sábado, 19 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23009: Os nossos seres, saberes e lazeres (492): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (38): De regresso à primeira grande obra da arquitetura manuelina (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
O regresso a Setúbal tinha como pretexto uma tasquinha de pitéus, a Dona Rosa, senhora de muitos dotes em caldeiradas, choco frito e carapaus. Revelou-se irresistível a visita à Igreja do Convento de Jesus e ao respetivo Museu, sempre a aprimorar-se. E ficou a vontade de rapidamente ali voltar, mais não seja para ir conhecer o Museu das imagens de Lauro António e ver uma exposição do meu amigo Vasco no Museu do Trabalho.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (38):
De regresso à primeira grande obra da arquitetura manuelina

Mário Beja Santos

Havia que ir a Palmela, a um armazém de livros, trazer umas caixas com obras oferecidas para uma IPSS da Saúde, foi assim que me senti acicatado a avançar sobre Setúbal, e mesmo em cima do acontecimento dei comigo a pensar, para além de ir comer carapaus, que belezas visitar: o Museu do Trabalho? A Galeria Municipal, a coleção oferecida pelo Lauro António? Deambular pelo casco histórico para ver as melhorias nas mais recentes intervenções? Ir até ao Museu de Arqueologia e Etnografia? Subir até à Fortaleza de S. Filipe? Ir sentir os cheiros do Mercado do Livramento? Tanta foi a indecisão que se cortou o mal pela raiz, o melhor é ir até ao Convento de Jesus, voltar a visitar o museu e deter-me com mais atenção sobre as preciosidades do Coro Alto.
Encomendados os carapaus, investe-se no centro em direção à primeira grande obra da arquitetura manuelina. É nisto que se dá com uma vivenda de outras eras em derrocada, é certo e seguro que não há salvação possível nem para os azulejos, requintados, por sinal. O que dá para refletir que andamos sempre a bater com a mão no peito na defesa do património e mantemos olímpica diferença com certos primores que nos cercam. São estas imagens que aqui se mostram da azulejaria que marcou uma época, veja-se a imagem final com a graciosidade que teria aquela escadaria antes de todo este conjunto ter sido votado ao abandono, agora não dá para chorar sobre o leite derramado.

Não é à toa que se diz que esta igreja é a primeira manifestação do que se convencionou chamar o manuelino, iniciou-se a sua construção em 1490, desta iniciativa à ama-de-leite de D. Manuel, uma senhora de nome D. Justa Rodrigues Pereira, cortesã, solteira, mas mãe dos dois filhos de D. Frei João de S. Lourenço, Bispo de Ceuta e da Guarda, com filhos legitimados por Carta Régia. A fundadora lá foi fazendo as suas compras de terreno, contou com o patrocínio do Rei D. João II e a licença do Papa Inocêncio VIII, atribui-se a Mestre Diogo de Boitaca a obra. Nas escavações arqueológicas que se realizaram em 1989 apurou-se que a cabeceira e o corpo da igreja conventual foram construídos na mesma fase da obra. As recentes urbanizações valorizaram a perspetiva que se tem do templo religioso. Consegue-se centrar o nosso olhar do todo para a parte, o portal toma logo conta de nós, é feito em brecha da Arrábida, apresenta 18 nichos projetados para as imagens, que se pensa nunca terão a ser esculpidas. Tem no tímpano dois Alfas (letra do alfabeto grego que simboliza o Mistério da Criação) as portas são do final do século XVI, conforme data gravada no exterior.
O Convento ganhou imenso com esta urbanização, aumenta a espacialidade, são uns belos espaços verdes e a visibilidade é logo atraída para toda esta brancura de uma construção sóbria onde imperam janelões harmoniosos, o destaque do portal e os contrafortes no exterior.
É impossível o visitante ficar indiferente há ligação entre o interior da igreja com as suas colunas torsas em brecha de Arrábida, a sua perfeita ligação com a capela mor e o Coro Baixo, e a vista espraia-se pelas paredes azulejadas, por um lado é a sensação de grande leveza como se o templo fosse levantar voo, por outro os painéis de azulejos de uma extraordinária beleza. Seja qual for o autor de todo este projeto, as soluções construtivas no interior da igreja geram uma atmosfera etérea. Escusado é dizer que houve diferentes intervenções, é o caso da atual platibanda, que remata a fachada e a cabeceira no exterior, obras realizadas entre 1941 e 1943, restauro baseado no estudo de fragmentos da platibanda original.
É uma igreja de três naves, as suas colunas torsas geram surpreendentemente um espaço unitário e os dois janelões e o portal também produzem uma iluminação de forma homogénea. A sua cabeceira eleva-se sobre o corpo. Estão aqui as formas gramaticais que se tornarão comuns no manuelino: arcos de volta perfeita (em substituição de arcos de ogiva), abóbadas assentes sobre arcos abatidos, redes de nervuras, elementos decorativos como as meias-esferas e os chanfros papo-de-rola.
Surpreende, a quem entra aqui pela primeira vez desconhece as campanhas de obras, a austeridade da capela-mor. Ela foi coberta por uma abóbada em pedra lioz com nervuras em brecha da Arrábida, preenchida com azulejaria nas paredes laterais e no fundo da cabeceira tinha um retábulo de treze pinturas de grandes dimensões, em óleo sobre madeira de carvalho, atribuído à Oficina de Lisboa de Jorge Afonso. Em finais do século XVII ou inícios do século XVIII, este conjunto retabular foi desmontado e substituído por um retábulo em talha. Entretanto, os painéis pintados do retábulo quinhentista foram emoldurados e pendurados ao longo das paredes laterais do corpo da igreja. Na atualidade, este magnífico conjunto, altamente representativo da pintura portuguesa da primeira metade do século XVI, encontra-se na Galeria Municipal, até que terminem as obras no interior do edifício do Museu de Setúbal/Convento de Jesus. O retábulo em talha dourada não voltou à igreja.
Resta esclarecer que este Convento, sob o orago do nome de Jesus, recebeu religiosas da Ordem de Santa Clara (ramo feminino da Ordem de S. Francisco de Assis), a vida conventual ter-se-á iniciado em 1496, mas parte da obra conventual continuaria em trabalhos, o que não impediu a ocupação do edifício pelas religiosas. É essa vivência conventual que iremos seguidamente ver no que é hoje o Museu de Setúbal e aproveitaremos para admirar a magnificência do Coro Alto.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22990: Os nossos seres, saberes e lazeres (491): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (30): Óbidos, diferentes povos, presenças régias, rico maneirismo, restauros e omissões (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23008: Agenda Cultural (800): "Despojos de guerra", uma série documental da jornalista Sofia Pinto Coelho, que será emitida no Jornal da Noite da SIC nos dias 24 e 28 de fevereiro, 3 e 10 de março... Disponível também, a partir de hoje, na plataforma de streaming Opto.Sic



Série docmental "Despojos de guerra", da autoria de Sofia Pinto Coelho, coprodução coprodução SIC | Blablabla Media... Dois fotogramas do "trailer", disponível na plataforma de streaming Opto.Sic.pt... (Reproduzidos com a devida vénia...)



1. Mensagem, com data de ontem,  de Sónia Ricardo, produtora de informação da SIC, que esteve a trabalhar no projeto documental da jornalista Sofia Pinto Coelho sobre a Guerra Colonial, e que nos solicitou colaboração para poder contactar autores de algumas fotos publicadas no blogue e obter a sua cedência:

Caro Luís,

Regresso ao seu contacto para dar conta de que a série "Despojos de Guerra", uma coprodução SIC | Blablabla Media, vai ser disponibilizada em estreia na nossa plataforma de Streaming OPTO no sábado dia 19 de fevereiro.

Será emitida no Jornal da Noite da SIC nos dias 24 e 28 de fevereiro, 3 e 10 de março. Estas são as datas previstas que, por alguma força da atualidade, podem ser alteradas. Caso tenha conhecimento atempado de alguma alteração das datas previstas, informarei em conformidade.

Mais uma vez, muito obrigada pela colaboração nesta série.

Qualquer questão não hesitem em contactar-me.

Sónia Ricardo

2.  Informação do editor LG:

"Despojos de Guerra" é uma série documental, de Sofia Pinto Coelho, sobre "informadores e combatentes que foram heróis anónimos da guerra colonial". Num dos episódios (talvez o terceiro) é entrevistado o nosso camarada Miguel Pessoa, hoje cor pilav ref, na altura ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74. (Tem cerca de 220 referências no nosso blogue.)

Elenco:
Jornalista: Sofia Pinto Coelho
Imagem: Paulo Cepa; Pedro Castanheira
Edição de imagem: Luís Gonçalves
Produção: Sónia Ricardo

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23007: Notas de leitura (1421): “Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial”, por Vasco Luís Curado; Guerra e Paz Editores, 2019 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Desde o trabalho jornalístico à investigação universitária, passando pelas páginas dos jornais e depoimentos televisivos, são variados os relatos dos antigos combatentes que a sociedade guarda num discreto anonimato. O que há de relevante neste levantamento de Vasco Luís Curado é que nunca se foi tão longe na versatilidade das citações, há prisioneiros na Índia, de primeiros-cabos atiradores, soldados-paraquedistas, alferes-sapadores, soldados-atiradores, condutores, oficiais de operações especiais, parece que o autor escolheu a dedo a representação dos estilhaços físicos e psicológicos, das manifestações mais díspares que vão da apatia à agressividade permanente. 

Como diz o autor, "O país, todos nós, não quis saber do combatente que, regressado a casa, dormiu um mês no bosque próximo com a faca-de-mato, ou daquele que, de vez em quando, acorda convicto de que, aos pés da cama, está um saco cheio de orelhas e dedos humanos (...) Há que continuar a ajudá-los num outro combate contra dois tipos de esquecimento: o que eles individualmente gostariam de fazer mas não podem, e o que o país lhes quer impor mas não devia".

Um abraço do
Mário



A voz de antigos combatentes que se mantêm em conflito, em carne viva

Beja Santos

“Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial”, por Vasco Luís Curado, Guerra e Paz Editores, 2019, reúne relatos de antigos combatentes, um mostruário eloquente dos estilhaços físicos e psicológicos que a sociedade portuguesa finge esquecer, a guerra já está longe, estes stressados que se amanhem. 

Quem os recolheu é psicólogo clínico, trabalhou dez anos num hospital militar, acompanhou estes stressados, e visa um objetivo primordial com este livro: contribuir para um reconhecimento impedido por divisões profundas na sociedade portuguesa de homens que combateram e que se sentem votados ao esquecimento, muitos deles profundamente doentes ou levando uma vida familiar desgraçada. Como, explicitamente, observa:

“O país e o combatente individual são o duplo um do outro. Assim como o combatente se apazigua aceitando as marcas físicas ou mentais como parte indelével de si mesmo, o país amadurece recuperando o seu passado e aqueles que enviou para o combate. Foram necessários muitos anos para se caminhar em direção a algum equilíbrio na forma de interpretar a guerra e fazer face aos homens que ela mobilizou. Há que continuar a ajudá-los num outro combate contra dois tipos de esquecimento: o que eles individualmente gostariam de fazer mas não podem, e o que o país lhes quer impor mas não devia”.

Diga-se em abono da verdade que o tema está abundantemente versado, as livrarias oferecem muita leitura sobre vidas atormentadas destas experiências de combate sobretudo em terra mas também nos céus e nos rios, falam de jovens que queriam emigrar e que procuraram despachar o serviço militar, seguiram-se as comissões muito duras que tudo alteraram. O que distingue verdadeiramente estes relatos de Vasco Luís Curado do que até agora se escreveu é a versatilidade do caleidoscópio humano, fica-se com a impressão que o apanhado de testemunhos cobre o essencial dos estados daqueles para quem a guerra ainda não acabou, acompanhará muitos até à tumba. Veja-se o caso de quem acreditava no dever pátrio de ir para a guerra, ela mostrou-se tão cruenta que o crente desses valores se foi alterando, e assim testemunha, com uma franqueza que ronda a brutalidade:

“Os meus melhores amigos foram morrendo. Um deles foi atingido numa emboscada, em Cabo Delgado, por um tiro vindo da mata. Vi-o cair. Quando cheguei ao pé dele, estava morto. Quando fazíamos escolta a uma coluna de Engenharia, vi outro ser atingido por uma granada de morteiro e ficar desfeito. Estive com ele até morrer. Sabe o que é apanhar ao colo um amigo sem braços nem pernas?”

Quem testemunha confessa que sentiu prazer em matar, fica o peso da consciência: 

“Por cada pessoa que matei, os rostos ainda me perseguem e devoram”.

 Regressou e a inadequação cedo se manifestou. Sentia-se consumido por uma fúria destruidora: 

“Engravidei a minha segunda mulher quando ainda vivia com a primeira – e também a abandonei anos mais tarde. Sempre fui abandonando as pessoas de quem gostava, para não as magoar mais. Um dos meus netos, ainda criança, odeia-me e com razão: parti o braço ao pai dele. O meu genro é toxicodependente e esteve envolvido em assaltos. Eu tentava fazer-lhe mal de cada vez que o via e cheguei a atropelá-lo. Tenho medo de dormir, quando fecho os olhos vejo coisas passadas na guerra. Às vezes dou por mim a chorar sozinho quando penso no Ultramar, parece que sinto uma pessoa a gemer dentro de mim”

Meses continuados de tensão podem, imprevistamente, revelar-se em sinais de abulia, indiferença ou o seu contrário, alguém testemunha assim:

“Ao fim de quinze meses, depois de me confrontar com tantos problemas, os homens motivados por minas, dar dinheiro a soldados para pagarem medicamentos dos filhos na Metrópole, comecei a desparecer de vez em quando: disseram-me mais tarde que me iam encontrar na estrumeira, fora do aquartelamento, sujeito a expor-me ao fogo inimigo, sem saber o que estava ali a fazer”.

O convívio com a morte e toda a escala do sofrimento também pode gerar relações paradoxais, como alguém revela: 

“Éramos capazes de cantar e beber cerveja ao pé de camaradas mortos. Quando um de nós recebia alguma coisa da Metrópole, como chouriços e coisas assim, era uma festa. Comíamos e bebíamos juntos, mesmo que ali ao lado estivessem os mortos embrulhados. Isto já numa fase mais avançada, endurecidos pela guerra”

E alguém morreu por ele, a dor parece interminável: “Fui ferido três vezes num ataque. Viram-nos a entrar para o abrigo e mandaram para lá a granada. Um dos que tinha entrado para o abrigo primeiro do que eu estava à minha frente e salvou-me a vida, porque levou com tudo. Caio com o meu peito em cima dele, que estava a morrer, senti o sangue dele a jorrar para cima de mim, a correr em golfadas que faziam barulho, parecia que silvava. Eu fiquei ferido com dezenas de estilhaços cravados no peito, barriga e pernas. Ainda hoje encontro camaradas que me dizem como é que eu tinha tanto sangue para deixar lá”

A destruição familiar é muito frequente, oiçamos alguém: 

“Ao fim de 36 anos de casamento, a minha mulher deixou-me. Fiquei sozinho. As minhas filhas estão do lado da mãe. Uma não me liga nada, a outra sim, porque precisa de mim para ir levar e trazer a minha neta que anda no infantário. Dizem que sou um sobrevivente, um exemplo para os meus camaradas, que me viram como morto e nunca julgaram que escapasse. Recebi um louvor, porque, mesmo ferido, não deixei de incentivar os meus camaradas. Eu quero viver, levar a vida para a frente. Mas como é que eu chego lá?”.

Insónias, solidão, sonos invadidos pela guerra, gritaria nos pesadelos, arrependimentos, viver como um fantasma, a vida a fazer uma revisão da guerra… E o horror de um momento capital que depois é versado em termos banais: 

“Perto do fim da comissão, seguíamos dez numa viatura, íamos assistir a um jogo de futebol no quartel da companhia mais próxima. Não ia eu a conduzir. O meu colega deixou o carro despistar-se na picada. Fiquei com o braço debaixo do carro, que me decepou a mão esquerda. Vi a mão caída no chão, mesmo à minha frente. Olhei para o couto, olhei para a mão. Com raiva, dei um pontapé na mão, que voou para o mato. Na enfermaria perguntaram-me pela mão, ainda poderia ser cosida ao braço, no hospital central. Eu e alguns camaradas voltámos ao local do acidente, procurámos no meio da vegetação. Já não a encontrámos. Deve ter sido um festim para as formigas”.

 Tudo é indelével, e momentos há em que se percebe o quilate da camaradagem indefetível: 

“Nos anos 90, quando visitei o Monumento aos Combatentes do Ultramar, em Belém, com o mural onde estão gravados os nomes dos mortos, li o nome completo do Valter, a quem fechei os olhos, e, nesse momento, tornei a sentir o corpo dormente: era o espírito dele a sair do meu corpo”.

Cansaço, cólera, abandono, recolhimento, susto com o barulho dos carros, foguetes, estrondos, sair da cama a meio da noite, vestir-se com a preocupação de que vai para uma operação, um choro compulsivo repentino, olhar para o arvoredo e pensar que está ali um belo sítio para fazer uma emboscada… O que Vasco Luís Curado regista em testemunhos muito bem cuidados é uma gritante chamada de atenção para esses milhares de combatentes que precisam de apoio e de muita compreensão. A sociedade portuguesa precisa de estar mais aberta e compreensiva para este passado colonial, pois muita desta dor aqui contada vem do esquecimento a que estes homens se sentem votados.

De leitura obrigatória.

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Nota do editor:

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959

Guiné 61/74 - P23006: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte: Cuntima, 16 e 17 de novembro de 1976: terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias, "cães dos colonialistas", por ordem do famigerado comandante das FARP Quemo Mané


Guiné > Região do Oio > Setor de Farim > Cuntima > CART 3331 (1970/72) > Aspeto geral da povoação. Na sua maioria a população era de etnia Fula, de religião muçulmana; havia uma pequena minoria Mandinga.


Guiné > Região do Oio > Setor de Farim > Cuntima > CART 3331 (1970/72) > "Cuntima: reservatórios de água, as duas professoras ao fundo e a casa do agente da PIDE/DGS", Fotos do álbum do ex-1º cabo Vitor Silva, membro da Tabanca Grande desde 2007 (*)


Fotos (e legendas): © Vitor Silva (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região do Óio > Sector de Farim> Cuntima > 2016 > Restos do antigo quartel das NT


Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Ao tempo da guerra colonial, Cuntima, junto à fronteira com o Senegal,  era um ponto importante para a segurança da província, Tinha um pelotão de artilhar,com três obuses 14, além de uma unidade de quadrícula, e agência da PIDE/DGS.  Há mais de sessenta referência no blogue sobre Cuntima.

Quem esteve em Cuntima foi o então capitão de infantaria Vasco Lourenço, hoje cor inf ref (CCAÇ 2549, Cuntima e Farim, julho de 1969/junho de 1971).

Refira-se ainda, e por fim, que Cuntima, dois anos depois da independência da Guiné-Bissau, em novembro de 1976, foi palco de cenas de terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias que tinham estado ao serviço do Exército Português,  por ordem do famigerado comandante Quemo Mané, cenas essas aqui já reconstituídas num poste memorável e corajoso do nosso amigo Cherno Baldé (***)

Esse  poste merece ser lido e relido ainda hoje: na altura, em 2013, o poste  teve cerca de meia centena de comentários e causou emoção nos leitores do nosso blogue,  até pela coragem, física e moral, do Cherno Baldé. que nos deu o OK para a pubicação  do seu texto, tranquilizando-nos: "Eu já vivi o suficiente para não continuar fechado no medo de possíveis represálias". 

Em todo o caso, o Quemo Mané já tinha morrido, muitos anos  antes ( em 1985, em Moscovo, segundo informação do nosso amigo e camarada Carlos Silva, tendo os seus restos mortais sido trasladados para a Guiné-Bissau, e tendo sido sepultado na sua aldeia natal, nma tabanca para os lados de S João, sector de Tite, região de Quínara). Acrescente-se que há poucas referências na Net sobre este homem sinistro: o liceu regional de Mansoa tem o seu nome... Tem várias referências no Arquivo Amílcar Cabral, alojado no portal Casa Comum da Fundação Mário Soares.

Voltamos  a reproduzir este poste, parcialmente, na série "Adeus, Fajonquito" (****). Mas o relato dos acontecimentos vai integral: o Cherno Baldé não presenciou estes factos, mas reconstituiu o relato, oral,  de uma das testemunhas, o Demburri Seidi (nome fictício) (3).

Em 1975, o "Chico" já estava em Bafatá, a frequentar o ciclo preparatório e o liceu. Nâo guarda boas recordações desse tempo... Em setembro de 1979, rumaria depois para Bissau onde prosseguiu os seus estudos. "Do grupo de mais de cinquenta estudantes que com ele tinham vindo de Fajonquito e Contuboel, já não restavam, na corrida, mais do que cinco"..

Depois, em 1986, já com 26 ou 27 anos, consegue a tão almejada bolsa de estudo para poder frequentar a universidade no estrangeiro. Por azar, calhou-lhe a URSS. Foi parar à Moldávia e depois à Ucrânia, Licenciou-se em economia pela Universidade de Kiev. Regressou da URSS, em 1990, já depois da queda do muro de Berlim... Faria ainda  uma pós-graduação no ISCTE, Lisboa, em 1992/94, já casado com Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, de origem nalu (e, tanto quanto sabemos, cristã). O casal, ecuménico, tem 4 filhos, um deles já formado em Engenharia de Energias (pela UNILAB- Universidade Internacional Lusofona Afro-Brasileira, estado de Ceará, Brasil).

Mas voltemos a novembro de 1976... e a Cuntima, na fronteira com o Senegal, a noroeste de Fajonquito (distância: cerca de 60 km), ambas as povoações fazendo parte da carta de Colina do Norte (1956), escala 1/50 mil.

Este relato do Cherno Baldé pode bem ser o último adeus a Fajonquito (****), à sua terra natal ... Vamos omitir aqui o seu extenso preâmbulo e a troca de correspondência com o autor com o editor (***) e dizer apenas, sobre o contexto, que a Guiné-Bissau tinha acabado de celebrar o 2º ano da sua independência (1):


(...) "Em Cuntima, pequeno aglomerado fronteiriço que tinha sobrevivido à guerra de fronteiras de 1973, nada fazia prever que nos dias seguintes seria o palco de acontecimentos que iriam marcar o período pós-colonial e perturbar a pacata vida da aldeia e suas gentes. A região vivia a despedida da época das chuvas e nas áreas alagadas de cultura de arroz, as premissas de uma boa colheita que se avizinhava já se faziam sentir pelo cheiro aromático do arroz novo e pela cor amarelada dos campos a perder de vista nas extensas planícies de terras baixas, rodeadas de verdes cinturas de palmeiras dendém. Com o fim da guerra as aldeias tinham sido repovoadas, todas as bolanhas tinham sido recuperadas e parecia não haver limites para criar a prosperidade tão almejada e recuperar o tempo perdido. Mas, nem todos pensavam assim, helás!" (...)

Adeus, Fajonquito  (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte 


(ix) Cuntima: dia 14 de Novembro de 1976, o ataque ao quartel,
ódio, coragem e perfídia


Na noite do dia 14 de Novembro de 1976, um grupo constituido maioritariamente por ex-milicias, cegos de raiva e de ódio, mas muito mal equipados, cujo material bélico se resumia em catanas de uso doméstico, facas de mato e algumas granadas, apostando no efeito surpresa, decide atacar e neutralizar o destacamento militar do PAIGC colocado em Cuntima.

Ao entrarem na aldeia, uma parte dirige-se para a casa de Sissão Seidi, uma decisão que será fatal a este pacífico aldeão que era colega de alguns dos elementos do grupo. Põem-no ao corrente das suas intenções, isto é,  atacar e neutralizar os homens do PAIGC e, de seguida, com as armas que iriam recuperar, liquidar todos os que, na aldeia e seus arredores, colaboravam com o partido.

Quando o grupo deixa a casa para dirigir-se ao seu alvo, o Sissão vai a casa do Comité da tabanca e, em segredo, conta-lhe tudo o que tinha ouvido dos assaltantes. O Comité apercebe-se de toda a gravidade da situação e sabe que não pode perder tempo, rapidamente, decide passar para o outro lado da fronteira, situada mesmo ao lado, levando consigo a sua família, mas antes de partir informa o incrédulo Sissão de que só voltaria em caso de derrota dos assaltantes.

O grupo aproximou-se em silêncio, encoberto pela escuridão da noite, consegue eliminar a sentinela e penetrar no interior do quartel, apanhando de surpresa os seus ocupantes. Os guerrilheiros do PAIGC reagem bem à investida, refeitos da surpresa inicial e melhor armados, obrigam os assaltantes a bater em retirada de uma forma dispersa e desorganizada. De acordo com a testemunha, o ataque teria durado cerca de 3 horas o que, manifestamente, parece exagerado, tendo em conta a disparidade das forças em presença.

O dia começa a amanhecer e os primeiros raios de sol começam a pintar de amarelo o horizonte claro do fim da época chuvosa. E, nas horas que se seguiram à retirada, alguns elementos do grupo assaltante entram, de novo, na morança de um antigo colega, também ex-militar, impelidos talvez pelo desejo de implicar o maior número de pessoas e convencem-no, desavergonhadamente, que já tinham feito o essencial do serviço, mas que, sem munições suficientes, não conseguiram limpar todos, pelo que, se ele tivesse uma catana bem afiada e um pouco de coragem,  podia ir dar o golpe de misericórdia aos feridos que estavam amontoados no quartel. Sem pensar duas vezes e empurrado pelo ódio que nutria pelos novos senhores, o homem não hesitou e com uma catana nas mãos correu para o local indicado, sem saber que se tratava de uma armadilha para o perder.

Quando chega ao quartel, encontra os guerrilheiros a porta da entrada, armados até aos dentes. O que fazer? Recuar? Tarde demais, ele precisa pensar rapidamente numa saida. Com as akas [, Kalashnikov,] apontadas, perguntam-lhe o que procurava ali aquela hora. O homem responde que vinha a procura de ajuda para socorrer um filho que tinha sido mordido por um cão vadio. Parece uma saída razoável, mas não será. Os guerrilheiros estão apressados, pedem a sua identificação e informam-lhe que no momento não tinham tempo para o ajudar, mas que voltasse mais tarde, juntamente com o seu filho.


(x) No rescaldo do ataque das milícias:
 medo e horror em Cuntima


Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o por ao corrente do que sucedera durante a madrugada. O enviado encontra a morança vazia de gente. Mas, na tarde do mesmo dia, informado sobre o falhanço do ataque e a debandada das milícias, conforme prometera, o Comité regressa com a sua família a Cuntima. 

O Comandante do destacamento dá-lhe ordem de prisão imediata, por comportamento suspeito. Inquirido sobre as razões que tinham motivado a sua fuga precipitada na noite anterior, confessa que tinha sido informado pelo seu vizinho, Sissão Seidi, mas que, lamentavelmente, não pudera prevenir as autoridades porque os assaltantes eram numerosos e bem armados. Disse ainda que fora obrigado a fugir devido a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça e que regressara após a confirmação de que o perigo tinha sido afastado. 

Ordenaram-lhe para os conduzir a casa do tal Sissão Seidi, onde os dois seriam presos e amarrados à moda do PAIGC, isto é,  mãos para trás e o peito bombeado à frente, estilo peito de pomba.

Na manhã do dia 16 de Novembro chegou a Cuntima o responsável militar da zona norte, o famigerado Comandante Quemo Mané (2), que assume a direcção das operações e manda convocar toda a população de Cuntima e seus arredores. Querem o máximo de gente e para se certificar que todos estavam presentes, guerrilheiros armados passam revista em todas as casas e sitios passíveis de albergar um ser vivo, querem todos, mulheres, velhos e crianças.

Os dois prisioneiros são colocados no meio da assembleia reunida. O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima. 

Que diabo o teria arrastado para as malhas do partido, ele que sempre fora um camponês simples, honesto e trabalhador, distante das lides políticas e das intrigas que esta engendra nos homens mais ambiciosos. Não servira na tropa colonial apesar dos benesses, do ronco e da fama que o estatuto augurava no meio social fula. Toda a sua família estava presente, a mãe, duas esposas, os filhos e o irmão mais velho. Com voz trémula, explicou tintim por tintim como os assaltantes o tinham acordado durante a noite, os seus intentos e as ameaças proferidas. O Comité da aldeia também repetiu a sua versão e as palavras trocadas com Sissão naquela fatídica noite,  bem como os motivos que o impediram de alertar os homens do destacamento.

Não foi preciso ouvir mais e, se calhar nem era preciso, o Comandante levantou-se e, com a frieza de quem estava habituado a tomar decisões graves, disse que,  pelos comprovados actos de rebeldia e traição à Pátria, os dois homens deviam ser fuzilados e imediatamente.

Ao ouvir as palavras “pá, mata!” da boca do Chefe militar, a assistência ficou literalmente congelada. A rapidez e a dureza da decisão tinham surpreendido tudo e todos, mas quem conhecia o Comandante Quemo Mané durante a luta, sabia que com ele tudo era simples, rápido e demolidor como o turbilhão de vento em dia de tornado tropical. A semelhança da grande maioria dos Comandantes do PAIGC, apesar de rotundo analfabeto (2), subira na hierarquia militar por mérito próprio, distinguindo-se pela sua coragem, brutalidade e violência extremas, uma inteligência fora do comum e pelos sucessos acumulados nas operações que dirigia.

Deram ordens para que todos fossem presenciar o acto no centro da aldeia, mas antes de os levarem, um grupo de homens do partido dirige-se ao local onde estava o Comandante a fim de interceder a favor do Comité da aldeia, provavelmente, pela lealdade e serviços prestados no passado. Assim, no local da execução da sentença, só compareceu o assustado Sissão, diante de uma dupla de homens armados com metralhadoras de fitas metálicas, contendo perto de uma centena de balas. O caso não era para menos.

Tudo estava a postos, os dois guerrilheiros com as armas apontadas, o Sissão à frente,  com as mãos amarradas e olhos fixos nos seus carrascos, a população em pé, envolta em silêncio e no céu o Deus dos homens a registar mais uma crueldade humana. O Comandante da zona que ficara retido pelos colegas do partido para deliberar sobre a sorte do Comité, ao entrar no recinto, grita para os dois executantes:
- O que estão a espera, acabem com eleǃ

Os tiros sucedem-se ensurdecedores, o corpo de Sissão é projectado para trás com o impacto das balas das metralhadoras que continuaram a cuspir fogo até transformar o corpo num autêntico manto de retalhos. A poeira e o cheiro acre da pólvora invadiram o recinto. De seguida, um dos guerrilheiros pega no corpo inerte do defunto Sissão, tendo-o arrastado até ao pé da família, diz a estes:
- Aqui está o corpo do vosso cão, agora podem levá-lo, se quiserem!

Da multidão, ninguém proferiu uma única palavra, ninguém teve a coragem de sussurar a mais pequena lamentação, os guerrilheiros atentos ao menor gesto de indignação. Perguntaram se havia alguém que estivesse descontente com o que acabara de assistir. Como ninguém respondia, foram autorizados a dispersar-se no preciso momento em que se ouviam os gritos de desespero vindos da concessão de Sissão Seidi, cujos familiares a muito custo tinham conseguido conter a dor pela perda do seu ente querido.

Na tarde do mesmo dia, o Comissário Político da zona convocou todas as mulheres cujos maridos estavam ausentes, refugiados algures no Senegal, e que, eventualmente, podiam ter feito parte do grupo assaltante e intimou-os a deixar Cuntima para se juntarem aos seus maridos, pois que não tolerariam mais a presença de pessoas que viviam na aldeia, mas, ao mesmo tempo, passavam informações para fora. Mais que intimação,  era uma ordem que ninguém podia ignorar. As mulheres partiram levando consigo os filhos para um destino incerto.

Na manhã do dia 17 de Novembro, foram buscar o homem da catana para as averiguações que se impunham. O homem foi amarrado ao estilo peito de pomba e a população foi novamente convocada para mais um julgamento público. Perguntaram-lhe porque não voltara com o filho conforme tinham combinado, o homem confessou que na verdade ele tinha sido enganado pelos assaltantes e que a sua verdadeira intenção era liguidar os homens do PAIGC aos quais ele odiava com todas as suas forças e que,  mesmo depois de morto,  continuaria a odiar. De certa forma, a coragem deste homem desesperado tinha compensado a humilhação pública da população de Cuntima.

Levaram o homem ao mesmo sitio do dia anterior, a cabeça e o rosto encapuchados com um chapéu (sumbia) e para o executar, estavam novamente os homens das metralhadoras. O homem pediu para ver o seu filho mais novo. Retiraram-lhe o chapéu que cobria o seu rosto e,  durante alguns segundos,  olhou para o filho, depois pediu para que o cobrissem de novo e em voz alta, para que todos pudessem ouvir, disse que estava pronto para morrer. 

Acto continuo, o comandante deu ordens de fogo e a cena repetiu-se de novo. Como ninguém reagia e olhando para a multidão silenciosa, o Comandante aproveitou para informar a população aterrorizada de Cuntima que para ele e para o seu glorioso partido não custava nada e não constituía qualquer problema riscar a aldeia e a sua população rebelde do mapa da Guiné-Bissau. Com esta mensagem curta e clara,  tinham dado por encerrado o capitulo da revolta das milícias em Cuntima, mostrando assim a determinação do partido em impor a sua ordem.

A operação de procura dos assaltantes continuou nos dias que se seguiram. Durante as buscas, encontraram um dos assaltantes, gravemente ferido, a quem entregaram aos pais e que viria a sucumbir, poucas horas depois, dos seus ferimentos e, provavelmente, por falta de assistência mêdica. Como dizem os árabes, quem não consegue defender, com as armas, o seu ponto d’água, perdê-lo-á; quem não ataca o inimigo com todas as suas forças, sofrerá a humilhação da derrota com todas as suas amargas consequências.

Actos desesperados e suicídas,  como este, tiveram lugar em outros lugares do território, no período que se seguiu à proclamação da independência, sobretudo junto à linha da fronteira com o Senegal. Actos isolados e mal preparados que estavam condenados ao fracasso e cuja autoria, sistematicamente e sem uma explicação plausível, era atribuída à FLING, fazendo reviver velhos fantasmas do passado, aumentar o grau de crispação das novas autoridades e, em consequência, multiplicar a violência de represálias cegas, perseguições arbitrárias e execuções sumárias que marcaram a vida desta jovem nação que, para muitos, constituía um modelo exemplar de uma luta popular bem sucedida, contra o colonialismo em África e no mundo.

Bissau, 12 de Junho de 2013

Recordações de Demburri Seidi (3), tradução e texto de Cherno Baldé.

[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]
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Notas de Cherno Baldé

(1) Na minha infância, povoada pelo espectro da guerra e das fugas constantes de um lado para o outro, quantas vezes não perguntara, a mim mesmo, se a minha vida estaria condenada a ser vivida assim no meio de uma guerra sem fim. Pela experiência dos mais velhos, sabiamos que no passado nem sempre tinha sido assim e sofriamos a bem sofrer,  com a guerra que nos minava a vida pelo medo de morrer em cada minuto, vivendo no improviso e na incerteza do momento, em abrigos imundos, quentes e húmdos, onde todos os ruídos eram ampliados ao máximo, rastreados e identificados a tempo, não fossem silvos de uma granada de obus a caminho ou de uma bala perdida na noite escura.

Para afugentar uma aldeia inteira, qual manada de bovinos na planície, bastava ouvir gritar na noite: “Aí estão eles!”. Não era preciso perguntar, toda a gente sabia quem eram “eles”. Uma vez, um dos meus tios ouviu o grito durante a noite e fugiu nu, como tinha nascido, e foi a mulher que lhe cobriu as vergonhas, no caminho, com o seu pano de cima.

(2) A propósito conta-se uma pitoresca estória sobre o Comandante, que aconteceu no período pós-independência. No término de uma aula rotineira, um Professor dá aos seus alunos um TPC (trabalho para casa) em que pede para citar exemplos de alguns animais voadores. Em casa, o filho pediu o apoio do Comandante, seu pai, para a conclusão do mesmo.
─ Isto é muito fácil ─ diz o pai ─ ponha os nomes de peixe e lagarto.

Na escola, durante a correção dos trabalhos o Professor pergunta ao seu aluno:
─ Quem te ajudou a fazer o trabalho?
─ O meu pai ─   responde o aluno, com uma ponta de orgulho.
─ O teu pai é um burro ao quadrado ─ diz o Prof.

A criança não diz nada e em casa conta tudo ao pai. No dia seguinte, o Comandante vai a escola armado com uma pistola e pergunta ao Professor:
─ O peixe voa ou não voa?
─ Voa ─ responde o Professor ─ mas debaixo d’água.

O Comandante pergunta de novo:
─ O lagarto voa ou não voa?
 ─ Voa ─ responde o pobre professor, com a voz a tremer ─ mas debaixo d’água.
─ Afinal quem é o burro ao quadrado? O burro ao quadrado é o professor que não sabe o que diz e a quem o diz ─ responde este.

Devagarinho, o Comandante coloca a pistola na cintura das calças e diz ao professor:
─ Agora continua a dar as tuas aulas e não te metas com antigos combatentes se não queres levar com uma bala na tua cabeça de burro ao quadrado ─  acrescentou antes de sair.

Um provérbio árabe diz: "Não menospreze uma criança frágil, pode ser que seja filho de um leão".

(3) Em 1974, Demburri Seidi (nome fictício) fez parte de um grupo de jovens que fugiu para juntar-se às fileiras do PAIGC, no mato. Após a independência, fez preparação militar em Canchungo, mas rapidamente chega a conclusão que, com o fim da guerra e sem instrução escolar, as suas hipóteses de subir na hierarquia militar eram praticamente nulas.

 Aconselhado por pessoas amigas, decide trocar a farda pelos estudos, colecciona alguns livros e escolhe a localidade de Cuntima, que dista a poucas horas da aldeia dos pais, para a sua formação escolar. E, sem querer, vai testemunhar os trágicos acontecimentos que se seguiram ao ataque de Cuntima (4) que acabamos de descrever e que marcaram a sua vida e sobre os quais, ainda hoje, não consegue falar sem que os seus olhos se encham de lágrimas.

(4) Comandante do destacamento de Cuntima - Capitão Madiu Kim;
Responsável da segurança – Sana Queita;
Comité da tabanca  ─ Samba Seidi;
Fuzilados ─ Soarê Seidi, Sissão Seidi e  Abbaro Candé,  o homem da catana.

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Notas do editor:


(**) Vdf.poste de 31 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15920: Memória dos lugares (337): Cuntima, junto ao Senegal... Imagens do antigo quartel (Patrício Ribeiro, Impar Lda, Bissau)

(***) Vd.poste de 25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

(****) Vd. postes anteriores da série: 

8 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

6 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959


Guiné > Bissau > s/d [1971/73 ] > Um autocarro dos transportes colectivos de Bissau, carreira Bissau/Bissalanca!... Uma verdadeira peça de museu...  Tinha tejadilho, como o da excursão a Lisboa, em 1959, aqui narrada pelo António Carvalho... Mas seria seguramente de um modelo muito mais antigo... Matrícula G-620...  Empresa: ABP (?)... Uma foto para o nosso Álbum das Glórias... Foto do nosso saudoso Victor Barata (1951-2021), o "Vitinho".

Foto (e legenda): © Victor Barata (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. 
Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.


1. Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74), já aqui reproduzidas na série "Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho..." (vd. os oitos postes publicados) (*),  encanta-nos, na primeira parte do livro "Um caminho de quatro passos,  as memórias da infância do autor passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós conhecemos, tanto no Portugal continental como insular.

Como já tivemos ocasião de o dizer, são apontamentos, observações, registos, relatos, pequenos retratos e histórias de pessoas da família e outros conterrâneos. de inegável interesse etnográfico ou documental para se poder conhecer um pouco melhor a infância e a adolescência da geração que fez a guerra colonial / guerra do ultramar, bem como as suas  origens (**).

Por outro lado, o António Carvalhal tem um grande talento narrativo e sabe usar, com maestria, o léxico próprio das suas gentes, vocábulos e expressões que não se usam no Sul (como moletes, canalha, coxão de  carneiro).  

Em dia de anos (72), e em sua homenagem,  tomamos a liberdade de reproduzir aqui mais um excerto de uma das suas saborosas narrativas, a excursão que fez a Lisboa, de 4 dias, em 1959, acompanhado do mano Fernando, do avô e do tio-avô (que era professor) e dos filhos deste, seus primos. Para os putos da província, ir à capital do império, nesse tempo, era uma pequena grande aventura... à ida passaram pelo Mosteiro da Batalha e , no regresso, ainda passaram pelo Estoril e por Mafra...

Mas o nosso António, com os nove anos feitos,  estava longe de imaginar que os "sinos do império" iriam tocar a rebate, menos de 2 anos depois... E que a guerra colonial / guerra do ultramar também iria sobrar para ele e para o mano Manel... (LG)

 

A EXCURSÃO

por António Carvalho


O nosso avô tinha-se distraído das horas, deslumbrado com o movimento da cidade grande, na companhia do cunhado. Um tinha levado os netos, o outro os filhos que lhe vieram bem tarde. Os netos éramos nós, eu e o meu irmão Fernando, os filhos iam sob a autoridade de um pai já tão avantajado na idade que bem podia ser avô deles.

Nós e os nossos primos ficámos por ali, enquanto os cunhados se passeavam pelas artérias da urbe, olhando as novas formas da cidade, os grandes prédios das avenidas novas, os cafés e leitarias, os fatos e até os vestidos e saias esticadas, que emproadas mulheres de lábios pintados envergavam.

Tínhamos saído no dia anterior, para uma excursão a Lisboa, que demoraria quatro dias. Entrámos na camionete, no Largo da Igreja, ainda o dia se não tinha feito, e lembro-me que trazíamos uma cesta de verga com tampa e um garrafão de verde tinto do nosso, que o chofer acomodou, subindo pela escada da traseira da camionete, no tejadilho, conforme faria com os merendeiros que todos levavam para o consumo, se não de toda a viagem, pelo menos para as primeiras jornadas.

Não era qualquer um que se podia dar ao luxo, em 1959, de integrar aquele grupo excursionista, embora já se tivesse tornado, por esta quadra, mais acessível uma digressão destas do que as primeiras que se fizeram nas décadas anteriores. O ano de 1930 marca o início do ciclo dos automóveis e das camionetes na freguesia, com a chegada da estrada à igreja. Em 1934, o bilhete para uma viagem de três dias, a Fátima, custava sessenta e cinco escudos, o equivalente a sete dias de labor de um trabalhador já com alguma especialização. Mais tarde, em 1941, um bilhete, para uma viagem de idêntico itinerário, custava oitenta escudos, quantia que o mesmo trabalhador auferia em cinco dias. 

Instalou-se no primeiro banco, logo a seguir aos dois degraus que teve que escalar com o esforço que lhe impunha o sacana do reumatismo que lhe pegara logo depois dos cinquenta. Tinha reservado ali dois lugares, o do lado do corredor para si, ficando, por deferência, o da janela para o cunhado e amigo, professor. Este era irmão da minha avó e exerceu o magistério primário, na escola do lugar de Vila Cova, preparando para a vida várias gerações de medenses, durante o longo período de trinta e nove anos, só superado pelo professor José Moreira Gomes que lecionou durante quarenta e três anos, nessa mesma escola.

Nós, a canalha, iríamos mais atrás. Depois daquela primeira estação, o autocarro pararia apenas em dois outros sítios, para se engordar dos pouco mais de quarenta passageiros. Em Vila Cova entraria o cunhado, professor, com os dois filhos. Instalou-se, ainda que relutante, no lugar do lado direito do meu avô, junto à janela, por achar perigoso fazer a viagem naquele posto avançado, sem a proteção que lhe dariam as costas do banco da frente. O problema é que na frente do seu lugar só existia o precipício formado por aquele poço das escadas. Poderia, se o chofer tivesse que travar a fundo, cair de escantilhão, naquele buraco fronteiro formado pelas escadas, mas como o cunhado lhe tinha, por amabilidade, arranjado aquele poleiro, mais não podia fazer do que se precaver, agarrando-se a uma guarda de ferro, uma espécie de corrimão, que lhe dava pelo umbigo.

Nós, o bando dos quatro rapazinhos, éramos dos poucos, talvez os únicos da nossa idade, daquela caravana, que um passeio daqueles era mais para gente grande. Lembro-me do Mosteiro da Batalha e da impressão que me causaram as colunas enormes debaixo de arcos ogivais que pareciam poder ruir a todo o momento, das estátuas jacentes e das rosáceas policromáticas.

Na memória me ficou também a imagem icónica da Torre de Belém e o gigantismo dos Jerónimos. Mas se pasmei perante a visão desses monumentos, pela sua grandiosidade e valor simbólico, como marcos de afirmação da independência e púlpitos da epopeia marítima, confrontado com a aparente modéstia do Palácio de Belém, senti-me desiludido, porque julgava que ele não tinha, proporcionalmente, a relevância institucional do seu locatário. Mais tarde vim a saber que, afinal, naquele tempo, o ápice do poder, estava no Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar.

Os quase dois dias de paragem em Lisboa deram para tudo o que precisávamos de ver e fruir, segundo o plano que o meu avô tinha mentalmente traçado e, naquele caso, o que lhe servia também a nós interessava. Atravessámos o rio, muito mais largo que o nosso Douro, numa barcaça, até Cacilhas, de onde se via agigantada a cidade, fomos ao Jardim Zoológico e ainda andámos de metro, debaixo do chão, como nunca tínhamos experimentado.

Ao segundo dia o sol acordou-nos, de manhã, já em Lisboa, onde tínhamos chegado pela noite dentro e dormido, enroscados, sobre os macios assentos de couro da camionete. O meu avô levou-nos a uma leitaria ali bem próxima do largo onde a camioneta se ancorou e de onde só saiu no dia do regresso a casa, com passagem pelo Estoril e pequena paragem em Mafra.

Eu e o meu irmão comemos dois moletes com manteiga e bebemos uma chávena de café com leite cada um e o mesmo terá sucedido com os nossos primos que se sentaram com o pai na mesma mesa. Foi aí que eu fiquei a saber, quando tivemos que traduzir, para o empregado de mesa, moletes por papos-secos, que os nomes de algumas coisas podem ser diferentes quando mudamos de cidade.

Julgavam os cunhados que a canalha poderia ficar ali, queda e serena, enquanto eles iam vadiar pela cidade ? Os nossos primos, esses bem admoestados pelo seu pai, cumpriram quase todas as normas, mas eu e o meu irmão, cansados de andar por ali a calcorrear ruas, por um perímetro que nos parecia seguro, já não quisemos esperar mais pelo almoço que estava à nossa espera, naquela cesta grande arrumada sobre o tejadilho da camionete.

A agilidade e a sofreguidão empurraram-nos pelo escadote de ferro até lá acima , subestimando os avisos que o nosso avô nos fizera. Havia ainda dentro daquela grande lancheira, um alguidar de arroz a par de outro com um avantajado coxão de carneiro. Foi a primeira e única vez que almocei sobre um autocarro e, por certo, nunca mais repetirei a experiência, porque já não há autocarros com cestas no tejadilho. (...) (pp. 154/156).


Selecão de excertos, e negritos, da responsabilidade do editor LG. (***)
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Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar

Email: ascarvalho7274@gmail.com 
Telemóvel: 919 401 036


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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

24 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...

(**)  Vd. postes anteriores:



(***) Último poste da série > 16 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23003: Notas de leitura (1419): Prefácio do nosso camarada Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Caquelifá e Bigene, 1966/68) , ao livro "A Máscara (teatro)" (2015), de Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73)

Guiné 61/74 - P23004: Parabéns a você (2037): António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) e Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 1426 (Geba, Camamudo e Cantacunda, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22994: Parabéns a você (2036): Miguel Rocha, ex- Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845 (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23003: Notas de leitura (1419): Prefácio do nosso camarada Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Caquelifá e Bigene, 1966/68) , ao livro "A Máscara (teatro)" (2015), de Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73)


Capa do livro, de Alberto Bastos, "A Máscara (teatro)", Vale de Cambra, edição de autor, 2015,  284 pp.



Um "instantâneos" do Albero Bastos. Aqui no lançamento do seu livro de teatro “A Máscara”, em 2015, na sua terra natal, Castelões, Vale de Cambra. Era assim, alegre, teatral e jocoso (olhem o pormenor do adereço).


Dedicatória do autor no livro de teatro "A Máscara": "Ao meu velho camarada de armas, e meu atual e grande amigo, Joaquim A. Pinto de Carvalho que muito, muito, me tem incentivado em tudo, mormente nas 'coisas' do teatro. Agradecido, o autor (...) 15/11/2015"


Fotos (e legendas): © Joaquim Pinto Carvalho (2022). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuamos a recordar o Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73): foi o primeiro camarada da Guiné a morrer este ano, logo no primeiro dia do ano de 2022, tendo entrada para a Tabanca Grande, a título póstumo,  a 11 de janeiro (*).

Hoje reproduzimos aqui o prefácio (ao livro "A Máscara", de 2015), assinado pelo seu conterrâneo e amigo, o  Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68). (**)


Prefácio

por Adão Cruz


Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (nasceu em Vale de Cambra em 1937,  é médico cardiologista, poeta e pintor, e autor do blogue Jardim das Delícias (criado em novembro de 2012); tem mais de uma centena de referências no nosso blogue; entrou para a Tabanca Grande em 26/7/2016 (Poste P16335)


Guiné 61/74 - P23002: Historiografia da presença portuguesa em África (304): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (8) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Poderá parecer excessivo a alguns o espaço que reservamos à narrativa de Cristiano José de Senna Barcelos. Acontece, salvo melhor opinião, que não dispomos de uma outra narrativa com a mesma dimensão sobre este período tão turbulento em que as autoridades não ignoram o cerco dos franceses no Casamansa e a pressão britânica em Bolama e no Sul. É, pois, um período crucial em que a presença portuguesa corre um perigo de morte, ademais falta dinheiro para tudo e há um mercador que paga o funcionamento da presença portuguesa, como se pode ler neste documento. Senna Barcelos foi extremamente minucioso, para além das sublevações, atos de revolta, questões de mão baixa, dá-nos um quadro preciso, de acordo com o que existe nos arquivos, de como Lisboa ia sendo informada das pressões estrangeiras. E ninguém, como Senna Barcelos, consegue iluminar essa figura de dimensão gigantesca que foi Honório Pereira Barreto, o indiscutível fundador do território que hoje se chama Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (8)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

O leitor que se prepare agora para a narrativa quase obsidiante de dois acontecimentos que irão marcar o território da Guiné-Bissau: a infiltração francesa no Casamansa e as pretensões britânicas nos Bijagós e no sul da Guiné. Em quadro resumido das questões desta década de 1843 a 1853, podemos dizer que os ingleses teimam em apossar-se de Bolama e do Rio Grande de Bolola. Num quadro de grande decadência, em que os mercadores portugueses não podem concorrer com os mercadores estrangeiros e se caminha para o fim da escravidão, Caetano Nozolini mantem o contrato de comércio da Guiné e Cabo Verde, obrigando-se a fornecer à Comissão de Fazenda na Guiné todo o numerário preciso para o pagamento das tropas e empregados da Guiné e Cabo Verde. A década começa com uma rebelião de soldados em Bissau, de 3 a 5 de julho de 1843. Os soldados haviam pedido ao seu comandante para que o pagamento lhes fosse feito em géneros e não em cédulas, porque o fornecedor os explorava com o elevado preço das fazendas. Os soldados rejeitaram receber pólvora e tabaco, queriam dinheiro; com a soldadesca exaltada conseguiu o governador que o negociante Nicolau Monteiro de Macedo abonasse a importância em causa; só no dia 5, depois de muito ameaçados os oficiais e o governador da praça, receberam os revoltosos o pagamento; seguiu-se então a embriaguez em que se transformou a casa da guarda em adega. Em dezembro desse ano foram os postos de Ganjarra e de Fá, no rio Geba, cedidos a Portugal pelo régulo Mamadu Sanhá, senhor do território de Badora. O descontentamento na praça de Bissau era permanente e por isso se tomara a decisão de pagar o pré às praças em dinheiro vivo. Tinha-se apurado que os soldados morriam de fome e andavam nus devido ao famigerado pagamento feito em cédulas que sofriam desconto, mais de 50% nas lojas, no tabaco e na aguardente. Recorde-se que os rendimentos da Guiné estavam arrendados a um contratador que recebia sete contos de reis em metal e pagava 16 em géneros e cédulas à Fazenda, como é evidente eram roubados os servidores do Estado. A guarnição da praça de Bissau vivia numa degradação enorme. Na mudança de efetivos na guarnição apurou-se que quem tinha partido deixara no interior da praça mais de 40 choupanas de barro, cobertas de palha; cada soldado tinha duas a três mulheres e nalgumas dessas choupanas vendiam-se bebidas alcoólicas. O chefe do Estado-maior mandou pôr fora da praça todas as mulheres antes do desembarque da nova guarnição e ordenou a demolição das barracas.

A situação da fortaleza de Cacheu era também deplorável. O quartel da guarnição estava inabitável e para que os soldados se não vissem obrigados a fazer barracas para suas habitações foi ordenado o indispensável conserto de uma parte do quartel. As muralhas estavam com falta de cal e o fosso completamente entolhado, o que permitia aos gentios, em ocasião de guerra, subirem as muralhas e entrarem de noite na praça para matarem as sentinelas. Bem propôs este Chefe de Estado-Maior a demolição de choupanas para melhorar a segurança do efetivo militar, nada se conseguiu.

Na ilha de Bolama continuava a existir um pequeno destacamento, porém os navios de guerra ingleses não permitiam que se içasse a bandeira portuguesa. Por insensibilidade do Patrão-Mor da Praça de Bissau, em setembro de 1844 voltaram as guerras. É que o Patrão-Mor negou um copo de aguardente ao régulo e o governador mandou-o prender. Seguem-se ataques em cadência, morticínios, pedidos de auxílio a Goré e à Gâmbia, veio mesmo uma embarcação norte-americana em auxílio dos sitiados de Bissau. Foi uma situação de guerra que durou três meses e meio, por fim celebrou-se a paz com os régulos de Intim, Bandim e Antula, foi mediador o régulo do rio Grande. Prometeram os régulos revoltosos submeterem-se a todas as condições. A descrição é muito curiosa, vale a pena transcrevê-la. A cerimónia de paz realizou-se segundo o uso do país, debaixo dos poilões na frente do portão da casa do governo, depois de reunidas ali as autoridades e habitantes de Bissau, acompanhados pelo pároco com as suas insígnias, assistiram também comissões de Beafadas e Balantas; e da parte dos gentios o fidalgo enviado pelo rei do Rio Grande, e por parte de cada um dos régulos três fidalgos com a sacerdotisa da sua seita (balobeira) com as suas insígnias. Consiste esta cerimónia em beber aguardente que é abençoada com água-benta pelo pároco em uma grande bacia de arame, onde se acham balas de artilharia, de espingarda, planquetas dos gentios e pólvora como sinal de amizade. Escusado é dizer que foi paz de pouca dura, em breve recomeçaram os desacatos.

E de Bolama passamos para Casamansa. Era intenção dos franceses expulsarem os portugueses de Casamansa, procuraram indispor os Balantas que, com as suas embarcações, andavam nesse rio exercendo pirataria e roubavam fazendas às embarcações de Ziguinchor e as iam vender a Selho. É neste contexto que nos anos de 1844 e 1845 Honório Pereira Barreto andou a comprar terrenos no Casamansa e os ofereceu à Coroa. Este governador da Guiné irá ter um papel capital na formação da futura colónia devido a uma hábil política de aquisições.

Continuando este resumo, há que realçar o estado decadente da Guiné devido em parte à tutela particular dos arrematantes de alfândega, eram sucessivas as sublevações e os atos de indisciplina também em Cacheu e Farim, Honório Pereira Barreto bem tentava pôr cobro às rebeliões, chegou mesmo a dirigir uma ação punitiva contra os sublevados de Farim, isto em dezembro de 1846. Meses antes, foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Torre e Espada.

Estamos em 1847, os gentios Beafadas fecharam o rio Geba e declararam guerra, saqueando as feitorias, isto em setembro. O Tenente Coronel Caetano Nozolini escreveu ao Governador-Geral:
“Há 30 anos que resido em Bissau e tenho visto por sete vezes, em diversas épocas, fechar-se o rio Geba por estes negros; antigamente se lhes comprava a paz e a liberdade com dádivas no valor de três mil reis e às vezes mais”.

Nesse mesmo ano, procurou Caetano Nozolini chamar à paz os Papéis de Intim e Bandim, mas o assassinato da balobeira que conduzia a embaixada para se realizar essa paz fez levantar o gentio contra a praça, o que obrigou Nozolini a solicitar urgentes socorros de tropa de Cabo Verde. Nesse mesmo ano, em novembro, a guarnição do brigue inglês Dart atacou em Bolama a propriedade de Aurélia Correia, levando à força sete domésticos para a Serra Leoa. E extrai-se de um documento oficial uma curiosa informação:
“Era costume de data antiga dar-se aos reis de Matta e Pecau, em Cacheu, em cada triénio, um luxuoso vestiário, que o Governador-Geral requisitava ao ministério. Em 7 de março de 1848 requisitou o Governador de Cacheu, em duplicado, o fardamento seguinte: dois chapéus armados agaloados, com penachos encarnados; dois capotes de pano encarnado, com mangas e agaloados; dois coletes de damasco encarnado, agaloados; dois pares de calções encarnados, agaloados; dois pares de meias brancas compridas; dois pares de sapatos com fivelas; duas bengalas de tambor-mor; duas camisas brancas; dois lenços de seda encarnada para o pescoço; duas cadeiras de assento”.
Caetano Nozolini, a expensas suas, levou a bom termo no sítio chamado Duas Palmeiras, pertencente ao rei de Goles, uma fortificação destinada a fechar a comunicação com o presídio de Geba e aquele ponto foi batizado com o nome de S. Belchior. O folhetim de Ziguinchor e Bolama parece interminável, e aqui se interrompe dizendo que em vária correspondência de 1848 mostrou Honório Pereira Barreto o estado decadente de Ziguinchor. Achou o seu estado o mais triste e vergonhoso, “apesar dos seus habitantes, dignos de melhor sorte, serem os únicos da Guiné que defendiam com coragem e bom vontade o presídio e que, além disso, iam prestar a Cacheu qualquer socorro, em caso de guerra. Como não havia igreja nem padre em Ziguinchor, Barreto “levado pelo amor do bem público, convidou os habitantes daquele presídio a construírem uma pequena igreja; acederam ao convite e prontificaram-se a fornecer cal, pedra e tijolos necessários, gratuitamente. Ao governo cumpria o resto, pagar aos obreiros e cobrir as obras de telha. Ofereceu-se Honório Pereira Barreto para dirigir a construção e adiantar as somas precisas”.

(continua)


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Imagem retirado do blogue ePortuguêse, com a devida vénia
Destroço da estátua de Honório Pereira Barreto no interior da fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22982: Historiografia da presença portuguesa em África (303): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (7) (Mário Beja Santos)