terça-feira, 20 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25860: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte I (Mário Dias / Armor Pires Mota)










Croquis da Op Tridente (1964),  


Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)



Lisboa > Forte do Bom Sucesso > 24 de setembro de 2005 > Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos,  fotografados a 24 de Setembro de 2005, durante o convívio dos Grupos de Comandos do CTIG  (1964/66). 

Da esquerda para a direita: 

(i) sold João Firmino Martins Correia; 

(ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; 

(iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; 

(iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; 

(v) fur Mário F. Roseira Dias; 

(vi) sold Joaquim Trindade Cavaco 

(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Havia, na região de Tombali, pelo menos dois Pinho Brandão, o Afonso (em Catió) e o Manuel (no Como,  e depois Catió e mais tarde em  Ganjolá). Julgamos que fossem irmãos. Seriam oriundos de Arouca, onde este apelido, Pinho Brandão, é comum.

O Afonso foi morto logo no princípio da guerra,  em 1962/1963, por balantas de Catió, que lhe queriam assaltar (e apropriar-se de) a sua casa. 


Era pai da nossa amiga, tabanqueira, Gilda Pinho Brandão (ou Gilda Brás) (foto à direita, cortesia da própria), filha de mãe fula; foi trazida para Portugal, aos 7 anos, em 1969, passando a viver   numa família de acolhimento.

O Afonso era também do engº agr. Carlos Pinho Brandão, colega, no Instituto Superior de Agronomia / Universidade Técnica de Lisboa,  do nosso grande e saudoso amigo Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014).

O Manuel de Pinho Brandão (o da ilha do Como) foi, a par do Álvaro Boaventura Camacho (Cufar) (cabo-verdiano de origem madeirense), um dos grandes proprietários agrícolas da região de Tombali, e conhecidos produtores (e comerciantes) de arroz... Enfim, seria um dos poucos colonos brancos existentes no território. Resta-nos saber a história do seu passado.

É pena, de facto,  não haver histórias de vida destes homens. Com a ocupação da ilha do Como em 1963, pelo PAIGC, o Manuel terá ido para Catió (vivia lá no tempo do J. L. Mendes Gomes, em 1964) e depois para Ganjolá (segundo o Victor Condeço, 1967). 

Aqui havia um pelotão destacado (e foi lá que morreu o meu primo José António Canoa Nogueira, o primeiro lourinhanense a morrer no CTIG, em 23 janeiro de 1965).

O Manuel terá sido desterrado para a Guiné possivelmente no final dos anos 20 ou princípíos dos anos 30 (ainda não encontrámos fonte segura que comprove este facto). De qualquer modo, naquela época a Guiné e Timor eram os piores lugares de desterro, usados tanto pela República como pela Ditadura Militar.

Há várias referências a esta figura,  o Manuel Pinho Brandão, cuja casa na ilha do Como  ficou popularizada pela Op Tridente, com a reocupação pelas NT  (em janeiro-março de 1964).  O Mário Dias (que foi para a Guiné com 14 anos, na década de 50), ainda o conheceu, pelo menos de vista,  em Bissau.

Vejamos algumas referências a este arouquense, desterrado no sul da Guiné, que era também o celeiro do território, antes do início da guerra.
 
 (i) Mário Dias [ex-fur mil 'cmd',  
Cmds do CTIG, 1963/64] (*)


(...) A designada Ilha do Como é, na realidade, constituída por 3 ilhas: Caiar, Como e Catunco mas que formam na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na maré-cheia essa separação é notória.

Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963.

 As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil

A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. (...)

(...) A tabanca de Cauane, bem como as restantes, estava praticamente destruída assim como a casa do comerciante Brandão, ali bem próxima. 

Meses antes, já a aviação havia actuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como. (...)

(...) Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil. 

Tarefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras. 

Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique. (...)
   
(...) Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, ten cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23h30 do dia 20 de março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. 

Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02h30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas. (...)

(...) Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como. (...)



Guiné > Regiáo de Tombali >  Janeiro de 1964 > Op Tridente >  Desembarque das forças do BCAV 490 na Ilha do Como... Percebse-se, por esta foto, que as praias do Como podiam mter centenas de metro de areal e tarrafo na maré-baixa.

Foto (e legenda): © Armor Pires Mota  (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(ii) Armor Pires Mota [ex-alf mil at inf, 
CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66] (**)

Como, 16 de janeiro de 1964

(...) Ali,  em Cauane, não havia um poço sequer. Só mais longe, a uns trezentos metros, junto à casa do tal Brandão, o único branco que ali vivera, há tempos, onde montara os seus negócios e fizera fortuna. 

Ele casara com a filha da rainha  dos Bijagós e vivia agora  em Catió. O filho,  que diziam ter morrido, andara com os terroristas, o Chiquinho. (...).

(...) Como, 17 de fevereiro de 1964

A missão,  naquela manhãm  era destruir o poço que fovava na tabanca junto ao caminho que já tinha uma história de lutas encarniçadas.

Saímos cedo para criar surpresa. Passámos calmamente por detrás da casa do Brandão, onde já estavam instalados os morteiros para possível apoio (...).

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Notas do editor:

 (*)  Vd. postes de:


16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P356: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25859: Notas de leitura (1719): Breve história da evangelização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continua-se a dar cumprimento a fazer reportório de toda a literatura para que seja alusiva à presença portuguesa na Guiné, a dimensão missionária não podia ser descurada. Recordo ao leitor que a obra magna continua a ser o memorável trabalho do Padre Henrique Pinto Rema intitulado a História das Missões Católicas na Guiné, mas mais recentemente um escol de franciscanos tem vindo a publicar obras, e delas temos feito referência. Mas há investigação espúria, recordo também que já aqui se aludiu em recensão o percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira, um jesuíta que deixou cartas relativas à missão de Cabo Verde entre os anos de 1604 e 1612.

Um abraço do
Mário



Breve história da evangelização da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Já aqui se deu amplo acolhimento à obra magna do Padre Henrique Pinto Rema, História das Missões Católicas na Guiné, dela até preparei um resumo para um livro que tenho em preparação sobre os textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. Mas também não se pode descurar outras iniciativas como esta Breve História da Evangelização da Guiné, da autoria de dois franciscanos devotados a estudos guineenses. Trata-se de uma edição do Secretariado Nacional das Comemorações dos 5 Séculos, datada de maio de 1997. Os autores explicam o significado daquele ano jubilar, tem a ver com a deslocação de D. Frei Victoriano Portuense, há precisamente 300 anos, saiu da sua sede de diocese, na Cidade Velha, na ilha de Santiago, e foi visitar as comunidades cristãs da Guiné; o significado também abrange os 20 anos de existência da Diocese de Bissau.

Começam os autores por elencar as primeiras tentativas de evangelização, mesmo antes da criação da Diocese, em 1533, há prova de que alguém levou a mensagem evangélica a estes povos. Com efeito, o Papa Pio II nomeou Frei Afonso de Bolonho, franciscano, como primeiro responsável do grupo de missionários que partiram para a missão de Guiné. As dificuldades foram inúmeras, estava aceso o conflito entre Portugal e Castela por causa da administração das ilhas Canárias, um problema que só foi solucionado com a celebração do Tratado de Toledo, em março de 1480. Sobre a atividade deste religioso e dos seus 16 companheiros em terras da Guiné nada em concreto se sabe, a documentação é inexistente.

O território dos rios de Guiné foram demarcados a partir da fundação da Diocese da Guiné e Cabo Verde. Pela Bula Pro Excellenti, de 1533, foi criada a Diocese, englobando, além das ilhas de Cabo Verde “o espaço de 350 léguas de terra firme, a começar no rio Gâmbia, junto ao promontório ou lugar de Cabo Verde, continuando até ao promontório ou lugar chamado Cabo de Palmas e rio de Santo André”. Os autores fazem uma descrição dos povos e das regiões da Guiné ao tempo, recordam que os animistas creem no Irã, para eles a verdadeira força espiritual; os muçulmanos estendiam-se principalmente pelo interior, o que facilitou o contacto dos portugueses com as etnias animistas da costa. Contactos que se estabeleceram com os Balantas, Brames, Felupes e Papeis, a um nível comercial. Nesta época os comerciantes portugueses foram-se fixando sucessivamente em Arguim, na ilha de Goreia, Ziguinchor, Cacheu, Bissau e Buba. O nativo africano entendia bem a linguagem do comércio, mas de modo algum aceitava o estatuto de submissão.

No capítulo subsequente, os autores dão conta do que foi a evangelização entre a data da presumível chegada portuguesa à região (1446) até à criação da Diocese, em 1553. Apareciam esporadicamente os padres de visitadores que alimentavam a fé dos cristãos mas diz-se claramente que ao longo de mais de dois séculos a missionação da Costa da Guiné não foi preocupação da Igreja Católica. E daqui os autores transitam para a narrativa das atividades da diocese até à criação da missão contemporânea em 1941. Alertam o leitor para a efémera presença portuguesa em toda a faixa da África Ocidental, explanam as primeiras tentativas de fixação de missionários nas terras da Guiné, recordam os clérigos seculares, os capuchinos franceses e espanhóis e os jesuítas. Alguns pontos são controversos, veja-se este exemplo. Não há notícias da estadia dos Carmelitas Descalços na Guiné, em todo o século XVI, escreve o Padre António Brásio; mas o jesuíta Padre Fernão Guerreiro assegura que nessa época houve missionação na região do Rio Grande de Buba. À cautela, mantém-se a dúvida. É também referido o nome do Padre João Pinto, designado por Padre Jalofo, terá sido o primeiro sacerdote nativo da Guiné. Depois de se fazer referência aos franciscanos, capuchinhos franceses e espanhóis, seguem-se comentários à missão dos padres jesuítas e depois dá-se nota dos franciscanos na Guiné nos séculos XVII e XVIII. Com alguma propriedade, pode falar-se das cristandades de Cacheu, Farim e Geba a partir do século XVII e também está documentada, à época, a comunidade de Bissau e dos Bijagós. É neste contexto que ganha destaque a visita pastoral de D. Frei Victoriano Portuense, ainda no século XVII (recorda-se que ele chegou à diocese em 1688) fez duas viagens ao continente.

O século XVII foi o século da expansão missionária mas o mesmo não se poderá dizer do século XVIII, os autores avançam as hipóteses sobre este decréscimo missionário destacando as ideias do iluminismo. Impõe-se agora uma referência ao clero secular, os autores fazem uma apreciação até aos meados do século XX e dão uma especial ênfase àquele que foi o Vigário-Geral da Guiné, dela nativo, o Padre Marcelino Marques de Barros, iremos de seguida falar desse período.

Encontrou-se num documento um quadro histórico desta fase da missionação e terminamos hoje com este conjunto de datas que podem ajudar o leitor a melhor entender os eventos fundamentais da evangelização:
“Embora desde 1533 esteja criada a Diocese de Cabo Verde, deverá dizer-se, no entanto, que é sobretudo a partir de 1660 (fixação dos Franciscanos portuguese em Cacheu, e posteriormente em Bissau) que a evangelização da Guiné se começa a processar com caráter de suficiente regularidade.
Essa evangelização desenvolveu-se em estilo notoriamente itinerante, ou seja, com alguns poucos pontos de fixação (sobretudo nos hospícios de Cacheu e Bissau), e daí irradiando depois para diferentes pontos do território, com a agravante de que, até meados do século XVIII, a itinerância dos frades se espalhava muito para lá da Guiné-Bissau atual, atingindo a sul as costas da Serra Leoa e a norte as do Senegal. Os inícios da evangelização no Senegal, Guiné-Conacri, Serra Leoa, etc., devem bastante a estes primeiros missionários itinerantes, partindo da atual Guiné-Bissau.
O número dos missionários franciscanos da primeira missão franciscana (1660-1834) foi sempre reduzido, embora permanente, raramente ultrapassando a dezena de frades, espalhados por Cacheu, Farim, Geba, Bissau, Ziguinchor.”

Esta referência foi retirada do blogue Intelectuais Balantas na Diáspora, com a devida vénia.

D. Settimio Ferrazzetta (1924-1999), 1.º Bispo da Guiné-Bissau
Imagem de uma reunião da Associação das Mulheres Católicas Guineenses, em tempos de pandemia
Jovens cristãos e a sua catequista

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 16 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25847: Notas de leitura (1718): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1870 a 1872) (16) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25858: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte X: "Obrigadu, malae" João Crisóstomo!



Torres Vedras > Praia de Santa Rita > 15 de dezembro de 2016 > Eduardo Jorge e João Crisóstomo (Foto de Luís Graça)


Lourinhã > Ribamar > Praia de Porto Dinheiro > Tabanca de Porto Dinheiro > Convívio anual > 18 de agosto de 2017 > Eduardo, Luíse Rui (Foto de Álvaro Carvalho)




Lourinhã > Praia da Areia Branca > 2 de dezembro de 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral (Foto de Luís Graça)




Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > Escola de São Francisco de Assis (ESFA) > Março de 2018 > Da esquerda para a direita, Rui Chamusco, João Crisóstomo e Gaspar Sobral (foto de Rui Chamusco)



1. O nosso amigo Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o Gaspar Sobral, ambos cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra. 

Foi o nosso saudoso Eduardo Jorge Pinto Ferreira (Lourinhã, Vimeiro, 1952 -  Torres Vedras,  A dos Cunhados, 2019) quem mo apresentou, a mim, Luís Graça,  e me falou dos seus projetos em Timor. 

Eu, por minha vez, apresentei ao Eduardo o João Crisóstomo, afinal seu vizinho  (de A dos Cunhados).  O João conheceu o Rui, pelo Eduardo,  e ficou logo entusiasmado com a sua ligação a Timor. Afinal, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!

De Timor Leste o Rui mandou para Portugal as crónicas dessa viagem (a segunda, de cinco já feitas, de 2016 a 2024), que achámos oportuno e relevante publicar no nosso blogue. Trata-se de uma seleção. Elas ajudam-nos a perceber melhor a idiossincrasia timorense, a história recente e passada deste povo a que nos ligam laços linguísticos, culturais e afetivos.

O Rui é  membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malpaca, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário.  Em Timor, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido,nas montanhas de Liquiçá.

Em Dili  costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do luso-timorense Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975) (tinha "apenas" 14 anos...). O pai de ambos foi "liurai", "no tempo dos portugueses".

A menina dos seus olhos (dos três, o Rui, o Gaspar e o Eustáquio) é a Escola de São de Francisco de Assis, de Manatti / Boebau, município de Liquiçá. A escola e as suas crianças da montanha que finalmente podem aprender música e português. Há também um programa de apadrinhamento de crianças em idade escolar.


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


Parte X -   "Obrigadu, " malae" João Crisóstomo!





Dia 08.05.2018, terça feira  - Relatório da Exposião Lameta para conhecimento do João Crisóstomo, em Nova Iorque



O João Telefonou a pedir-me um pequeno texto/relato sobre as exposições “ Lameta”, para ser utilizado, a seu critério, nos seus encontros made in USA. Aqui vai:



João Crisóstomo, Lourinhã, 
2017 (Foto de Luís Graça)

Caro amigo João Crisóstomo

Venho por este meio apresentar-te um relatório sobre a exposição “LAMETA - O Contributo Desconhecido das Comunidades Luso Americanas para a Independência de Timor Leste”.


Depois de 4 exposições já realizadas: Escola Rui Cinati, Escola Amigos de Jesus, Escola São Francisco de Assis, Universidade Nacional de Timor Leste, verificamos, com satisfação, o interesse crescente do povo timorense em conhecer este precioso contributo vindo de outras partes do mundo, tão distantes mas tão presentes e colaborantes no processo de autodeterminação deste jovem país.

E se, em Boebao, nas montanhas que abrigaram tantas lutas, ex-combatentes olhavam avidamente para as fotos que mostravam entidades relevantes do mundo internacional, em Dili, capital da nação, muitos estudantes e professores ficaram a conhecer factos e acontecimentos da história recente para muitos desconhecidos, através desta preciosa coleção. 

Quero destacar a exposição na UNTL no passado dia 4 de maio, onde a “Lameta” e o Grupo de Crianças de Ailok Laran tiveram tão caloroso acolhimento. Reitor da universidade, Diretora do Departamento de Língua Portuguesa, Embaixador de Portugal, vários professores catedráticos, ilustres convidados, e muitos alunos nos felicitaram pelo evento.

Quanto à coleção “Lameta”,  várias entidades, nomeadamente o senhor Reitor, manifestaram o seu apreço dizendo-nos: 

“Isto é um documento muito importante para a história de Timor Leste. É importante que os nossos jovens, muitos indiferentes ao passado, conheçam através dele a sua recente história.”

Nós também temos esta consciência. E, como fiéis depositários (património da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau), tudo faremos por dá-lo a conhecer através de futuras exposições. Talvez, durante a nossa estadia em Timor, ainda possamos fazer mais uma na sede da Cruz Vermelha, em Liquiçá.

Caro amigo, a ti e a todos os que contribuíram ou contribuem para estas nobres causas o nosso preito e gratidão, sabendo de antemão que Deus vos pagará por tudo isso. “Quem dá aos pobres empresta a Deus", e Ele vos retribuirá 100X mais. E tu, João, sabes bem que há sorrisos que não têm preço. São a melhor moeda de troca.

OBRIGADO! THANK YOU! MERCI BIEN! GRAZIA TANTA! MUCHAS GRACIAS! DANKE SHAN!

O B R I G A D U !



Dia 09.05.2018, quarta feira  - De poeta, músico e louco ....


A história e os comportamentos de Felisberto (irmão Beto,  como é vulgarmente chamado) surpreendem-nos dia a dia, a cada instante. 

O Felisberto, ex-prisioneiro do regime indonésio, é um doente do foro psíquico, que merece a atenção de todos devido ao seu estilo de abordagem. De vez em quando tem atitudes violentas, destruindo o que bem lhe interessa, mas ele considera-se um verdadeiro messias, pelo que quando ele aparece já sabemos que vamos ouvir um grande sermão. Fala muito mas pouco ouve, porque se considera o detentor da verdade. E quando assim é, já sabemos o que acontece. A conversa começa a chatear.

Hoje ao pequeno almoço surgiu de novo o tema do Felisberto. Aproveitando a presença do Lito (Carlito), amigo desde a infância do Eustáquio que mora aqui mesmo ao lado, lembraram alguns dos episódios que passaram com o TiBeto. 

Contam os dois amigos que uma vez o TiBeto, passou-se dos carretos como de vez em quando é habitual, e decidiu enterrar dentro da sua casa, mesmo a pegar com a do Eustáquio, todas as imagens que tinha em seu poder. Fez um buraco bem fundo e para lá atirou tudo o que era santo ou santa, tapando bem a seguir para que ninguém pudesse lá ir salvá-los.

 Mas costuma dizer-se que “ o diabo faz a panela mas esquece-se do testo”. O Lito e o Eustáquio bem combinados, decidiram resgatar as imagens soterradas. Enquanto um vigiava o outro ia descobrindo cada santo e, num saco de arroz à maneira, aí ia depositando e escondendo o tesouro. Depois do trabalho completo, o Lito fugiu com o saco às costas, levando o espólio para lugar seguro, nunca descoberto pelo iconoclausta.

Conta também o Lito que uma vez, chamado pelo pregador Filisberto, foi interpelado pelo mesmo, e lhe disse: “disseram-me que tu lês muito a Bíblia. É verdade?"...  E o Lito lhe respondeu: "Sim, é verdade. Todos os dias eu leio a Bíblia. Abro o livro a meio e coloco-a sobre a minha cabeça para ela entrar dentro.” 

O TiBeto, muito admirado, comentou: “Qualquer dia ainda sabes mais do que eu!”

Pois é. Mal suspeita o Filisberto que a gente se ri com estas coisas. Considerando que “de poeta, músico e louco todos temos um pouco...”, penso que o Tibeto tem mesmo necessidade de ajuda. Ainda que ele não o admita, precisa de tratamento psiquiátrico, coisa que por aqui não será fácil de arranjar..




O  Toqué  (em Timor), ou Tokay Gecko.
Copyright (c) 1998 Richard Ling/GFDL
Fonte: Wikimedia Commons
(com a devida vénia...)
Vd. aqui áudios com as vocalizações
deste pequeno réptil
(Wikipedia, em inglês).
O Toqué, sinal de sorte?!...


Hoje vi o “Toquê” pela primeira vez. Este réptil tão respeitado e apreciado em Timor Leste, que devido ao preço inflacionado (os indonésios chegavam a trocar carros por estes lagartos) esteve em vias de extinção, está agora, graças ao programa de proteção por parte do governo timorense, em franca expansão. 

È rara a noite que não oiçamos ao nosso redor o seu canto vigilante: “Toquê!...Toquê!...” Na casa do Anô, mesmo aqui à nossa beira, há uns três ou quatro. E ninguém pense em espantar ou matar estes prestigiosos bichinhos. A sua presença dá sorte e proteção aos da casa.

Pois hoje o Valente apareceu por aqui em direção a casa, e trazia com ele um Toquê e um bonito galináceo. Claro que examinei ao pormenor este exemplar que, em boa verdade, não é nada feio, mesmo para quem não gosta de répteis. Depois de uns momentos de conversa, ajudado pelo Eustáquio como tradutor, o Valente pediu
 licença para se retirar e voltar a casa. 

Apeteceu-me gritar bem alto este desejo profundo que nos invade em relação à família do Valente: 

“ Que o Toquê vos proteja e que Deus, com as nossas ajudas, cuide de vós. Oxalá a vida vos sorria, tal como vós sorris para nós. Que o presente e o futuro possam ser melhores para todos vós”...


Dia 12.05.2018, sábado - Eleições: Ninguém gosta de perder, nem que seja jogar a feijões.


Dia de eleições antecipadas aqui em Timor Leste. A campanha eleitoral decorreu com dignidade, apenas com alguns pequenos incidentes e escaramuças, como em todo lado. 

Com o apelo ao voto vindo de todos os quadrantes religiosos, sociais e políticos adivinha-se uma participação massiva. Vamos a ver como ficará composto o puzle da Assembleia Nacional. Mas bem me parece que quem vencer vai ter que procurar alianças, pois não acredito que, seja quem for, tenha maioria absoluta. Que vença o melhor e que governe bem, é o anseio genuíno desta gente. E que, por falta de governo, Timor Leste não seja privado de programas e ações de desenvolvimento e apoios que muita gente, sobretudo os mais necessitados, estão à espera.

E, já agora, que os futuros governantes, para além das suas competências, tenham aprendido com outros governos que se criticam, cá dentro ou lá fora, a não cometerem os mesmos erros de governação. Este povo bem merece. Todos nós assim desejamos. Que os vencedores sejam suficientemente humildes para pedirem a colaboração dos outros. Que os que perderam sejam suficientemente solidários para participarem e ajudarem na governação. Nem que seja uma “geringonça à portuguesa”.



Dia 13.052018, domingo - Engano!...


Afinal enganei-me. Esta eleições tiveram uma participação massiva, a maior de sempre, e deram a maioria absoluta ao AMP (Aliança de Mudança para o Progresso) liderada pelos antigos presidentes Xanana Gusmão, Taur Mtan Ruak, e Naimori Buckar, presidente do novo partido Kunto.

O Gaspar, homem muito entendido nestas andanças, diz que “até que enfim alguém tem a coragem de dizer as verdades que têm estado ocultas".

Quanto a mim que nada tenho a ver com as eleições em Timor (pelo menos por enquanto), mais uma vez me enganei nas previsões, pelo que peço imensa desculpa. Vai haver governo sem geringonça nenhuma, cumprindo a vontade do voto popular que é quem mais ordena. Governe quem governar, que façam um bom trabalho em prol do desenvolvimento e do bem estar deste povo.




Dia 14.05.2018, segunda feira  - “ Que grande galo!...”


É um galo do caraças!... Logo cedinho, bate três vezes as asas, enche bem de ar o peito...e aí vai: Có-có-ró-có-có!.... Desafia os outros todos da redondeza, que em resposta cantam também alternadamente. Mas a ele ninguém o bate! “O nosso galo é bom cantor!”

Este galináceo veio das altas montanhas de Liquiçá, trazido pelo Abílio, o construtor da nossa escola em Boebau. Creio que não veio para aqui para ser cantor, mas sim para ser imolado e comido. E, se não fora eu, com certeza que já não estaria na terra dos vivos. 

Quando vim a saber que estava pronto para ser sacrificado, pedi com fervor para não ser morto, pelo menos enquanto eu aqui estiver. Fui atendido e por isso cá temos o nosso galo cada manhã, despertando-nos e dando graças pelo dia que aí vem. Não falha. E eu até já acho que ele faz isso para me agradecer a vida.

E no meio de tanta cantoria, há um descontrole inexplicável. Há galos que já cantam a qualquer hora do dia, não sei se enganados por alguém. Até o cantar dos galos já não é o que era. Talvez a luz artificial os confunda e já não saibam onde acaba a noite e começa o dia. Mas o nosso galo continua fiel. Que grande galo!...


Dia 15.052018, terça feira  - “Tenho medo...”


É a primeira vez que ouço esta expressão ao Eustáquio. E por isso quis saber mais sobre o seu temor. Então é assim. O Gaspar, muito atarefado com as lides de registos do terreno da Escola de São Francisco em Boebau e com o registo Da ASTILMB e da escola que lhe pertence, tem vindo a insistir que precisa urgentemente de ir a Liquiçá e a Boebau para serem assinados os documentos necessários para a legalização. 

Por várias razões, a mais plausível é ter estado a decorrer a campanha eleitoral, esta ida ainda não foi concretizada. Ontem, já passados dois dias das eleições, pensava o Gaspar poder viajar até às montanhas, e de novo insistia com o generoso irmão, porque o tempo aperta, porque assim, porque assado. Foi quando o irmão Eustáquio desabafou e disse: 

“Tenho medo!...”

“Tens medo de quê?”, perguntou o Gaspar.

E então veio a explicação mais compreensível do mundo, que nos deixou sem palavras. Desde há uns tempos que grassa por Timor e sobretudo nas cidades e arredores pequenos grupos aqui chamados Rama Ambon  (também conhecidos pelos grupos da fisga) que, ao entardecer ou já de noite, se escondem onde podem e atacam os transeuntes que lhes interessam,  lançando um tipo de setas com intenção de ferir e de matar. 

Já não são os primeiros que têm de ser assistidos no Hospital Guido Valadares, em Dli. Conta-se até que ainda há pouco, um jovem atingido na zona do coração, ao lhe retirarem a seta do crime, se esvaziou em sangue acabando por morrer. O Eustáquio tem medo que, dois dias depois do ato eleitoral, haja pelos caminhos que têm de percorrer alguns grupos destes que se queiram vingar dos resultados obtidos.

Claro que não houve resposta. Simplesmente silêncio e aceitação. A viagem será feita quando houver condições de confiança e segurança.

Mas hoje, dia 15 pelas 12 horas, dei-me conta do movimento de preparação das bagagens e do “motor”. Estava decidido que iriam partir até Liquiçá, seguindo logo que possível para Boebau. Boa viagem amigos, e que Deus vos acompanhe...

Nota: Agora percebo porque é que nunca me deixam sair sozinho ao escurecer ou durante a noite. Tenho realmente verdadeiros amigos.


Dia 17.05.2018, quinta feira - A miscigenação


Quem andar à procura de um rosto verdadeiramente timorense vai ter bastantes dificuldades em encontrá-lo. Aqui como em qualquer outra parte do mundo, as influências da globalização fazem-se sentir também na caracterização sobretudo das faces. 

A miscigenação é um fenómeno comum. E é com facilidade que nos cruzamos todos os dias, pelo menos nas cidades, com os rostos mais diversos: brancos, negros, mestiços; portugueses, chineses, australianos, angolanos, cubanos, indonésios, japoneses, etc... 

Neste momento Timor é uma amálgama de raças e de rostos com a maior diversidade possível. A tendência para o rosto asiático, devidamente colorida em café chocolate, é a mais notada. Mas nas montanhas, onde as influências são menos notadas, ainda há rostos que indiciam o verdadeiro retrato de um timorense do leste, possível de encontrar também nos timorenses do oeste, na parte ocidental da ilha.

Seja como for, não consigo imaginar o verdadeiro rosto timorense sem o sorriso aberto, carregado de simpatia, respeito e hospitalidade. Tudo o mais vem de outros lados, doutros países, de outros continentes com virtudes e defeitos que, em policromia e sincronia, fazem deste país uma terra encantadora e com um futuro promissor. Basta que nos aceitemos e respeitemos uns aos outros. Não sou defensor da “raça pura”, mas aprecio o que é genuíno.


Ausência e Presença


Ainda sou do tempo (década de 50) em que partir para um país longínquo como a Índia, Timor, Argentina, Brasil, etc) era considerado como o último adeus. Lembro-me da partida e da despedida da família do Tio Augusto para a Argentina nos começos dos anos cinquenta. Chorava-se de um lado e do outro porque se pensava que nunca mais nos iríamos ver. Ausência para sempre!...

Sessenta a setenta anos passados, eis que tudo se altera. As viagens aéreas, as facilidades de deslocação, os novos meios de comunicação, os facebooks, os emails, os whatsapps, os telemóveis, e tudo o mais criaram pontes de união, contactos, presenças constantes nas nossas vidas. 

Hoje em dia as distâncias não metem medo a ninguém. De manhã em Singapura, à noite em Lisboa. O que é agora ausência, torna-se mais tarde presença. Ou então podemos dizer que não há ausência nem presença, porque embora opostas, ambas estão sempre presentes. São imanentes.

E começo a pensar em coisas do outro mundo, da outra vida. Será que já estamos antecipando a experiência? Será que quando deixarmos este corpo que nos suporta a nossa presença é uma presença ausente, mas que nem por isso será menos importante na vivência da nossa outra vida? Não me incomoda nada se assim for. E então se essa vida futura for o cumprimento da promessa e o ponto de chegada, a plenitude da vida cristã, melhor ainda. Assim o creio e espero.


(Continua)

(Seleção, alguns dos substítulos, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Guiné 61/74 - P25857: Parabéns a você (2301): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

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Nota do editor

Último post da série de 18 de Agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25853: Parabéns a você (2300): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira e esposa do nosso editor Luís Graça

domingo, 18 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25856: Humor de caserna (69): Na Op Tridente, entre ferozes combates, também havia lugar para a boa disposição e até para se fazer uns piqueniques na praia, com uns bons nacos de vitela, uma boa perna de cabrito ou uns ovos mexidos de tartaruga (Excerto de Armor Pires Mota, "Tarrafo", 1965, pp. 52/53)


Guiné > Região de Tombali >  NRP Fragata Nuno Tristão > 14 de janeiro de 1964 > A caminho da ilha do Como, a "ilha maldita".
Foi utilizada em apoio de fogo e posto de comando das forças empenhadas na Operação Tridente (jan-mar 1964)  para reocupação da ilha de Como.



Guiné > Região do Oio > Jumbembem >c. 1964/65 > CCAV 488 / BCAV 489 (Bissau, Ilha do Como, Jumbembem, 1963/65) > A padaria


Fotos (e legendas): © Armor Pires Mota  (201). Todos os direitos [Edição e legendagem complementar : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Armor Pires Mota, que nos honra com a sua presença na Tabanca Grande,  tem no nosso blogue 100 referências. Para além de ter sido camarada nosso, é um hoje um escritor consagrado, com cerca de 3 dezenas de títulos, entre crónica, poesia, romance e ensaio, um parte dos quais sobre a sua experiência humana e operacional  no T0 da Guiné, entre junho de 1963 e junho de 1965. 


Alguns dados biográficos do autor:

(i) nasceu a 4 de setembro de 1939, em Águas Boas, freguesia de Oiã, Olivceira do Bairro;

(ii) estudou no Seminário de Aveiro, tendo chegado a cursar teologia;

(iii) abandonou a carreira eclesiástica, em 1961, ano em que revelou o seu talento lietrário com o livro Cidade Perdida;

(iv) enquanto frequentava o ensino liceal em Sangalhos, foi chamado a cumprir o serviço militar;

(v) foi mobilizado para a Guiné como alferes miliciano, em 1963, sendo alferes miliciano  da CCAV 488/BCAV 489 (Bissau, Ilha do Como, Jumbembem, 1963/65);

(vi) ainda na Guiné começou a publicar no Jornal da Bairrada o seu diário de guerra, sob a forma de crónicas, que, em 1965, iiria reunir em livro, Tarrafo, que a censura mandou rapidamente retirar do mercado (a guerra é retratada com demasiada crueza);

(vii) em 1974, tornou-se pequeno empresário, depois de trabalhar em várias empresas (Caves Aliança e Handy), mas continuou a escrever, colaborando em diversos jornais e revistas. (Fonte: adapt de Palimage)

Alguns dos seus melhores livros, além de Tarrafo - Crónica de Um Alfe5rs na Guiné (2013): A Cubana que Dançava Flamenco (2008); Estranha Noiva de Guerra (2010).



2. Em  Tarrafo: crónica de uma guerra (edição de 1965)  ele relata, na primeira pessoa do singular, o seu quotidiano como alferes miliciano, da CCAV 488/BCAV 489 (1963/65), primeiro na região do Oio (parte 1), depois na Ilha do Como, durante a Op Tridente (parte 2) e por fim na região de Farim (parte 3). Ninguém até então, como combatente, tinha tido a ousadia de o fazer, combater, escrever e publicar no jornal da terra,

Cotejámos, em tempos, as duas edições de Tarrafo (1965 e 1970):  a nossa preferência foi, inequivocamente,  para a primeira, para a sua escrita espontânea, potente, telúrica, de cronista de primeira água, sem autocensura, que voltou a ser publicad na íntegra na Palimage (dem 2013).

Na edição de 1970, revista, o autor foi obrigado a aceitar  os "cortes" impostos pelos censores da época. A 2ª edição (autorizada) perde em vigor, garra, frescura, autenticidade. 

Uma e outra estiveram esgotadas durante anos. Por isso já aqui publicámos, com a devida autorização do autor,  uma parte de Tarrafo [imagem da capa, no lado direito; edição de 1965].


3. Segundo o nosso camarada Mário Dias, outro cronista da Op Tridente, a luta pela reocupação da Ilha do Como travou-se entre 14 de janeiro e 24 de março de 1964. A ilha, onde não havia qualquer autoridade administrativa portuguesa, fora  ocupada pelo PAIGC logo em 1963.

(...) As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

"Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha". (...)


Reproduzimos hoje duas páginas deliciosas da edição de 1965 (pp. 52/53), em que o Armor Pires Mota também revela o seu talento como humorista... Afinal, no decurso da Op Tridente, entre ferozes combates, também havia lugar para a boa disposição e até para se fazer uns piqueniques, com uns bons nacos de vitela,  uma boa perna de cabrito ou uns ovos mexidos de tartaruga...Nem tudo foi só guerra na ilha do Como que o PAIGC, com a sua habitual lata, chegou a proclamar como território da República Independente da Ilha do Como.





E, às vezes, até dá para rir.

              − Agarra! Pega essa!


Fonte: In: Armor Pires Mota: Tarrafo: crónica de guerra. Aveiro, 1965, edição de autor (livro retirado do mercado, por ordem da censura), 
pp. 52-53. Excerto da parte 2 [Operação Tridente, Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964].  Cortesia do autor.

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Guiné 61/74 - P25855: Facebook...ando (61): "Soldado Português", poema de Delfim Silvestre (1)

Desconhece-se o autor do painel de azulejos que representa a partida, no T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, de um contingente militar com destino a África.


Soldado Português

Lembras Maria,
Como tudo aconteceu?

O dia em que ele partiu
Naquele cais da saudade
Para uma nova realidade
Que mal podia acabar.
Tinhas lhe passado a roupa
Que ele trouxera da tropa
E estava agora a envergar.

Era um belo soldado
O que olhavas fardado
A entrar para o navio
Ele partia sorridente
Era um sorriso diferente
Que te causou calafrio.
Ficaste em terra a acenar
Já ia no alto mar
E tu de lenço na mão
Acenavas sem parar
Esse barco a navegar
Com os filhos da nação.

Deixavam a sua terra
Para uma outra, em guerra
Que eles não conheciam
Mas obrigados partiam…
Tanto tempo se passou
O soldado não voltou
E continuavas a esperar
O amor que então partira
E que jamais regressara
Morrendo no ultramar.

Hoje olhas com amargura
Para aquela sepultura
Uma, outra e tanta vez
Manténs no rosto marcado
Saudades do teu amado
O soldado português.
Lembras Maria?

Autor:
2024

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Notas do editor:

- Delfim Silvestre é um velho colega de trabalho e amigo que conheço há muitos, muitos anos.
- Desde muito novo ligado a associações de juventude, cedo mostrou inclinação por tudo o que fosse cultura, desde música, desenho, escrita, entre outras manifestações.
- Tem já publicados alguns livros de poesia e quase diariamente escreve no seu facebook.
- Tendo sido militar, a sua idade permitiu-lhe no entanto escapar à guerra que nos afligia ainda nos anos 70. Não deixa mesmo assim de mostar alguma sensibilidade por quem, como ele diz e bem, foi para aquela guerra obrigado. Do nosso grupo de cinco colegas de secção, dois foram para a Guiné e um para Angola.
- Tendo lido este seu poema dedicado a uma "Maria" que viu o seu amado ir e não voltar da guerra, pedi-lhe para publicar no nosso blogue ao que ele amavelmente acedeu

Último post da série de 7 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25722: Facebook...ando (60): Fotos do A. Marques Lopes (1944-2024): viagem no T/T Niassa, e chegada a BIssau, em maio de 1968, para a segunda parte da comissão, (CCÇ 3, Barro, 1968/69)

Guiné 61/74 - P25854: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (31): "A luz era azul"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


A luz era azul

A luz do sol era azul... lembro-me como se fosse hoje, a luz azul azulava os claustros, as caras e o sentir. Imaterial, pálida e fria.

As grandes janelas filtravam a luz azul que entrava dentro de nós como chuva miudinha. Pela vida fora senti sempre um arrepio, ao recordar essa luz azul e fria.

As batinas negras dos jesuítas eram azuis e frias… frias e azuis como os olhos, a alma e a sombra. A alma não era, nessa altura, apenas designação académica, por isso ela punha os braços de fora e estrangulava a minha frágil personalidade de adolescente, sem sexo nem liberdade.

Se Deus existisse e fosse justo teria poupado Ignacio de Loyola à mística cristocêntrica e ter-lhe-ia dado Catarina, Germana ou Leonor. Se Deus existisse e fosse humano teria posto A Freira no Subterrâneo dentro da pureza dos meus lençóis, aquecidos de saudade e vazio azul e frio.

A saudade excitava-me, vivia-me de dia e adormeciame de noite. Saudade do Caminho Novo, da minha fogueira quente e vermelha, do meu sol vermelho e quente, do meu campo, do meu rio, da minha noite de estrelas e luar.

A luz azul e fria reacendeu-se ao fim de quase meio século e eu tive medo. A imposição do azul desfaz as formas e os sons e remete para a cidade da morte.

Discordo de Kandinsky no movimento do azul para o infinito solene e metafísico a caminho da eternidade tranquila. E a culpa foi daquela luz azul e fria.

O medo do azul abre as portas do Inferno e mostra lá dentro a coragem a arder. Sem coragem não há saudade, último reduto da liberdade. Coragem, liberdade, saudade inverteram as horas e perderam o tempo. Correm agora fora das veias, à velocidade de uma luz fria e azul, azul e fria.

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Nota do editor

Último post da série de 11 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25831: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (30): "Impunidade e justiça"

Guiné 61/74 - P25853: Parabéns a você (2300): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira e esposa do nosso editor Luís Graça

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Nota do editor

Último post da série de 17 de Agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25849: Parabéns a você (2299): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apont Met da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)