extremidades dos membros
anteriores e posteriores], próprio de África, de pele muito grossa e nua, patas e cauda curtas, cabeça muito grande e truncada num focinho largo e arredondado.
Estes animais vivem geralmente próximo de rios, onde passam grande parte do seu tempo imersos. Têm uma pele sensível à luz solar. Os hipopótamos são herbívoros e alimentam-se durante a noite da vegetação existente nas margens dos rios que habitam, mas há indícios de canibalismo de machos adultos com filhotes.
Os hipopótamos são preguiçosos em terra, mas podem atingir velocidades de 50 km/hora. Na água são rápidos e mostram diversas adaptações na sua existência, na maior parte aquática, inclusive orelhas e narinas que podem fechar-se e uma secreção da pele que funciona como protector solar, anticéptico e antibacteriano. A sua pele é muito sensível a queimaduras solares e, para se proteger, segrega uma substância de cor vermelha que ao longe pode ser confundida com sangue.
5. - O HIPOPÓTAMO NA GUINÉ-BISSAU [no presente]
5.1 - NA REGIÃO DE CUFADA - BUBA
As LAGOAS DE CUFADA estão classificadas como «zona húmida de importância internacional», tendo a Guiné-Bissau aderido à Convenção de RAMSAR e, em sequência, criado um regime legal de protecção dos ecossistemas locais. O Instituto de Conservação da Natureza, juntamente com outras entidades portuguesas, participou na preparação e realização do projecto do parque.
A Convenção de RAMSAR é um tratado intergovernamental que estabelece marcos para ações nacionais e para a cooperação entre países com o objectivo de promover a conservação e o uso racional de zonas húmidas no mundo. Essas acções estão fundamentadas no reconhecimento, pelos países signatários da Convenção, da importância ecológica e do valor social, económico, cultural, científico e recreativo de tais áreas.
Estabelecida em Fevereiro de 1971, na cidade iraniana com o mesmo nome, a Convenção de Ramsar está em vigor desde 21 de Dezembro de 1975, e o seu tempo de vigência é indeterminado. No âmbito da Convenção, os países membros são denominados "partes contratantes". Até Janeiro de 2010, a Convenção contabilizava 159 adesões.
Quanto ao PARQUE NATURAL DAS LAGOAS DE CUFADA, este abrange uma área de noventa mil hectares, na qual está inserida uma comunidade de cerca de três mil pessoas distribuídas por trinta e três tabancas. Os passeios pelas lagoas permitem a observação de várias espécies de aves, residentes ou migradoras, como flamingos, pelicanos e tucanos. Entre a fauna aquática abundam mamíferos como hipopótamos, manatins e crocodilos. Em terra, ocasionalmente, podem ser vistas gazelas, porcos do mato e antílopes.
5.2 - NO PARQUE NACIONAL DE ORANGO - BIJAGÓS
O PARQUE NACIONAL DE ORANGO ou o Parque Natural das Ilhas de Orango está situado na parte sul do Arquipélago dos Bijagós [ver mapa], ocupando uma superfície de 1582,35 km2 e compreende 3 ilhas principais: Orango, Orangozinho e Atanhible. A profundidade do sector marinho não ultrapassa os 30 metros. A biodiversidade da fauna, particularmente no sul do parque, compreende populações de hipopótamos (Hipoppotamus amphibius), onde se pode observar os únicos hipopótamos que vivem em água salgada, e de crocodilos (Crocodylus niloticus e C. tetraspis). O parque é frequentado por 5 espécies de tartarugas-marinhas: tartaruga-verde (Chelonia mydas), tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata), tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea), tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta) e tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea). De entre os mamíferos destacam-se também a gazela-pintada (Tragelaphus scriptus), o macaco-verde (Cercopithecus aethiops) e, na parte marinha, lontra (Aonyx capensis), manatim (Trichechus senegalensis) e golfinhos (Sousa teuszii e Tursiops truncatus).
Por outro lado, o Arquipélago dos Bijagós, constituído por um conjunto de oitenta e oito ilhas e ilhéus espalhados no Oceano Atlântico, em que um quarto desses espaços de terra não estão habitados, foi declarado Reserva Mundial da Biosfera, em 16 de Abril de 1996.
Em reportagem realizada em Dec2012 por Fernando Peixoto, jornalista da Agência Lusa, este refere no título da peça que «Orango, na Guiné-Bissau, é a ilha dos hipopótamos especiais».
Continua, afirmando que “a Ilha de Orango, na Guiné-Bissau, tem hipopótamos únicos no mundo e que "salvam" vidas. Por causa deles, a ilha tem uma lancha rápida para levar doentes, escolas e centros de saúde arranjados e a funcionar, graças à construção do ORANGO PARQUE HOTEL, onde os lucros revertem para melhorias na ilha, com o envolvimento e aplauso da comunidade.
Hoje, os hipopótamos dos Bijagós precisam de água doce para beber, mas muitos deles vivem permanentemente na água salgada, o que os faz únicos no mundo. "Há dias estávamos na Ilha de Unhocomozinho e vimos chegar um [vindo do mar]. As pessoas fizeram-no fugir sendo visto depois na ilha de Unhocomo".
Por outro lado, a coordenadora do Seguimento das Espécies e dos Habitat, do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas (IBAP) da Guiné-Bissau, Aissa Regala, avança que em Janeiro de 2013 será iniciada em Orango uma nova contagem de hipopótamos. A espécie vive também em rios e lagoas do continente, lembra, acrescentando que na zona de Cacheu [norte] vão ser vedados campos de arroz por causa dos animais. Em Orango a proteção das bolanhas [campos de arroz] com cercas eléctricas para evitar a intrusão dos hipopótamos foi um sucesso e a produção quase duplicou.
Como refere o guia Belmiro Lopes, o hipopótamo é um "animal emblemático", que surge nas pinturas e nas danças dos Bijagós; e que em 2011 quase mil pessoas visitaram a ilha para ver os animais. Porém, esses mesmos animais destruíam os campos de arroz, provocando a ira das populações.
Nota: este tema foi já aflorado no P10.854.
Outras fontes:
- http://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/977guineabissau.pdf.
- Arquipélago dos Bijagós - Guiné-Bissau O modo... - Rituais.
- RDP África - Hipopótamos únicos no mundo "salvam" vidas em Orango, na Guiné Bissau.
- http://noticias.sapo.mz/lusa/artigo/15431686/html
Termino, enviando a todos os tertulianos um forte abraço.
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
___________
Nota de M.R.:
Vd. Também o último poste desta série em:
12 DE FEVEREIRO DE 2015 > Guiné 63/734 - P14243: História da CART 3494 (4): Ataque ao Xime em 16set1972 – CART3494 -, Entre trovões, raios, golos e bombas (Jorge Araújo)
Guiné 63/74 - P14406: Os nossos seres, saberes e lazeres (79): Alguns encantos da Ilha Terceira (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2015:
Queridos amigos,
É imperdoável ficar só em Angra do Heroísmo, há muito mais património histórico e riquezas naturais em derredor. Basta pensar em Praia da Vitória. Recomendo aos potenciais viandantes que leiam previamente Vitorino Nemésio, ele tinha aqui a sua terra natal. E se viajarem mais para o Ocidente, é obrigatório ler ou reler "Mau tempo no canal".
Outro aspeto surpreendente da Terceira é sentir-se uma melhor repartição da riqueza, é certo que há o dinheiro dos emigrantes mas sente-se que há vida com bastante qualidade, uma classe média atuante.
Espero que não resistam agora a visitar a Terceira, vem aí os voos low cost, não esqueçam.
Um abraço do
Mário
Alguns encantos da ilha Terceira
Beja Santos
Não se pode sair de Angra sem visitar o Castelo de S. Filipe e a reserva florestal do Monte Brasil. O Castelinho, conhecido por S. Sebastião, está no outro extremo, também é impressionante, tem hoje no seu interior uma pousada. Angra dispôs de mais fortes e fortins, havia que dissuadir o corso e a pirataria tentados pelas enormes riquezas vindas do Oriente e das minas do México e do Perú. São Filipe, também conhecido São João Baptista do Monte Brasil é uma imensidão de muralhas e possui uma lindíssima porta de armas, aqui viveram Gungunhana e D. Afonso VI, há memórias dos dois. Na previsão de um desembarque hostil na Terceira posicionaram-se em pontos estratégicos peças de artilharia que ali estão, relíquia do passado.
Há alguns anos atrás o artista Manuel Botelho fez uma exposição com armas, espingardas metralhadoras, eram fotografias que pareciam não possuir volume, não meter respeito, estavam ali como metal organizado, como estética em instalação, autênticos ready made. Não me canso de olhar esta peça, tive sorte com a luz e o ambiente, sei que é memória de uma guerra, porventura nem funcionou, os Aliados ficaram a muitos quilómetros daqui, nas Lajes, era o porta-aviões e ancoradouro que se iria revelar indispensável para as frotas aéreas, caso da Guerra dos Seis Dias e os ataques ao Iraque.
Temos aqui as indicações para o museu a céu aberto, de um lado está esta dissuasora artilharia, mas se o visitante inclinar a cara tem de frente a magnífica angra e um recorte transversal do casario entre S. Mateus da Calheta e Porto Judeu. Que contraste, no cimo deste Monte Brasil.
Saiu-se de Angra do Heroísmo, Ribeirinha é a primeira povoação, depois Feteira, a Serretinha, mais adiante Porto Judeu, e depois paragem obrigatória em S. Sebastião. Há razões de sobra para visitar este portentoso tempo, cheira ainda a século XV, mas é o século XVI que aqui predomina, é bem patente o tardo-gótico, dá gosto a harmonia do alçado e dos volumes, afagar esta cantaria. No interior está reservada uma enorme surpresa, imagine-se, há por ali pinturas murais, caso único nas ilhas.
Posso ler na brochura da matriz da vila de S. Sebastião: “Em termos insolares, estas pinturas murais são caso único. São as mais antigas que se conhecem nas ilhas e, em termos nacionais, pertencem a um grupo restrito de frescos primo-quinhentistas que simultaneamente estão em bom estado de conservação”. Julga-se que estes frescos terão sido elaborados entre 1510 e 1530. O fresco da direita é de S. Martinho o outro é de uma santa que não fixei. Por ali divaguei a mirar os tetos e as alfaias religiosas, as portas laterais também são impressionantes. Infelizmente, foram imagens que se perderam.
O culto do Espírito Santo prevalece nesta região arquipelágica, é devoção incontornável, tal como o Senhor Santo Cristo. A hierarquia católica teve grande contencioso com estes ritos, a coroação do menino imperador, cerimonial talvez com resquícios de paganismo. O que interessa é que não há freguesia que não possua o seu Império bem garrido, sempre bem mantido. Foi autorizado a entrar no império pelos pintores em plena lavra, as cerimónias estão para breve, apanhei o altar nu, a imagem de Santa Isabel e as coroas do Espírito Santo estão guardadas em casa do mordomo. É impossível não nos impressionarmos com estes templos, únicos no país.
Prossegue o passeio pela Fonte do Bastardo, o objetivo é a Praia da Vitória, terra de muitas belezas e com belo porto, nele começou a derrocada do miguelismo, aqui perderam a veleidade da supremacia naval. Entrámos primeiro na matriz, templo de enorme riqueza, também tardo-gótico, tivemos sorte com a hora, andava por ali o sacristão que nos levou a ver as preciosidades da sacristia. E o inesperado aconteceu.
Pena é que o menino Jesus não apareça mais nítido, ele faz parte da história de Portugal, quase de maneira insólita. Como se sabe, D.ª Maria II deu à luz 11 filhos, e era tal a devoção neste menino na Praia da Vitória que sempre que se aproximava a sua hora feliz vinham buscá-lo, a monarca pariu sempre com este Jesus a seu lado.
Desde a minha primeira visita à Terceira que este soberbo edifício não me sai da memória, nada conheço de tão vigoroso, com tal peso ancestral de modernidade quinhentista ímpar. É a câmara de Praia da Vitória, permitiram a visita ao salão nobre, edificante e com uma pompa e circunstâncias contidas. Tudo bem mantido, em ponto nenhum se veem lixos no chão, circula-se com prazer. E antes de almoço, visita-se ali ao pé a casa de Vitorino Nemésio, ali nasceu em 19 de dezembro de 1901, há objetos pessoais, pode ver-se o seu primeiro livro da juventude, a sua guitarra e fotografias. E fomos à casa das tias, quem leu o magnífico “Mau tempo no canal”, sabe como estas tias foram tão importantes na juventude deste grande nome da literatura portuguesa.
Antes de comer um filete de abrótea e saborear um bocadinho de alcatra de carne (bem procurei uma alcatra de peixe boca negra, não fui bem sucedido), passou-se da Igreja da Misericórdia, tem uma fachada vasta, o fotógrafo amador preferiu este detalhe, convenhamos que há muita garridice nestes azuis e brancos, os terceirenses incentivam as cores garridas, quase fluorescentes, é uma defesa contra o céu de chumbo, como se a natureza se confrontasse com os verdes dos prados, estes azuis esmaltados, castanhos, amarelos, a paleta é delirante.
Banqueteados, vamos agora a caminho das Lajes, a povoação é enorme, vimos o lado português e o lado norte-americano, do aeroporto arrancou um avião pesadão que infletiu para as Américas. Uma passageira da excursão pediu ao guia que se parasse num pasto, gostava de dar ao neto uma foto com vacas. Aproveitei a deixa, e já está, é daqui que vem leite, manteiga e queijo que tanto aprecio, é surpreendente a evolução destes lacticínios, tão saborosos com os queijos de S. Jorge à frente.
Estamos à beira mar, caminhamos para o ponto oposto de Angra do Heroísmo, há muitos miradouros, Ponta do Mistério, Ponta das Quatro Ribeiras, Ponta da Furna, Ponta dos Biscoitos. Procurei registar imagens destas costas escarpadas, há aqui muita falésia a pique, em contraste com tons azuis e turquesa das águas com a espuma muito branca sobre os pedregulhos e calhaus rolados. Espero que apreciem.
Não estivesse um dia tão nebulado e víamos claramente visto a Ilha de S. Jorge, que parece um paquiderme adormecido. Mas não, o que mais gosto neste escarpado são os tons azuis da água, e aquele instante em que a tromba de água se deflagra no rochedo. Que querem, vaidades do amadorismo.
O guia está esmorecido, os céus turvaram-se, é impossível ir ao interior, nesta altura não se pode visitar a Gruta do Algar do Carvão, e com este nevoeiro não é agradável andar pelas reservas florestais no coração da ilha. Toca de aproveitar onde há visibilidade, visitamos demoradamente os biscoitos, vamos agora até Altares, pasmem com a igreja paroquial de S. Roque dos Altares. É quase uma cópia numa igreja norte-americana, desobedece na sua estrutura à configuração do património religioso açoriano, mas é imponente, ao lado visitamos o museu etnográfico, singelo, o império é também imponente. E há mais surpresas no interior da igreja, vejam.
O altar-mor é marcadamente neogótico, as cores são bem vistosas, tudo muito aprumado, não pode haver negligências em tudo quanto seja local de culto, é o esmero na reparação para fazer face às inclemências das chuvas diluvianas, dos ventos que lembram tornados e de uma humidade capilar que não sendo rapidamente sustada tudo apodrece. Uma natureza que faz com que o açoriano viva em permanente sobressalto. As térmitas são outra forma de cataclismo, desfazem as casas, parecem epidemia, são tão temidas quase como os tremores de terra, esses sismos crónicos que a vulcanologia quer prever, para salvar vidas. O passeio acabou, vamos agora para Angra. Sento-me frente ao mar, recapitulo outras visitas. Mal cheguei e perguntei pela casa museu do senhor Ernesto Oliveira Martins, um grande colecionador. Morreu, a casa está fechada, desta feita não vou ver pratas preciosas, mobiliário indo-português, marfins requintados. É assim a viagem, fica uma coletânea de momentos especiais da nossa existência. Desde que aqui aportei, em 1967, sinto-me irremediavelmente tocado por esta cultura e afabilidade. E pela primeira vez na vida parto sabendo que dentro de dias vou regressar a uma ilha mais à frente, o Pico. Espero dar notícias.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
É imperdoável ficar só em Angra do Heroísmo, há muito mais património histórico e riquezas naturais em derredor. Basta pensar em Praia da Vitória. Recomendo aos potenciais viandantes que leiam previamente Vitorino Nemésio, ele tinha aqui a sua terra natal. E se viajarem mais para o Ocidente, é obrigatório ler ou reler "Mau tempo no canal".
Outro aspeto surpreendente da Terceira é sentir-se uma melhor repartição da riqueza, é certo que há o dinheiro dos emigrantes mas sente-se que há vida com bastante qualidade, uma classe média atuante.
Espero que não resistam agora a visitar a Terceira, vem aí os voos low cost, não esqueçam.
Um abraço do
Mário
Alguns encantos da ilha Terceira
Beja Santos
Não se pode sair de Angra sem visitar o Castelo de S. Filipe e a reserva florestal do Monte Brasil. O Castelinho, conhecido por S. Sebastião, está no outro extremo, também é impressionante, tem hoje no seu interior uma pousada. Angra dispôs de mais fortes e fortins, havia que dissuadir o corso e a pirataria tentados pelas enormes riquezas vindas do Oriente e das minas do México e do Perú. São Filipe, também conhecido São João Baptista do Monte Brasil é uma imensidão de muralhas e possui uma lindíssima porta de armas, aqui viveram Gungunhana e D. Afonso VI, há memórias dos dois. Na previsão de um desembarque hostil na Terceira posicionaram-se em pontos estratégicos peças de artilharia que ali estão, relíquia do passado.
Há alguns anos atrás o artista Manuel Botelho fez uma exposição com armas, espingardas metralhadoras, eram fotografias que pareciam não possuir volume, não meter respeito, estavam ali como metal organizado, como estética em instalação, autênticos ready made. Não me canso de olhar esta peça, tive sorte com a luz e o ambiente, sei que é memória de uma guerra, porventura nem funcionou, os Aliados ficaram a muitos quilómetros daqui, nas Lajes, era o porta-aviões e ancoradouro que se iria revelar indispensável para as frotas aéreas, caso da Guerra dos Seis Dias e os ataques ao Iraque.
Temos aqui as indicações para o museu a céu aberto, de um lado está esta dissuasora artilharia, mas se o visitante inclinar a cara tem de frente a magnífica angra e um recorte transversal do casario entre S. Mateus da Calheta e Porto Judeu. Que contraste, no cimo deste Monte Brasil.
Saiu-se de Angra do Heroísmo, Ribeirinha é a primeira povoação, depois Feteira, a Serretinha, mais adiante Porto Judeu, e depois paragem obrigatória em S. Sebastião. Há razões de sobra para visitar este portentoso tempo, cheira ainda a século XV, mas é o século XVI que aqui predomina, é bem patente o tardo-gótico, dá gosto a harmonia do alçado e dos volumes, afagar esta cantaria. No interior está reservada uma enorme surpresa, imagine-se, há por ali pinturas murais, caso único nas ilhas.
Posso ler na brochura da matriz da vila de S. Sebastião: “Em termos insolares, estas pinturas murais são caso único. São as mais antigas que se conhecem nas ilhas e, em termos nacionais, pertencem a um grupo restrito de frescos primo-quinhentistas que simultaneamente estão em bom estado de conservação”. Julga-se que estes frescos terão sido elaborados entre 1510 e 1530. O fresco da direita é de S. Martinho o outro é de uma santa que não fixei. Por ali divaguei a mirar os tetos e as alfaias religiosas, as portas laterais também são impressionantes. Infelizmente, foram imagens que se perderam.
O culto do Espírito Santo prevalece nesta região arquipelágica, é devoção incontornável, tal como o Senhor Santo Cristo. A hierarquia católica teve grande contencioso com estes ritos, a coroação do menino imperador, cerimonial talvez com resquícios de paganismo. O que interessa é que não há freguesia que não possua o seu Império bem garrido, sempre bem mantido. Foi autorizado a entrar no império pelos pintores em plena lavra, as cerimónias estão para breve, apanhei o altar nu, a imagem de Santa Isabel e as coroas do Espírito Santo estão guardadas em casa do mordomo. É impossível não nos impressionarmos com estes templos, únicos no país.
Prossegue o passeio pela Fonte do Bastardo, o objetivo é a Praia da Vitória, terra de muitas belezas e com belo porto, nele começou a derrocada do miguelismo, aqui perderam a veleidade da supremacia naval. Entrámos primeiro na matriz, templo de enorme riqueza, também tardo-gótico, tivemos sorte com a hora, andava por ali o sacristão que nos levou a ver as preciosidades da sacristia. E o inesperado aconteceu.
Pena é que o menino Jesus não apareça mais nítido, ele faz parte da história de Portugal, quase de maneira insólita. Como se sabe, D.ª Maria II deu à luz 11 filhos, e era tal a devoção neste menino na Praia da Vitória que sempre que se aproximava a sua hora feliz vinham buscá-lo, a monarca pariu sempre com este Jesus a seu lado.
Desde a minha primeira visita à Terceira que este soberbo edifício não me sai da memória, nada conheço de tão vigoroso, com tal peso ancestral de modernidade quinhentista ímpar. É a câmara de Praia da Vitória, permitiram a visita ao salão nobre, edificante e com uma pompa e circunstâncias contidas. Tudo bem mantido, em ponto nenhum se veem lixos no chão, circula-se com prazer. E antes de almoço, visita-se ali ao pé a casa de Vitorino Nemésio, ali nasceu em 19 de dezembro de 1901, há objetos pessoais, pode ver-se o seu primeiro livro da juventude, a sua guitarra e fotografias. E fomos à casa das tias, quem leu o magnífico “Mau tempo no canal”, sabe como estas tias foram tão importantes na juventude deste grande nome da literatura portuguesa.
Antes de comer um filete de abrótea e saborear um bocadinho de alcatra de carne (bem procurei uma alcatra de peixe boca negra, não fui bem sucedido), passou-se da Igreja da Misericórdia, tem uma fachada vasta, o fotógrafo amador preferiu este detalhe, convenhamos que há muita garridice nestes azuis e brancos, os terceirenses incentivam as cores garridas, quase fluorescentes, é uma defesa contra o céu de chumbo, como se a natureza se confrontasse com os verdes dos prados, estes azuis esmaltados, castanhos, amarelos, a paleta é delirante.
Banqueteados, vamos agora a caminho das Lajes, a povoação é enorme, vimos o lado português e o lado norte-americano, do aeroporto arrancou um avião pesadão que infletiu para as Américas. Uma passageira da excursão pediu ao guia que se parasse num pasto, gostava de dar ao neto uma foto com vacas. Aproveitei a deixa, e já está, é daqui que vem leite, manteiga e queijo que tanto aprecio, é surpreendente a evolução destes lacticínios, tão saborosos com os queijos de S. Jorge à frente.
Estamos à beira mar, caminhamos para o ponto oposto de Angra do Heroísmo, há muitos miradouros, Ponta do Mistério, Ponta das Quatro Ribeiras, Ponta da Furna, Ponta dos Biscoitos. Procurei registar imagens destas costas escarpadas, há aqui muita falésia a pique, em contraste com tons azuis e turquesa das águas com a espuma muito branca sobre os pedregulhos e calhaus rolados. Espero que apreciem.
Não estivesse um dia tão nebulado e víamos claramente visto a Ilha de S. Jorge, que parece um paquiderme adormecido. Mas não, o que mais gosto neste escarpado são os tons azuis da água, e aquele instante em que a tromba de água se deflagra no rochedo. Que querem, vaidades do amadorismo.
O guia está esmorecido, os céus turvaram-se, é impossível ir ao interior, nesta altura não se pode visitar a Gruta do Algar do Carvão, e com este nevoeiro não é agradável andar pelas reservas florestais no coração da ilha. Toca de aproveitar onde há visibilidade, visitamos demoradamente os biscoitos, vamos agora até Altares, pasmem com a igreja paroquial de S. Roque dos Altares. É quase uma cópia numa igreja norte-americana, desobedece na sua estrutura à configuração do património religioso açoriano, mas é imponente, ao lado visitamos o museu etnográfico, singelo, o império é também imponente. E há mais surpresas no interior da igreja, vejam.
O altar-mor é marcadamente neogótico, as cores são bem vistosas, tudo muito aprumado, não pode haver negligências em tudo quanto seja local de culto, é o esmero na reparação para fazer face às inclemências das chuvas diluvianas, dos ventos que lembram tornados e de uma humidade capilar que não sendo rapidamente sustada tudo apodrece. Uma natureza que faz com que o açoriano viva em permanente sobressalto. As térmitas são outra forma de cataclismo, desfazem as casas, parecem epidemia, são tão temidas quase como os tremores de terra, esses sismos crónicos que a vulcanologia quer prever, para salvar vidas. O passeio acabou, vamos agora para Angra. Sento-me frente ao mar, recapitulo outras visitas. Mal cheguei e perguntei pela casa museu do senhor Ernesto Oliveira Martins, um grande colecionador. Morreu, a casa está fechada, desta feita não vou ver pratas preciosas, mobiliário indo-português, marfins requintados. É assim a viagem, fica uma coletânea de momentos especiais da nossa existência. Desde que aqui aportei, em 1967, sinto-me irremediavelmente tocado por esta cultura e afabilidade. E pela primeira vez na vida parto sabendo que dentro de dias vou regressar a uma ilha mais à frente, o Pico. Espero dar notícias.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)
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