1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2019:
Queridos amigos,
Enquanto lia estas peças memoriais de João Trindade, inevitavelmente que a memória rodopiou até aos meus médicos de Bambadinca que assistiram os meus doentes civis e militares, o David Payne Pereira e o Joaquim Vidal Saraiva. Nunca se pagará este dívida de gratidão e eles, os profissionais de saúde, também não nos esqueceram.
Já aqui se fez referência às ditosas enfermeiras-paraquedistas que deixaram relatos pungentes, em 2014 aqui se saudou o relato
"Senhor médico, nosso alferes", de José Pratas, um soco no estômago, um estilo económico, bem castigado, com sorrisos e lágrimas.
E saúda-se agora este médico que nos vai deixar um relato impressionante da sua passagem por Guidage. Afinal, Salgueiro Maia tem concorrente na descrição apocalítica do que se passou naquele ponto da fronteira, em maio de 1973. Acompanha-se o relato de João Trindade de forma compulsiva, é faceto, não esconde os prazeres da vida, não há vislumbre de farronca em ter feito o bem que fez e é de uma sinceridade que nos comove na tragédia que viveu em Guidage e que o deixou marcado para toda a vida.
Os médicos entram com o pé direito na literatura de guerra, está visto.
Um abraço do
Mário
O médico que presenciou os dias infernais de Guidage (1)
Beja Santos
São inúmeras as referências a profissionais de saúde na literatura de guerra. Deixa-se aqui o desafio a candidatos a mestrados e doutoramentos, trará revelações, nalguns casos bem surpreendentes, trazer à tona médicos, enfermeiras e enfermeiros, maqueiros que acompanharam tão carinhosamente os feridos, que assistiram os moribundos, que fizeram partos, que foram flagelados, emboscados e participantes em cenários infernais.
O relato do médico João Trindade em
“Dias Sem Nome, histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, By the Book, edições especiais, 2019, tem uma pitada de tudo, como se suportou Mafra, como se desgostou da Escola do Serviço de Saúde Militar, e quando a vida parecia estar a correr bem, em novembro de 1971, recebe-se um telefonema do Hospital Militar para receber um envelope urgente, a Guiné está à vista.
“Saí de casa com as duas filhas ainda a dormir, despedi-me da Lígia. Saí debaixo de uma chuva miudinha, chata, e de um frio de rachar. Eram cinco e meia da manhã”. Embarca num avião a jato na Base Aérea de Figo Maduro. É uma comissão que começa a 15 de janeiro de 1972 e termina a 9 de dezembro de 1973. É um livro de caráter memorial, com belíssimas fotografias, logo que possa encontrar este médico reformado irei de mão estendida pedir-lhe que autorize a publicação de algumas destas imagens no blogue.
Chega e tem como destino Empada, nas imediações do rio Grande de Buba. Experimenta as primeiras flagelações, e faz um registo de toda a comissão:
“Em Empada estive dez meses e eram pelo menos três ou quatro por mês; na intervenção militar na zona de Guidage, onde estive dezassete dias, eram vários ataques diariamente; e em Cufar, a Sul, na operação em Caboxanque, onde estive um pouco mais de duas semanas, também os sofri por várias vezes”.
Tem muitas histórias para contar, logo o seu primeiro parto, nas condições mais deploráveis:
“Ao entrar, duas sensações me assaltaram: a grata surpresa de ouvir o choro de um recém-nascido e uma náusea e vómito, que consegui reprimir, pelo cheiro quente e fedorento do ambiente. Três máscaras de cirurgia embebidas em álcool disfarçaram o nojo. Calcei luvas e observei o bebé que já merecia os cuidados da velha que o ajudou. Só que a placenta não havia meio de sair. Pedir à parturiente para fazer força e ajudar às nossas massagens no abdómen era inútil. Nem ela tinha já forças nem sequer para gemer, pois estava em trabalho de parto há muitas horas. Decidi fazer o toque, meter a mão, o colo ainda muito aberto permitiu-me entrar na cavidade uterina e, a dedo, ir descolando a placenta. O sangue, o cheiro, o calor intenso, a casa mal iluminada constituíram o cenário tétrico, indescritível e tremendamente difícil que tive de viver durante largos períodos”.
Não esqueceu o muito peixe que comeu em Empada, aliás, foi à pesca numa lancha de fiscalização pequena, arrependeu-se da temeridade.
Dá-nos conta do seu trabalho em Empada, não conseguiu esquecer a burocracia da Delegacia de Saúde, tudo a carimbar, como mandava a lei. Presta por vezes serviço a Aldeia Formosa, foi lá três vezes, pelo menos.
“Era em Aldeia Formosa que eu passava, de quando em vez, quinze dias que me sabiam a férias. Ataques, raríssimos; comunicações, fáceis”. Relata um novo parto, também com algumas peripécias. É em Aldeia Formosa que recebe uma prenda inesquecível. Cherno Rachide, uma verdadeira entidade espiritual do islamismo na Guiné, ofereceu-lhe um Corão escrito pela sua mão a tinta de ouro.
Após todos aqueles meses em Empada, é transferido para Bissau, vai para o Hospital Militar. Mas há um acontecimento inesperado, o avião em vez de o deixar em Bissau, aterra em Cufar, então ocupada por centenas e centenas de militares, o cenário lembrou-lhe o filme Apocalypse Now, acontece que ele tinha sido destacado para dar apoio médico durante a operação do Cantanhez, a “Grande Empresa”. Vai fazendo voos para as diferentes posições que estão a ser ocupadas pelas forças portuguesas.
Passa o Natal no mato. No dia 31 de dezembro recebe ordem para regressar a Bissau. Desdobram-se as peripécias, tem trabalho em Bubaque.
“Durante a minha comissão estive por duas vezes em Bubaque. Não de férias, mas antes cumprindo uma missão que cabia, semanalmente e por escala, a cada um dos médicos militares sediados em Bissau. Partia-se a meio da manhã e aterrávamos numa pista rasgada na mata, de bom piso e bem cuidada. Alguém nos vinha buscar e íamos cumprimentar o administrador no seu local de trabalho. Feita a conversa, ia ao posto médico onde um enfermeiro dava conta dos doentes inscritos. Fazia-se a consulta sempre com a tradução de alguém porque a etnia dominante era o Bijagó, uma fala muito rápida e com sons esquisitos, gente que pouco ou nada entendia de português”.
O melhor vinha depois, o bom peixe e o marisco, com regresso a Bissau de avioneta. Trabalhava igualmente no Hospital Civil em Bissau.
“Ao nosso serviço tínhamos um empregado a quem devotávamos todo o carinho porque cuidava do nosso bem-estar, da limpeza das instalações e das nossas refeições. Permanecia por ali desde manhã cedo até perto das dez horas da noite. Falava bem o português. Tinha apenas uma dificuldade que era pronunciar o nome das especialidades médicas. Resolveu-a usando uma fórmula curiosa que todos nós percebíamos e adotámos. Ao ortopedista chamava dótou di osso, ao oftalmologista, dotou di olhio, ao dermatologista, dótou di peli, e assim por diante.
- Pergunta lá a este gajo do que é que ele se queixa, o que é que tem, se lhe dói alguma coisa…
Ele ouvia o paciente e traduzia-nos. Mas antes tinha sempre o cuidado de, baseado no seu diagnóstico, feito de longa experiência, adiantar a orientação.
- Esti é para o nosso dótou di barriga, está com diarrêa desdi muitos dias.
Raramente se enganava na especialidade indicada para a patologia do doente. Mas certo dia aconteceu, e acho que não foi só comigo, que chegou um homem magro, muito ativo, como quem vem a protestar, sem aparente queixa, que falava, falava, falava e ninguém o calava nem entendia. Chamámos o João. Ele ouviu o homem durante um, dois, três, cinco minutos, e eu, já com pouca paciência e com mais que fazer, interrompi o discurso.
- João, diz lá o que é que o homem está para aí a dizer há meia hora, porra!
E o João mandou calar o tipo e disse-me com ar paciente.
- Dótou, o gajo té agora só falou, não dissi nada!”
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 20 de dezembro de 2019 >
Guiné 61/74 - P20474: Notas de leitura (1248): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (37) (Mário Beja Santos)