1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2020:
Queridos amigos,
Annette é de uma curiosidade insaciável. Pergunta-se como é que uma intérprete profissional, mulher de vasta cultura, vincadamente europeia, tendo sido atraída para colaborar numa obra de ficção, ainda por cima sobre um tema para ela inimaginável, uma guerra que ocorreu algures num ponto da África Ocidental, mesmo sabendo-se que toda aquela luta ganhou fama mundial nas décadas de 1960 para 1970, que todos aqueles sonhos caíram no charco, parece um país pária, entregue à caridade internacional, isso ela bem sabe, porque já foi intérprete em reuniões de doadores e ficou consternada com a miséria da população e a gravidade dos créditos, em princípio impagáveis, agora vive entusiasmada a ler as histórias do seu amante, recebe relatos uns atrás dos outros, felizmente vêm por ordem cronológica, há para ali histórias completamente absurdas, quando ela leu os tais relatórios com os abates à carga, riu desalmadamente. Já se passaram cinco meses, está tudo explicado até agora e a propósito do dia de Ano Novo Paulo Guilherme avisa Annette Cantinaux que se prepare, no dia seguinte vai participar numa tempestade de fogo.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (21): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureuse, o homem põe e Deus dispõe. Chegou finalmente a convocatória para a reunião do Grupo de Trabalho da Televisão Sem Fronteiras, é quarta-feira todo o dia, diz-me se estás em Bruxelas, não quero transtornar os teus planos, irei telefonar rapidamente para saber da tua disponibilidade, se estiveres em Bruxelas iria terça-feira no primeiro voo da manhã, mas tenho forçosamente que regressar quarta-feira à noite, no último voo, afazeres inadiáveis quinta e sexta, mas em breve passaremos as férias juntos.
Fiquei surpreendido por teres gargalhado com aquele episódio que te contei demoradamente dos abates que aceitei fazer quando fazia os relatórios das flagelações a Missirá e Finete. Tudo começou logo com a flagelação de 6 de setembro, três armas muito danificadas e três camas carbonizadas, incluindo a roupa. Andávamos a fazer esta visita, eu e os três furriéis, quando o cabo-quarteleiro me disse algo que até agora me tinha escapado completamente:
“Olhe meu alferes, mais um mês e passo à peluda, é bom que não se esqueçam que faltam dezenas de mantas, capacetes, lençóis, panos de tenda, quando eu cá cheguei disseram-me que havia binóculos, interessa é que há roupa completamente destruída, eu quero saber como é que vão fazer a transferência quando chegar aqui outra unidade e trouxer à frente um desses sujeitos que não deixa escapar nada, nem na contabilidade nem na carga”. Conversei com o Saiegh, sim, era público, desaparecera muito material à carga com as viagens de Porto Gole para Enxalé, de Enxalé para Missirá; houvera um grande ataque em 1967, nem tudo fora referenciado nos danos. Aproveitei a coluna seguinte a Bambadinca para esclarecer o que se impunha fazer com urgência. Um daqueles sargentos de olhar manhoso e vitríolo na voz lembrou-me que havia livros com a classificação de todo o material e que era uma grande dor de cabeça e podia mesmo custar muito dinheiro faltarem coisas fora dos autos de abate, superiormente sancionados. Estava eu nesta conversa e apareceu-me o Alferes Valentim que ouviu a peroração do sargento, não se fez rogado:
“Bem me podes safar de uma boa encrenca, mete lá mais 10 camas, 40 lençóis e 20 mantas, não há flagelações a Bambadinca, foram coisas que apodreceram ou enferrujaram, não tenho condições para justificar este material podre”. Como houve nos meses seguintes três curtas flagelações, fui cedendo a diferentes pedidos para ir abatendo capacetes, material dos sapadores, da manutenção automóvel, dizendo sempre que tudo tinha ficado calcinado, os de Bambadinca agradeciam e eu não previam que estava a preparar um sarilho na vida.
Guardo na memória a situação, parece que foi ontem. Estou a regressar de Mato de Cão, passámos a noite toda ao relento, vimos todos esfomeados e sedentos, quase junto à Porta de Armas aparece a zumbir um helicóptero, dele sai um senhor em farda n.º 2 sobraçando uma pasta, é formalmente cortês e diz ao que vem:
“Foram lidos com atenção os seus relatórios, o que descreve é inacreditável, após as flagelações que sofreu, pouquíssimas, já arderam camas, material de transmissão e de manutenção de viaturas bem acima de um qualquer batalhão dos mais sacrificados. É uma situação intrigante, venho interrogá-lo sobre os fundamentos de tais perdas”.
Vem sujinho, pedindo licença para ir mordiscando um pão com marmelada, e depois de ter bebericado uma embalagem de leite com chocolate holandês, sopesando as palavras, fui direto ao assunto:
“Meu coronel, justifica-se a incredulidade com a quantidade de material que eu digo que foi abatido nas minhas flagelações. Demorei mais de um mês a saber que havia faltas enormes, de tudo, desapareceram carregadores de G3, tripés de metralhadoras, correias, capacetes. Deram uma explicação de que entre Porto Gole para o Enxalé e de Enxalé para Missirá desapareceram coisas. Para tentar perceber o que se passava e como colmatar a brecha, ia a Bambadinca, arranjei lenha para me queimar, o batalhão estava de saída, pediu-me ajuda para preencher as faltas, quem era eu para dizer não? E assim tem sido nos meses seguintes. Não vi mal nenhum ao mundo. Não estou a ver ninguém a levar estas mantas bafientas para a metrópole. E já leva alguns meses para perceber que este clima destrói tudo, corrói o metal, apodrece os tecidos, rebenta as correias, enferruja e inutiliza tudo. Dito isto, meu coronel, assumo inteiramente o que escrevi nos meus relatórios, respondo pela falta dos outros, aceito as consequências”.
O coronel escutara-me com atenção, sorriu depois da minha perlengada, olhou para o teto e depois para as suas unhas bem cuidadas, fechou o caderno, onde me parece que escreveu umas notas magras, levantou-se com um suspiro, alegou que tinha pressa de chegar a Nova Lamego e prometeu que me ia tentar safar da alhada. Agradeci-lhe muito. Mais tarde, viemos a saber que houvera arquivamento do processo. E foi assim.
Mon amoureuse, creio que neste momento tens o essencial dos cinco meses de 1968: já arribei ao Cuor e me deslumbrei, tenho-me esforçado por suprir carências, por cumprir as responsabilidades militares, por arranjar professor para os soldados e para as crianças; tens em teu poder dados da correspondência incrível que me enviam, batem à porta da minha morança, entregam-me a cartinha, eu que leia os pedidos; fiz três ocupações fora do Cuor, senti uma profunda deceção pela falta de respeito, ninguém me explicou o que é que eu andaria a fazer naqueles pontos do Xime onde se previa estarem localizadas bases do PAIGC, foi canseira sem qualquer proveito; tenho um furriel, o Pires, que foi funcionário bancário, que me ajuda muito no expediente, nos mapas dos pagamentos, na conferência das despesas com alimentação, até na organização das escalas de serviço; um outro furriel, o Casanova, é muito habilidoso, aproveita restos de habitações abandonadas pela guerra, sobretudo entre Finete e Mato de Cão, reutiliza materiais que nos faltam; há uma ida semanal ao médico, tanto para ver os militares como as populações civis de Finete e Missirá; Finete, tenho que te confessar, é uma dor de cabeça, o comandante de milícias nominal não tem liderança, vive do espavento, passeia-se em farda n.º 2, fiquei atónito quando descobri que nunca vai fazer patrulhamentos, tenho felizmente dois bons sargentos, Bacari Soncó e Fodé Dahaba, sempre que posso estaciono lá uns dias para acompanhar os arranjos das valas, a segurança das fieiras de arame farpado, pego em duas secções e patrulhamos junto do Geba estreito, até Aldeia do Cuor, faço sempre todo o possível para que as populações do outro lado da bolanha nos vejam; procuro tratar de mim, tenho recidivas das micoses, os pés incham, os mosquitos deixam muitas marcas, fez-se um esforço apreciável para melhorar a cozinha, autorizaram que por turnos os nossos cozinheiros estagiassem nas cozinhas de Bambadinca, em todas, de oficiais, sargentos e praças, a confeção melhorou mas o lote de géneros é tão estreito que vivemos esta sensaboria do esparguete com chouriço e as batatas com atum; leio, escrevo e oiço música, sabe Deus como é possível encontrar tempos livres, são eles que me fortalecem; o novo comandante de Bambadinca já cá esteve, simpatiza comigo mas já me disse abertamente que está farto dos meus pedidos que ele não pode suprir.
Começa hoje um novo ano, Annette, não me passa pela cabeça que amanhã vou participar numa tempestade de fogo. São estes os apontamentos que te vou mandar, e vou pedir a todos os santinhos para que tu não andes pelos luxemburgos e holandas quando eu aí chegar na terça-feira. Muito obrigado pelas tuas cartas, são o verdadeiro lenitivo que tenho na tua ausência, acaricio estas folhas de papel como acaricio o teu cabelo, sabendo que o nosso amor supera e superará a imposição das distâncias.
Os meninos de Missirá. Acocorado, Tumlo Soncó, filho do Régulo Quebá, impressionava-me muito este jovem, ia na coluna sempre com a sua Mauser, a bandoleira no ombro, vive hoje no bairro de Missirá, Bissau, nunca se recompôs de um tremendo AVC. O meu querido amigo Abudu é o menino mais espigado, de cabeçorra, a sorrir, teve já dois enfartes de miocárdio, trabalha moderadamente, vive na Pontinha, quando lhe dei esta fotografia esteve bem meia-hora especado a ver o mundo da sua infância, praticamente todos já faleceram.
A primeira vitória da reconstrução de Missirá, refez-se o abrigo à esquerda, por cima está o posto-sentinela, vai começar uma discussão acesa com o régulo, todos aqueles cajueiros em frente têm que desaparecer. Após imaginar umas contrapartidas, ele resignou-se e ganhámos em segurança.
Ladeado por dois milícias, de etnia fula: à esquerda, o Albino Amadu Baldé, natural do regulado do Corubal, comandante do Pelotão de Milícias 101, de Missirá; à direita, Indrissa Baldé, soldado do Pel Mil 101. Finete era guarnecida pelo Pel Mil 102.
Fala-se muito no feitiço africano, no esplendor da natureza. Quando atravessava a bolanha de Finete, e nela pernoitava, dava tudo para contemplar aquela bola de fogo que contrasta com o verde-antracite e se precipita num fundo inimaginável.
Não conheço leitura tão sublime, e da Guiné falo, como os cadernos elaborados durante a sua visita à Guiné em 1947, por Orlando Ribeiro, aquele que foi o maior geógrafo português do século XX. São observações de um grande humanista, ele refere as conversas que ia tendo com o seu guia e nunca escondeu o orgulho de se fotografar ao lado daquele homem que tanto lhe ensinou. Os gigantes da cultura são assim.
Orlando Ribeiro e o seu guia