Na presente narrativa, a última do projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974), apresentaremos a análise demográfica em falta, quantitativa e qualitativa, sobre os "casos da investigação" coletados, onde, ao longo dos diferentes postes, se procedeu à sua organização estratificada em dois grupos (amostras): "corpos recuperados" e "corpos não recuperados", com identificação das suas respectivas Unidades.
Como apêndice à problemática de partida, e a exemplo da metodologia utilizada nos fragmentos anteriores, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram os casos ocorridos no Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia» [abordado na Parte II (P19710)]; no Rio Corubal, em 06Fev69, na «Operação Mabecos Bravios», em Ché-Ché [abordado na Parte III (P19788)]; e no Rio Geba, no Xime, no âmbito de uma missão das NT, em 10Ago72 [a desenvolver neste poste].
2. ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74) (UNIVERSO - n=144)
Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação incidiu sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).
Mapa da Guiné-Bissau, sinalizando-se, a branco, os três acidentes na hidrografia da Guiné de que resultaram cinquenta e oito mortes, por afogamento, de militares do exército durante a Guerra (40.3%).
Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a variável "Posto" (n=144)
Quanto à distribuição de frequências relativas ao "Posto" militar dos náufragos, durante o período em análise (1963-1974), constata-se que 113 (78.4%) eram soldados; 22 (15.3%) eram 1.ºs cabos; 7 (4.9%) eram furriéis; 1 (0.7%) era 2.º sargento e 1 (0.7%) era major.
Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a variável "corpos não recuperados por unidade militar" (n=63 - 43.8%)
Quadro 1 – Nomes dos restantes onze militares naufragados, e das suas respectivas unidades do Exército, apresentados por ordem cronológica, cujos corpos não foram recuperados no período entre 1964 e 1972 (ver gráfico 2; "outras").
3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ: CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIAS
Gráfico 3 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné
Para a estruturação deste ponto, relativo a cada uma das três ocorrências identificadas no gráfico acima, foi relevante a consulta efectuada ao vasto espólio de informação disponível no blogue da «Tabanca». No caso particular do episódio do "Naufrágio no Rio Geba", foram recuperadas as narrativas escritas na primeira pessoa por duas testemunhas que nele estiveram envolvidos, como foram os casos de mim próprio [P10246 e P13494] e do nosso camarada António José Pereira da Costa que, à época, era o Cmdt da CART 3494, Unidade sediada no Xime [P13493].
Importa referir que esta opção apresentou-se-nos como a única possibilidade de dar conta do que efectivamente aconteceu, uma vez que nada consta, sobre esta ocorrência, nos documentos "Oficiais", publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II, Guiné; Livros II; 1.ª Edição, Lisboa (2015).
Por outro lado, tendo em consideração o tempo que já passou sobre este "acidente", nunca ninguém entendeu na CART 3494 as motivações (ou razões) que influenciaram a decisão de omitir, na HISTÓRIA DO BART 3873, este acontecimento marcante para todos nós, dele fazendo-se "tábua rasa", nomeadamente no seu 5.º fascículo referente às actividades/acções do mês de «Agosto-1972» [pp. 77/79; pontos 35/40]. O único apontamento que conhecemos está expresso no Capítulo III – Baixas, Punições, Louvores e Condecorações [pp. 15/165]. Na pg. 149; Agosto-72; 1.Baixas; pode ler-se na alínea d) "Por Outras Causas" [nome dos três camaradas naufragados] "… todos da CART 3494, mortos por afogamento, no acidente do rio Geba, em 10AGO72."
3.1. O CASO NO RIO GEBA EM 10AGO1972 = O TERCEIRO
Mapa da região do Xime, sinalizando-se no Rio Geba, a vermelho, o local do acidente com o "sintex" que transportava os militares da CART 3494, em 10Ago72, durante a sua travessia, de que resultaram três mortes por afogamento. Dois não foram recuperados.
Foto 1 (infografia do acidente no Rio Geba, em 10Ago72). O traço a verde refere-se ao trajecto do "sintex", durante a segunda tentativa da travessia do rio, iniciado depois da passagem do "macaréu". Sinalizam-se os locais de embarque e do acidente.
3.1.1. PREPARAÇÃO DA MISSÃO «TRAVESSIA DO GEBA» EM 10AGO1972
A preparação da missão supra, que consistia num patrulhamento a efectuar na margem direita do Rio Geba, foi iniciada na véspera com uma reunião entre o Cmdt da Companhia, Cap Art António José Pereira da Costa [hoje, Coronel aposentado e membro da nossa Tabanca], líder da CART 3494 entre 22Jun1972 e 10Nov1972, e o furriel Cláudio Ferreira do 1.º GrComb, estando prevista a inclusão, na acção, do Major de Operações do BART 3873, Henrique Jales Moreira.
Os recursos operacionais mobilizados para esta missão recaíram na "Secção de Bazuca" desse GrComb, da qual o furriel Ferreira era responsável, e por isso a sua participação na reunião, já que, de acordo com a escala de serviço em vigor, no dia seguinte o 1.º GrComb estava de «intervenção». De referir que esse grupo de combate tinha apenas três quadros de comando (furriéis): o Cláudio Ferreira, o João Godinho e eu próprio.
A travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por «Sintex», com motor fora de bordo, sendo sugerida, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro.
Durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que esta última expressão viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, dia 10 de Agosto de 1972, vai fazer em 10Ago2019 quarenta e sete anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem.
Tal como nos casos anteriores, o método utilizado na estruturação desta última parte foi organizado cronologicamente a partir de cada um dos diferentes momentos: o antes, o durante e o depois dos factos.
Foto 2 - Rio Geba (Xime; Ago'72) – Foto tirada uma semana antes do "Naufrágio". À direita é a margem esquerda do Geba (Xime). À esquerda é a margem direita (Enxalé).
3.1.2. O ACIDENTE NO RIO GEBA EM 10AGO1972
As actividades do 1.º Gr Comb para o dia 10Ago72, 5.ª feira, foram iniciadas com a concentração dos elementos destacados para a acção definida no dia anterior, grupo constituído por nove militares devidamente equipados, por mim próprio (em substituição do camarada Cláudio Ferreira que adoecera entretanto), com equipamento extra constituído por um rádio AVP1, a que se juntou, no Cais do Xime, o Cmdt da CART 3494, Cap. Pereira da Costa, o Alferes Sousa, em situação de Estágio Operacional e o Major de Operações Henrique Jales Moreira, totalizando treze elementos. A este número deve-se adicionar, ainda, o do barqueiro do sintex, perfazendo então um universo de catorze indivíduos a transportar no bote que, como referido anteriormente, era aconselhada uma lotação máxima de dez unidades.
Parecendo estarem reunidas todas as condições operacionais para o sucesso da missão, embarcámos para o sintex, distribuindo-se a totalidade dos elementos de modo equitativo, dando-se então início à navegação por volta das 09:00 horas.
Depois de percorridas algumas dezenas de metros, verificou-se que o plano de água não permitia o avanço da embarcação, uma vez que a hélice do motor batia no fundo do rio, pois estávamos ainda na situação de baixa-mar, pelo que era necessário aguardar pela passagem do «macaréu». Por isso regressámos ao local da partida, dando por concluída a primeira tentativa da travessia do Geba.
Uma vez que o Aquartelamento da CART 3494 distava do cais entre 250/300 metros, e a nossa presença não era necessária naquele contexto, decidimos ali regressar. Quando estávamos já no seu interior, muito perto da parada, depois de ultrapassada a porta de armas, ouvimos um sinal sonoro no nosso rádio AVP1, que atendemos. O conteúdo da informação recebida dava conta da passagem do «macaréu», pelo que se solicitava a presença de todos os militares no cais, para dar-se início a nova viagem.
Foi com algum espanto e muita perplexidade que recebemos a notícia da passagem do «macaréu», na medida em que conhecíamos mais ou menos bem a sua evolução no processo de enchimento da maré, devido à situação de proximidade com o rio, facto que suscitou em nós, desde o início, uma natural curiosidade pela observação deste fenómeno da natureza.
De regresso ao cais, as dúvidas suscitadas inicialmente quanto à oportunidade de dar-se início à travessia não se dissiparam, antes pelo contrário, elas ampliaram-se em função da qualidade de agitação da água do rio. Esta nossa avaliação era coincidente com a do Cabo Silva (um militar da Marinha, que durante mais de duas décadas, viveu as experiências das diferentes marés por onde andou, por ter estado ligado às actividades dos submarinos) e que naquela ocasião se encontrava no cais, dirigindo os trabalhos de carregamento de madeiras para a embarcação civil «CP-10».
À ordem de "avançar porque se fazia tarde" - a mensagem que circulou - entrámos pela segunda vez no bote Sintex, mantendo-se a distribuição anterior. A partida aconteceu no local indicado na foto da "infografia" acima (Cais do Xime), agora em ruínas. Com a navegação a cargo do barqueiro, com o motor em funcionamento e com as águas muito agitadas, certamente que cada um de nós se interrogou quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos embarcado e que não tinha hipóteses de retrocesso.
Logo nas primeiras dezenas de metros, os "palpites" começaram a escutar-se, na medida em que a embarcação não podia tomar o rumo certo. Uma ordem foi pronunciada: "desligue-se o motor", o que foi acatada pelo barqueiro. Mas, mesmo assim, dava a sensação de que o bote continuava com o motor ligado, tal era a velocidade com que o mesmo deslizava naquelas águas revoltas.
O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do «macaréu», cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver – "eu não sei nadar" - no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. O cenário começava, então, a ficar cinzento, diria mesmo muito cinzento no sentido da cor negra, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.
A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos?
Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade de sobrevivência colectiva, apontando para uma "navegação o mais perto possível da margem esquerda", ou seja, a mesma donde partíramos.
Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos (alfaiates) se organiza em frisa apanhando os seus banhos de sol – eis que se escuta uma nova ordem: "haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster". Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas, o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e a lodo fosse de modo a facilitar a operação proposta.
Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes, primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio de peso que entretanto ocorrera (lei da gravidade).
Quanto a nós e na sequência do salto, ficámos de imediato enterrados no lodo até aos joelhos, procurando, mesmo assim, manter o controlo da embarcação através do uso da sua corrente, mas não por muito tempo. Face à diminuição da nossa resistência por via da força da maré, que nos conseguiu arrancar ao lodo arrastando-nos num espaço de alguns metros quase até à posição de «pino», não tivemos outra alternativa senão deixar o bote entrar à deriva.
Na água, a luta era extremamente desigual entre o poder do homem e o poder da maré. Cada um dos camaradas, equipado e vestido com o seu camuflado que lhe dificultava a mobilidade dentro de água, procurava chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorzes elementos. Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro (nome que nunca soube, pois era elemento da CCS), o Miranda (1.º cabo de dilagramas) que remando com a sua sacola das granadas permitiu recolher o Major de Operações Jales Moreira em situação muito difícil. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, sede do BART 3873. Os outros três elementos em falta eram: o José Maria da Silva Sousa, o Manuel Salgado Antunes e o Abraão Moreira Rosa, que acabariam por desaparecer nas águas barrentas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento.
No caso do José Sousa ainda o vi emergir três vezes. Mas como tinha em seu poder a bazuca e esta estava presa à paleta da camisa, provavelmente esta situação não lhe foi favorável, dificultando-lhe ainda mais os movimentos.
Para além de não se ter concretizado a travessia, de o grupo ter ficado fraccionado e com baixas, de termos ficado desarmados e sem meios de comunicar com a Companhia, tínhamos ainda pela frente um longo caminho a percorrer até chegarmos ao nosso Aquartelamento, no Xime.
Assim, os oito elementos que estavam aparentemente a salvo, mas ainda dentro de água tentando localizar alguma das armas perdidas, tinham ainda pela frente um "osso difícil de roer", passe a metáfora, uma vez que faltava transpor o obstáculo «tarrafo» até chegar a terra mais sólida. E a primeira dificuldade com que nos deparámos tinha a ver com a necessidade de percorrer cerca de quinze metros de lodo extremamente mole, num momento em que as águas continuavam a subir a um ritmo veloz, e em que o movimento de elevação de cada perna, correspondente a cada passo, era sempre maior que o anterior, fazendo lembrar que estávamos perante um contexto de areia movediça.
Após os primeiros passos, não nos restava outra alternativa senão tentar nadar/deslizar no lodo, agora cada qual em tronco nu mas com os seus objectos sob controlo (roupa, cinturão e carregadores). Na sequência de cada braçada, esses objectos eram arremessados para a frente, para depois se efectuar nova braçada e novo arremesso. Todo o nosso corpo era lodo: o cabelo, o rosto, a boca, os membros, etc., etc., etc..
Para percorrer os tais quinze metros de tarrafo, aproximadamente, foram gastos cerca de vinte e cinco minutos, o que diz bem das dificuldades sentidas. A meio da viagem, por efeito de estar verdadeiramente exausto, pensei que já não seria capaz de ali sair. A força e a energia tinham-se esgotado. Depois de um curto descanso a pedido do corpo e da mente, aconteceu um novo impulso antes da última transcendência (a morte), conseguindo então chegar ao fim da linha. Espalhados ao longo do lodo encontravam-se ainda os sete camaradas, cada um lutando para ultrapassar as suas dificuldades.
Fazendo uso da faca de mato que usávamos presa ao cinturão, procedemos ao corte de alguns troncos dos arbustos existentes na zona, arremessando-os na sua direcção, visando facilitar a mobilidade nos últimos metros da tortura. Os pequenos troncos, porque foram colocados sob os corpos, funcionando como estrado, acabariam por provocar ligeiros ferimentos, particularmente no peito e zona abdominal, devido às suas saliências e por efeito da fricção.
Tendo saído vitoriosos da primeira batalha, outra seguir-se-ia, mas esta sem alvo pré-definido, uma vez que o itinerário era desconhecido, impondo-se, então, uma decisão quanto ao rumo a tomar (sentido de orientação). Estávamos, então, no início de uma bolanha e tanto quanto o horizonte visual nos permitia enxergar, não víamos alma nem qualquer vestígio da presença humana. Avançámos de forma empírica corrigindo a direcção por simpatia, sabendo-se, no entanto, que aquela zona estava sob controlo das NT, e que provavelmente estávamos em presença da bolanha de Nhabijões, o que se veio a confirmar depois.
Durante a caminhada, sob um sol abrasador e com uma temperatura a rondar os 35/40 graus (a estação da época era a das chuvas), a resistência de cada um de nós voltou a ser, uma vez mais, posta à prova, concluindo-se que o Ser Humano não conhece os seus limites. A exaustão e a desidratação eram compensadas com um mergulho na bolanha a cada dez metros, distância suficiente para fazer secar os corpos e a roupa.
Passado algum tempo não cronometrado - esse detalhe era o menos importante naquela situação - avistámos ao longe umas chapas de zinco brilhando por efeito do sol, tendo seguido nessa rota. Estávamos então nas traseiras da Tabanca de Nhabijões. Aí chegados, impunha-se conquistar uma merecida sombra e a ingestão de líquidos e de alguns alimentos. Na falta de outros recursos, bebemos água e eu comi uma lata de salada de frutas de conserva que jamais esquecerei.
O Cmdt da força aí residente estranhou a nossa presença, pois não sabia do que nos tinha acontecido. E foi a partir desse momento que sinalizámos a nossa existência na rede de comando, solicitando uma viatura para nos transportar até ao Xime, onde chegámos ao princípio da tarde. À chegada, foi-nos confirmado o desaparecimento dos três camaradas anteriormente referenciados, bem como a ancoragem do sintex no Cais de Bambadinca transportando os três elementos que nele entraram para uma viagem única em que foi aproveitada a força da maré.
3.1.3. AS DECISÕES QUE FORAM TOMADAS PARA RECUPERAR OS CORPOS DOS MILITARES NAUFRAGADOS EM 10AGO1972 NO XIME
Os conteúdos relacionados com este ponto foram retirados do livro «A Minha Guerra a Petróleo», da Editora Chiado, Fev/2019, da autoria do camarada António José Pereira da Costa, na qualidade de sujeito envolvido neste acidente. Tratou-se de um tema que foi, sem surpresa minha, abordado durante a sessão de lançamento desta obra, realizada na sede da A25A, em 17 de Abril último, quer durante a sua apresentação, a cargo do Coronel Carlos Matos Gomes, quer por parte do seu autor.
Foto 3 (Lisboa; A25A, 17Abr2019) – A mesa que presidiu ao lançamento do livro "A Minha Guerra a Petróleo". Da esq/dtª: os coronéis Carlos Matos Gomes, Vasco Lourenço e Pereira da Costa, todos eles ex-combatentes no CTIG.
A propósito das memórias que guarda deste episódio, o autor do livro declara:
"O acidente ocorrido no Rio Geba, a 10 de Agosto de 1972 (quinta-feira), terá sido o momento de toda a minha vida em que mais estive em perigo, assim como todos os que me acompanhavam. Foi certamente um dos meus momentos de sorte. Mas outros houve… felizmente."
Depois da boleia proporcionada por uma coluna da CCAÇ 12, comandada pelo segundo comandante, major Sousa Teles do BART 3873, dirigimo-nos ao Xime, onde deixei o pessoal que estava comigo.
De seguida sei que fui a Bambadinca e, à chegada, vi que já lá estava um helicóptero que serviria para fazer um reconhecimento à área do acidente. Ainda tinha a ilusão de que algum dos três desaparecidos estivesse perdido e exausto no tarrafo. Fiz o reconhecimento aéreo e, de novo em Bambadinca, sugeri ao comandante que batêssemos a zona a pé, à procura de sobreviventes. Pedida autorização à Base Aérea 12, fui largado com o furriel Domingos (das Trms; homem muito generoso e empenhado na tarefa que tínhamos de executar) e três soldados da CCAÇ 12, nas imediações do local do naufrágio.
É de referir que o piloto do helicóptero era meu ex-colega do Liceu Passos Manuel – o Luís Cabanelas – que, em vez de nos largar à altura acima do solo "prevista no regulamento", deixou-nos a cerca de um metro de altura. (…) Eu levava apenas a espingarda e os carregadores emprestados pelo comandante do BArt, sem qualquer outra espécie de equipamento.
Batemos a margem do rio para montante e jusante do local onde tudo tinha sucedido e não encontrámos o menor sinal de vida. Entretanto, o helicóptero partira e nós começámos a cortar ramos do tarrafo para podermos chegar o mais à frente possível sobre o lodo, quando o sintex nos viesse recuperar. Era o que esperávamos. Porém, nada, nem ninguém apareceu…
Entretanto, por razões que não foi possível determinar, perdeu-se o contacto com o comando do BArt. A noite começou a cair e, falhado o contacto rádio com Bambadinca, chamei a minha companhia e procurei fazer sair um grupo de combate que viesse recuperar-nos pela estrada. Contava poder orientar-me pelas luzes das viaturas que viessem ao nosso encontro. Porém, subitamente, as comunicações com Bambadinca restabeleceram-se e recebemos ordem de para ali nos dirigirmos. O percurso a fazer era maior do que para o Xime ou mesmo para os Nhabijões, mas começamos a progressão debaixo de uma chuvada tropical, acompanhada daquela trovoada que ainda deixa o céu iluminado, de um tom róseo, durante segundos, depois de a faísca ter caído.
Aproximámo-nos de Bambadinca num percurso em que mal se via o caminho e orientando-nos somente pelas luzes dos aquartelamentos. Já perto do quartel fomos recolhidos por um pequeno grupo da CCAÇ 12, sob o comando do capitão Bordalo Xavier, que, com um petromax à cabeça, nos ia orientando. (…) Como entrei no quartel não me lembro… Tomei uma bica no bar de oficiais… e, depois, sentado no chão do quarto do major Sousa Teles, estou a despir-me revoltadíssimo com o modo como tudo se passou e ele a tentar acalmar-me. Regressei ao Xime, já noite alta e com uma farda n.º 2 que o major Sousa Teles me emprestou.
Depois, foi elaborado, no BArt, o relatório da acção, que eu contestei, enviando a minha versão às mesmas entidades que o tinham recebido na versão do Batalhão. Redigi a contestação com base nas achegas que o alferes Sousa e o furriel Jorge Araújo me deram. Foi pelo Sousa que fiquei a saber que os três desaparecidos tinham caído à água simultaneamente, no momento em que o sintex bateu na margem." (Op. Cit. pp 94-97).
Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime (foto 4). Era o do José Maria da Silva Sousa (o bazuqueiro). O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, o que é natural neste tipo de ocorrência.
O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos. Éramos oito a tirá-lo de lá… assumindo o alferes Manuel Gomes (1948-2014) a missão de tentar extrair do corpo a água que impediu o malogrado Sousa de ser sepultado dentro de um caixão.
Foto 4 (Cais do Xime; Ago'72) – Foto com a indicação do local onde foi recuperado o corpo do camarada José Maria da Silva Sousa (1950-1972).
Dois dias depois procedemos à realização do seu funeral, numa tarde de autêntico dilúvio, com as Honras Militares a que tinha direito, ficando o corpo sepultado no cemitério de Bambadinca.
Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os restantes corpos, mas em vão… para sempre! Nem tampouco os seus nomes constam no 8.º Volume da CECA… É inadmissível!
Em 07Dez1973, fomos convocados para comparecer no Tribunal Militar Territorial, em Bissau, para participar no acto de julgamento do processo, tendo como Réu o ex-Major Henrique Jales Moreira, e na qualidade de testemunhas oculares, eu próprio e o 1.º Cabo Miranda. Tratou-se de uma nova aventura e de uma grande experiência que não gostaríamos de repetir, em função do ambiente em que decorreu.
O veredicto final do Tribunal Militar determinou a absolvição do Réu.
Fontes consultadas:
Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.