1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2013:
Queridos amigos,
Mais uma fotografia descoberta na Feira da Ladra, uma imagem de todos conhecida.
Primeiro entretive-me com a singularidade do que a câmara registou, uma autêntica câmara clara, seguramente ainda anos 1950. E recordei-me de uma peripécia ali vivida, algures em Novembro de 1991, um médico colérico que fez um aranzel para me explicar que trabalhava em condições muito deficientes (o que saltava à vista, nem era preciso ter entrado no bloco operatório) e que depois serenou, acabámos por jantar juntos, tivesse havido mais tempo e teríamos ficado amigos.
Quando vemos uma fotografia, há sempre duas histórias diferentes, a minha foi esta.
Um abraço do
Mário
Hospital de Bissau: não há duas memórias iguais
Beja Santos
Encontrei esta fotografia num dos meus mais prestáveis fornecedores, o Eduardo Martinho, comerciante da Feira da Ladra. Sei muito bem que no blogue este hospital aparece repetidas vezes, mas tenho razões fundadas para a distinguir por uma razão estética e por uma razão ética. A estética prende-se com a luminosidade, aquele recorte de alvura que se espraia pela varandas do primeiro andar. Terá sido tirada ainda nos anos 50, veja-se um pouco da carripana, um modelo que nenhum de nós encontrou a circular. Um piso arranjado, canteiros ajardinados, não há um papel no chão, tudo cheira a novo, um hospital assim era um antro de respeitabilidade. É uma luz tão convincente que o olhar, numa segunda mirada, reconhece as janelas desenhadas a branco.
A razão ética tem a ver com uma experiência que ali vivi, salvo erro em Novembro de 1991. Andava afobado a preparar guiões para os programas que eram emitidos regularmente uma vez por semana “Um milhão de consumidores”. O programa em causa que me levara ao Hospital Simão Mendes era preparar com um médico que seria entrevistado sobre a importância da lavagem das mãos e dos espaços de confeção de alimentos para evitar doenças. Fora-me indicado um médico, comparecia ao encontro, vi animais a cirandar no adro, a refocilar no lixo, vi pessoas com colchões às costas, e seguramente familiares doentes que traziam fogareiros para cozinhar refeições, o hospital já estava na penúria, dava assistência médica e enfermagem, o resto estava por conta do doente e família. Esperei pelo menos duas horas, foi tempo que deu para examinar o sofrimento, a indignidade, a total ausência de direitos dos doentes. O médico recebeu-me numa sala vazia, reduzida a um arremedo de secretária e duas cadeiras partidas, lá nos equilibrámos. O médico estava muito crispado, falei-lhe do programa televisivo e do que se pretendia do seu depoimento, a ser registado ou ali ou nos estúdios da RTP Bissau. Abruptamente, o rosto ficou contorcionado e fez-me um discurso apoplético, parecia impossível não ter percebido que estava há mais de 24 horas no banco operatório onde praticamente faltava tudo, os colegas tinham-se raspado, estava esgotado, era uma imprevidência deixar um profissional de saúde entregue a si próprio, à fome e ensonado. Só acalmou quando lhe procurei fazer compreender que nada sabia da situação, o seu nome fora-me indicado por um colega, seguiu-se um longo queixume sobre as carências da vida de médico, a falta de dinheiro, a falta de estímulos, trabalhar naquelas condições degradantes, ver morrer pela ausência de meios, etc. E acordou-se dar-me o apontamento para a televisão, no dia seguinte, o que aconteceu.
E aceitou jantar comigo, na Pensão Central. Estudara e diplomara-se na RDA, já perdera as esperanças de exercer clínica, não tinha incentivos para a formação contínua, e não passava fome porque colaborava em vários projetos da Organização Mundial de Saúde. Tenho impressão que já falava meio a dormir, felizmente alguém tinha ali um transporte e fomos levá-lo a casa, ali em Santa Luzia.
Juro que foi o que me ocorreu quando comecei a olhar esta fotografia com um conteúdo aparentemente banal, e depois das razões ética e estética fiquei a pensar como sofrem os doentes que ali entram, que nada sabem de sistemas de saúde como o nosso, nem de taxas moderadoras nem de listas de espera, nem de medicamentos genéricos.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11908: Memória dos lugares (243): Núcleo Museológico Memória de Guileje - Parte II (Carlos Afeitos, ex-cooperante, 2008/2012)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Guiné 63/74 - P11964: Fotos à procura... de uma legenda (23): A pretexto do Dia Mundial da Fotografia, três fotos notáveis do Amílcar Ventura, residente em Silves e ex-Fur Mil Mec Auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74)
Foptos do álbum dfe Amílcar Ventura, ex-Fur Mil Mec Auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74), natural de (e residente em) Silves.
Fotos (e legendas): © Amilcar Ventura (2009). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]
1. Comemorou-se, no passado dia 19 do corrente, o Dia Mundial da Fotografia. O nosso blogue tem publicado notáveis fotos da guerra colonial da Guiné, cobrindo o período de 1961/74, mas também da época pós-independência. Aliás, não há pesquisa nenhuma, no Google Imagens, sobre topónimos (nomes de lugares) da Guiné-Bissau em que não apareçam fotos publicadas no nosso blogue. Dezenas, centenas, milhares... É um espóilio riquissimo que está ao alcance de todos, a começar por todos aqueles que continuam a amar aquela terra e o seu povo. E tudo isso é possível graças ao trabalho de formiguinha de todos nós: autores, editores, colaboradores...
No Dia Mundial da Fotografia, com um atraso de dosi dias, fazemos um apelo a todos os camaradas e amigos que tenham estado na Guiné, e em particular no período da guerra colonial 81961/74), para que façam chegar até nós imagens digilitalizadas das fotografias dos seus álbuns... De preferência com legendas: local, data, unidade ou subunidade, etc.
Hoje (re)publicamos, editadas e melhoradas, três notáveis fotos do Amílcar Ventura, um camarada de quem não temos tido notícias nos últimos tempos...São imagens, dramáticas, já do fim da guerra, na zona leste... Talvez os nosso leitores queiram comentá-las e acrescentar algo mais à sua legenda (**)...
Por outro lado, recordo aqui o recente apelo do fotojornalista português Daniel Rodrigues, prémio World Press Photo 2013 (*)
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Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
~es fotos mnotáveios do Amícláveios do Am,ílcar ventruia (
30 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11888: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (13): Fotojornalista famoso, Daniel Rodrigues, prémio 'World Press Photo 2013', quer fotografar alguns de nós, antigos combatentes, nos sítios originais onde tirámos as nossas melhores fotos no tempo da guerra
31 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11891: De regresso, com o fotojornalista Daniel Rodrigues... As fotos que eu gostaria de poder voltar a tirar (1): Os putos de Candamã, regulado do Corubal (Torcato Mendonça, Fundão, ex-alf mil, Cart 2339, Mansambo, 1968/69)
(**) Último poste da série > 11 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11928: Fotos à procura... de uma legenda (22): Os régulos felupes de Djufunco e os seus banquinhos onde mais ninguém se pode sentar (sob pena de morte!) (José Teixeira)
Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
~es fotos mnotáveios do Amícláveios do Am,ílcar ventruia (
30 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11888: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (13): Fotojornalista famoso, Daniel Rodrigues, prémio 'World Press Photo 2013', quer fotografar alguns de nós, antigos combatentes, nos sítios originais onde tirámos as nossas melhores fotos no tempo da guerra
31 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11891: De regresso, com o fotojornalista Daniel Rodrigues... As fotos que eu gostaria de poder voltar a tirar (1): Os putos de Candamã, regulado do Corubal (Torcato Mendonça, Fundão, ex-alf mil, Cart 2339, Mansambo, 1968/69)
(**) Último poste da série > 11 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11928: Fotos à procura... de uma legenda (22): Os régulos felupes de Djufunco e os seus banquinhos onde mais ninguém se pode sentar (sob pena de morte!) (José Teixeira)
Guiné 63/74 - P11963: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (5): Os movimentos subversivos
1. Quinto episódio das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:
MEMÓRIAS DA GUINÉ
5 - Os Movimentos subversivos
Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia
De acordo com algumas fontes, Nkrumah (Presidente da Nigéria) e Sekou Touré (Presidente da República da Guiné), pouco tempo depois da independência da Guiné Conacry (Novembro de 1958), teriam tido a ideia de criar uma Federação de Estados Unidos da África Ocidental que englobaria a Libéria, a Serra Leoa, a Gâmbia, a Costa do Marfim, o Gana, a Nigéria e a República da Guiné, alargando-se, se possível, à Guiné-Bissau.
Existia, por isso, anteriormente a 1960, interesse dos chefes políticos dos países vizinhos da Guiné Portuguesa que este território se tornasse independente de Portugal. Em Conacry as emissões de rádio incentivavam, já em 1959, a população da Guiné-Bissau a sublevar-se e a não aceitar mais o domínio dos portugueses. Possivelmente em resultado dessa campanha, deu-se em 3 de Agosto de 1959, o primeiro incidente grave no território com uma greve no Porto de Pijiguiti (Bissau) de que resultaram alguns mortos e feridos.
Depois deste acontecimento e a partir de Março de 1960 as notícias sobre a Guiné Portuguesa proliferaram, revelando existir por detrás dos acontecimentos uma organização subversiva com alguma amplitude.
Em Londres, um indivíduo que mais tarde foi identificado como sendo o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, natural da Guiné mas filho de pai cabo-verdiano, distribuiu à imprensa um comunicado da "Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas" que teve alguma divulgação.
O referido Amílcar Cabral aparecia como representante de um agrupamento político que tinha em vista a independência da Guiné e Cabo Verde e que se intitulava "Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde" (PAIGC).
Os dirigentes do PAIGC estavam radicados em Conacry, onde beneficiavam de um bom acolhimento do Governo da República da Guiné e da concessão de todas as facilidades necessárias para a sua actividade subversiva.
Outros movimentos surgiram, de menor dimensão, visando também a independência do território sob administração portuguesa, como foi o caso do Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC) e a União Popular para Libertação da Guiné (UPLG), ambos com sede em Dakar (Senegal).
O Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde acabou mais tarde por ser dissolvido e deu origem à União das Populações da Guiné (UPG). A certa altura ganhou alguma notoriedade o movimento "União dos Naturais da Guiné Portuguesa", com sede também em Dakar, cujo chefe, Benjamim Pinto Bull, era professor de português no Liceu da capital Senegalesa.
Este movimento era reformista mas partidário do diálogo.
Mas o principal movimento subversivo foi, sem dúvida, o PAIGC, que em 1962 apresentou por intermédio de Amílcar Cabral, na Comissão de Curadorias da ONU, uma petição onde, além de pedir a independência da Guiné, declarou que os militantes do PAIGC deveriam ser considerados soldados da ONU pois desempenhavam funções semelhantes às dos "capacetes azuis" que nessa altura se encontravam no Congo.
A partir de 1963 os ataques às forças armadas portuguesas e aos chefes tradicionais que maior dedicação demonstravam a Portugal tornam-se cada vez mais frequentes.
No sul da província, segundo afirmou o Ministro da Defesa Nacional na altura, "grupos numerosos e bem armados, possuidores de certa preparação de guerra subversiva, feita no Norte de África e em países comunistas, penetravam no território nacional numa zona correspondente a 15 por cento da superfície da província".
Segundo o mesmo ministro português, numa entrevista a um jornal de Lisboa, "os grupos provinham e tinham base na República da Guiné". Tendo por apoio um estudo de João Baptista Pereira Neto, no mesmo se refere que "de acordo com numerosos artigos que apareceram na imprensa estrangeira e em especial por algumas entrevistas com Amílcar Cabral, ficou a saber-se que o PAIGC fora fundado em 1956 pelo próprio entrevistado e por Rafael Barbosa, que a paralisação de trabalho verificada em 3 de Agosto de 1959 no Porto de Bissau havia sido decretada por aquele partido e que a passagem da luta política para a acção directa tinha sido decidida durante uma reunião clandestina do partido, realizada em Bissau em 19 de Setembro de 1959".
Na fase inicial o PAIGC seria constituído, de acordo com as palavras de Amílcar Cabral, por pequenos burgueses radicais e membros de organizações operárias e profissionais. Depois de ter mudado radicalmente, a massa de guerrilheiros passou a ser recrutada entre operários e camponeses, na sua maior parte balantas, que eram os que emigravam mais para a República da Guiné e que, devido à sua educação, se tornavam ladrões exímios e que apenas encaram o roubo como desonroso quando o autor é apanhado. Eles conheciam perfeitamente os terrenos pantanosos e rodeados de canais, onde tinham as suas plantações de arroz.
A enquadrar essa massa operária e camponesa estavam principalmente indivíduos jovens que abandonaram a Guiné durante ou após a frequência dos Cursos Liceal ou Técnico, e que depois de prestarem provas durante alguns meses em escolas de guerrilha, eram mandados para os países situados para além da cortina de ferro para aproveitarem das bolsas de estudo postas à disposição do PAIGC para frequência de cursos médios.
Deste modo o PAIGC conseguiu quadros jovens altamente qualificados à escala africana.
Parece que, enquanto a massa era principalmente guineense, os quadros eram essencialmente compostos por jovens cabo-verdianos.
O seu chefe incontestado, Amílcar Cabral, embora nascido em Bafatá era também, como já referi, filho de cabo-verdiano.
Era Engenheiro agrónomo, formado em Lisboa e casado com uma senhora natural da Metrópole, de raça europeia.
De acordo com as pessoas que com ele privavam, tratava-se de um indivíduo de fino trato, vestindo com sobriedade e que falava várias línguas tais como o português, o francês e o inglês.
Estas suas qualidades eram-lhe muito vantajosas nas demoradas viagens que, frequentemente, fazia às capitais de diversos países africanos comunistas e ocidentais.
E devido à sua actividade política e perspicácia, o PAIGC foi ganhando o reconhecimento de muitos países e recebendo auxílio de alguns deles e da O.U.A. (Organização de Unidade Africana).
Segundo Pereira Neto, o PAIGC parece ter sido um movimento firmemente suportado pelos países de leste, em especial pela Rússia e pelos países africanos com especial relevo para a República da Guiné, a Argélia, o Gana, Marrocos e, evidentemente, a O.U.A..
Amílcar Cabral numa viagem ao Norte de África e à Europa Ocidental, em 1965, viagem que teve uma primeira etapa em Argel, afirmou numa conferência de imprensa nesta cidade que: "as forças revolucionárias tinham cerca de 10.000 homens, treinados em Conacry, que recebiam auxílio militar directamente de Sekou Touré, que já dispunham de armas pesadas e que dominavam quase metade (40%) do território da Guiné-Bissau".
Em Abril de 1965, em Londres, pediu à Inglaterra não armas, para que aquele país se não comprometesse, mas abastecimentos, remédios, material escolar e artigos afins e afirmou que poderiam abrir oitenta a cem escolas com três mil alunos.
Não foi todavia em Inglaterra que foi impresso o Novo Livro - 1ª classe, editado pelo Comissão Social e Cultural do PAIGC, mas em Uppsala na Suécia.
Possuo um exemplar desse livro que me foi oferecido por um pára-quedista que, numa das operações militares de que fez parte, ocupou uma escola do PAIGC tendo recolhido diversos documentos dessa escola, incluindo livros.
O livro que possuo era pertença da menina Teixeira e é elaborado totalmente em língua portuguesa.
Transcrevo a seguir a página 24, onde consta o texto intitulado "O Combate".
"O combate"
Fogo! Fogo!
O inimigo foge
Que combate fácil
Em fila, os combatentes voltam à base
Todos os camaradas estão contentes
Vamos copiar: Todos os camaradas estão contentes
Do livro se depreende que Amílcar Cabral e o PAIGC prezavam a língua portuguesa e sabiam que ela seria um óptimo instrumento aglutinador do povo da Guiné e um excelente veículo cultural.
Também no seu apelo aos Portugueses Cabral afirma:
"Os nossos Povos fazem a distinção entre Governo Colonial fascista e o Povo de Portugal. Não lutamos contra o povo português.
Repetimos o que muitas vezes temos afirmado: nós queremos libertar a nossa terra para criar uma vida nova de trabalho, justiça, paz e progresso, em colaboração com todos os povos do Mundo e muito particularmente com o povo português."
Em Março de 1972 elaborou um documento secreto que distribuiu aos quadros do PAIGC, no qual, segundo o seu pensamento, sintetiza o plano português para destruir o seu partido e vencer a luta armada na Guiné. Nele faz referência à invasão da Guiné-Conacry em 22 de Novembro de 1970, de que darei notícias no próximo capítulo.
No mesmo documento parece prever também a proximidade do seu fim.
Transcrevo na íntegra, seguidamente, o referido documento:
As três fases do plano Português
"O objectivo principal do inimigo é a destruição do nosso Partido, porque em África e no Mundo inteiro o seu prestígio e o prestígio dos seus principais dirigentes estão no seu apogeu.
Ele está convencido de que a prisão ou a morte do principal dirigente significaria o fim do Partido e da nossa luta.
Por isso mesmo, o objectivo real dos portugueses na sua tentativa de invasão da República da Guiné (Conacry), em 22 de Novembro de 1970, era o assassinato do Secretário Geral do Partido e a destruição da base na rectaguarda da revolução constituída pelo regime de Sekou Touré.
Numa palavra, destruir o Partido agindo no seu interior.
O plano inimigo far-se-à em três fases:
Primeira fase
Actualmente, muitos compatriotas abandonaram Bissau e outros centros urbanos para se juntarem às nossas fileiras. Nesta ocasião, o General Spínola espera poder introduzir agentes (antigos ou novos membros do Partido) nas nossas fileiras.
A sua tarefa: estudar as fraquezas do nosso Partido e tentar provocações apoiando-se no racismo, no tribalismo, opondo muçulmanos aos não muçulmanos, etc.
Segunda fase
1. Criar uma rede clandestina (penetrando, por exemplo, no Partido e nas Forças Armadas).
2. Criar uma direcção paralela, se possível com um ou dois agentes e alguns dirigentes actuais do Partido (de entre os descontentes).
3. Desacreditar o Secretário Geral, para preparar a sua eliminação no quadro do Partido ou, se a necessidade se impuser, pela sua liquidação física.
4. Preparar a nova direcção clandestina para fazer dela o verdadeiro organismo dirigente do PAIGC.
5. Paralelamente, lançar uma grande ofensiva para aterrorizar as populações dos territórios libertados.
Terceira fase
a) No caso de falhar a segunda fase, tentar um golpe contra a direcção do Partido, fazendo assassinar o seu Secretário Geral.
b) Formar uma nova direcção baseada no racismo e opondo guineenses e cabo-verdianos, utilizando o tribalismo e a religião (muçulmanos contra não muçulmanos).
c) Impedir a luta no interior do País, liquidar os que permanecem fieis à linha do Partido.
d) Entrar em contacto com o Governo Português. Falsa negociação, autonomia interna, criação de um governo fantoche na Guiné-Bissau que seria designado por "Estado da Guiné" e faria parte da Comunidade Portuguesa.
e) Postos importantes estão prometidos pelo General Spínola a todos os que executarem o plano.
Conclusão
O inimigo tentou corromper os nossos homens, mas a esmagadora maioria dos responsáveis contactados não aceitou vender-se, comportando-se como dignos militantes do nosso Partido e contribuíram mesmo para castigar severamente os portugueses que tentaram comprá-los, como foi o caso dos quatro oficiais, próximos colaboradores de Spínola, liquidados no norte do País."
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11939: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (4): O valor estratégico da Guiné e Cabo Verde
MEMÓRIAS DA GUINÉ
5 - Os Movimentos subversivos
Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia
De acordo com algumas fontes, Nkrumah (Presidente da Nigéria) e Sekou Touré (Presidente da República da Guiné), pouco tempo depois da independência da Guiné Conacry (Novembro de 1958), teriam tido a ideia de criar uma Federação de Estados Unidos da África Ocidental que englobaria a Libéria, a Serra Leoa, a Gâmbia, a Costa do Marfim, o Gana, a Nigéria e a República da Guiné, alargando-se, se possível, à Guiné-Bissau.
Existia, por isso, anteriormente a 1960, interesse dos chefes políticos dos países vizinhos da Guiné Portuguesa que este território se tornasse independente de Portugal. Em Conacry as emissões de rádio incentivavam, já em 1959, a população da Guiné-Bissau a sublevar-se e a não aceitar mais o domínio dos portugueses. Possivelmente em resultado dessa campanha, deu-se em 3 de Agosto de 1959, o primeiro incidente grave no território com uma greve no Porto de Pijiguiti (Bissau) de que resultaram alguns mortos e feridos.
Depois deste acontecimento e a partir de Março de 1960 as notícias sobre a Guiné Portuguesa proliferaram, revelando existir por detrás dos acontecimentos uma organização subversiva com alguma amplitude.
Em Londres, um indivíduo que mais tarde foi identificado como sendo o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, natural da Guiné mas filho de pai cabo-verdiano, distribuiu à imprensa um comunicado da "Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas" que teve alguma divulgação.
O referido Amílcar Cabral aparecia como representante de um agrupamento político que tinha em vista a independência da Guiné e Cabo Verde e que se intitulava "Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde" (PAIGC).
Os dirigentes do PAIGC estavam radicados em Conacry, onde beneficiavam de um bom acolhimento do Governo da República da Guiné e da concessão de todas as facilidades necessárias para a sua actividade subversiva.
Outros movimentos surgiram, de menor dimensão, visando também a independência do território sob administração portuguesa, como foi o caso do Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC) e a União Popular para Libertação da Guiné (UPLG), ambos com sede em Dakar (Senegal).
O Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde acabou mais tarde por ser dissolvido e deu origem à União das Populações da Guiné (UPG). A certa altura ganhou alguma notoriedade o movimento "União dos Naturais da Guiné Portuguesa", com sede também em Dakar, cujo chefe, Benjamim Pinto Bull, era professor de português no Liceu da capital Senegalesa.
Este movimento era reformista mas partidário do diálogo.
Mas o principal movimento subversivo foi, sem dúvida, o PAIGC, que em 1962 apresentou por intermédio de Amílcar Cabral, na Comissão de Curadorias da ONU, uma petição onde, além de pedir a independência da Guiné, declarou que os militantes do PAIGC deveriam ser considerados soldados da ONU pois desempenhavam funções semelhantes às dos "capacetes azuis" que nessa altura se encontravam no Congo.
A partir de 1963 os ataques às forças armadas portuguesas e aos chefes tradicionais que maior dedicação demonstravam a Portugal tornam-se cada vez mais frequentes.
No sul da província, segundo afirmou o Ministro da Defesa Nacional na altura, "grupos numerosos e bem armados, possuidores de certa preparação de guerra subversiva, feita no Norte de África e em países comunistas, penetravam no território nacional numa zona correspondente a 15 por cento da superfície da província".
Segundo o mesmo ministro português, numa entrevista a um jornal de Lisboa, "os grupos provinham e tinham base na República da Guiné". Tendo por apoio um estudo de João Baptista Pereira Neto, no mesmo se refere que "de acordo com numerosos artigos que apareceram na imprensa estrangeira e em especial por algumas entrevistas com Amílcar Cabral, ficou a saber-se que o PAIGC fora fundado em 1956 pelo próprio entrevistado e por Rafael Barbosa, que a paralisação de trabalho verificada em 3 de Agosto de 1959 no Porto de Bissau havia sido decretada por aquele partido e que a passagem da luta política para a acção directa tinha sido decidida durante uma reunião clandestina do partido, realizada em Bissau em 19 de Setembro de 1959".
Na fase inicial o PAIGC seria constituído, de acordo com as palavras de Amílcar Cabral, por pequenos burgueses radicais e membros de organizações operárias e profissionais. Depois de ter mudado radicalmente, a massa de guerrilheiros passou a ser recrutada entre operários e camponeses, na sua maior parte balantas, que eram os que emigravam mais para a República da Guiné e que, devido à sua educação, se tornavam ladrões exímios e que apenas encaram o roubo como desonroso quando o autor é apanhado. Eles conheciam perfeitamente os terrenos pantanosos e rodeados de canais, onde tinham as suas plantações de arroz.
A enquadrar essa massa operária e camponesa estavam principalmente indivíduos jovens que abandonaram a Guiné durante ou após a frequência dos Cursos Liceal ou Técnico, e que depois de prestarem provas durante alguns meses em escolas de guerrilha, eram mandados para os países situados para além da cortina de ferro para aproveitarem das bolsas de estudo postas à disposição do PAIGC para frequência de cursos médios.
Deste modo o PAIGC conseguiu quadros jovens altamente qualificados à escala africana.
Parece que, enquanto a massa era principalmente guineense, os quadros eram essencialmente compostos por jovens cabo-verdianos.
O seu chefe incontestado, Amílcar Cabral, embora nascido em Bafatá era também, como já referi, filho de cabo-verdiano.
Era Engenheiro agrónomo, formado em Lisboa e casado com uma senhora natural da Metrópole, de raça europeia.
De acordo com as pessoas que com ele privavam, tratava-se de um indivíduo de fino trato, vestindo com sobriedade e que falava várias línguas tais como o português, o francês e o inglês.
Estas suas qualidades eram-lhe muito vantajosas nas demoradas viagens que, frequentemente, fazia às capitais de diversos países africanos comunistas e ocidentais.
E devido à sua actividade política e perspicácia, o PAIGC foi ganhando o reconhecimento de muitos países e recebendo auxílio de alguns deles e da O.U.A. (Organização de Unidade Africana).
Segundo Pereira Neto, o PAIGC parece ter sido um movimento firmemente suportado pelos países de leste, em especial pela Rússia e pelos países africanos com especial relevo para a República da Guiné, a Argélia, o Gana, Marrocos e, evidentemente, a O.U.A..
Amílcar Cabral numa viagem ao Norte de África e à Europa Ocidental, em 1965, viagem que teve uma primeira etapa em Argel, afirmou numa conferência de imprensa nesta cidade que: "as forças revolucionárias tinham cerca de 10.000 homens, treinados em Conacry, que recebiam auxílio militar directamente de Sekou Touré, que já dispunham de armas pesadas e que dominavam quase metade (40%) do território da Guiné-Bissau".
Em Abril de 1965, em Londres, pediu à Inglaterra não armas, para que aquele país se não comprometesse, mas abastecimentos, remédios, material escolar e artigos afins e afirmou que poderiam abrir oitenta a cem escolas com três mil alunos.
Não foi todavia em Inglaterra que foi impresso o Novo Livro - 1ª classe, editado pelo Comissão Social e Cultural do PAIGC, mas em Uppsala na Suécia.
Possuo um exemplar desse livro que me foi oferecido por um pára-quedista que, numa das operações militares de que fez parte, ocupou uma escola do PAIGC tendo recolhido diversos documentos dessa escola, incluindo livros.
O livro que possuo era pertença da menina Teixeira e é elaborado totalmente em língua portuguesa.
Transcrevo a seguir a página 24, onde consta o texto intitulado "O Combate".
"O combate"
Fogo! Fogo!
O inimigo foge
Que combate fácil
Em fila, os combatentes voltam à base
Todos os camaradas estão contentes
Vamos copiar: Todos os camaradas estão contentes
Do livro se depreende que Amílcar Cabral e o PAIGC prezavam a língua portuguesa e sabiam que ela seria um óptimo instrumento aglutinador do povo da Guiné e um excelente veículo cultural.
Também no seu apelo aos Portugueses Cabral afirma:
"Os nossos Povos fazem a distinção entre Governo Colonial fascista e o Povo de Portugal. Não lutamos contra o povo português.
Repetimos o que muitas vezes temos afirmado: nós queremos libertar a nossa terra para criar uma vida nova de trabalho, justiça, paz e progresso, em colaboração com todos os povos do Mundo e muito particularmente com o povo português."
Em Março de 1972 elaborou um documento secreto que distribuiu aos quadros do PAIGC, no qual, segundo o seu pensamento, sintetiza o plano português para destruir o seu partido e vencer a luta armada na Guiné. Nele faz referência à invasão da Guiné-Conacry em 22 de Novembro de 1970, de que darei notícias no próximo capítulo.
No mesmo documento parece prever também a proximidade do seu fim.
Transcrevo na íntegra, seguidamente, o referido documento:
"O objectivo principal do inimigo é a destruição do nosso Partido, porque em África e no Mundo inteiro o seu prestígio e o prestígio dos seus principais dirigentes estão no seu apogeu.
Ele está convencido de que a prisão ou a morte do principal dirigente significaria o fim do Partido e da nossa luta.
Por isso mesmo, o objectivo real dos portugueses na sua tentativa de invasão da República da Guiné (Conacry), em 22 de Novembro de 1970, era o assassinato do Secretário Geral do Partido e a destruição da base na rectaguarda da revolução constituída pelo regime de Sekou Touré.
Numa palavra, destruir o Partido agindo no seu interior.
O plano inimigo far-se-à em três fases:
Actualmente, muitos compatriotas abandonaram Bissau e outros centros urbanos para se juntarem às nossas fileiras. Nesta ocasião, o General Spínola espera poder introduzir agentes (antigos ou novos membros do Partido) nas nossas fileiras.
A sua tarefa: estudar as fraquezas do nosso Partido e tentar provocações apoiando-se no racismo, no tribalismo, opondo muçulmanos aos não muçulmanos, etc.
1. Criar uma rede clandestina (penetrando, por exemplo, no Partido e nas Forças Armadas).
2. Criar uma direcção paralela, se possível com um ou dois agentes e alguns dirigentes actuais do Partido (de entre os descontentes).
3. Desacreditar o Secretário Geral, para preparar a sua eliminação no quadro do Partido ou, se a necessidade se impuser, pela sua liquidação física.
4. Preparar a nova direcção clandestina para fazer dela o verdadeiro organismo dirigente do PAIGC.
5. Paralelamente, lançar uma grande ofensiva para aterrorizar as populações dos territórios libertados.
a) No caso de falhar a segunda fase, tentar um golpe contra a direcção do Partido, fazendo assassinar o seu Secretário Geral.
b) Formar uma nova direcção baseada no racismo e opondo guineenses e cabo-verdianos, utilizando o tribalismo e a religião (muçulmanos contra não muçulmanos).
c) Impedir a luta no interior do País, liquidar os que permanecem fieis à linha do Partido.
d) Entrar em contacto com o Governo Português. Falsa negociação, autonomia interna, criação de um governo fantoche na Guiné-Bissau que seria designado por "Estado da Guiné" e faria parte da Comunidade Portuguesa.
e) Postos importantes estão prometidos pelo General Spínola a todos os que executarem o plano.
O inimigo tentou corromper os nossos homens, mas a esmagadora maioria dos responsáveis contactados não aceitou vender-se, comportando-se como dignos militantes do nosso Partido e contribuíram mesmo para castigar severamente os portugueses que tentaram comprá-los, como foi o caso dos quatro oficiais, próximos colaboradores de Spínola, liquidados no norte do País."
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11939: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (4): O valor estratégico da Guiné e Cabo Verde
Guiné 63/74 - P11962: Bom ou mau tempo na bolanha (28): O José que já foi "Arroz com pão" (Tony Borié)
Vigésimo oitavo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
A vida de emigrante, nos anos sessenta e setenta do século passado, era uma vida de aventura, de coragem, de sobrevivência e de uma força interior, um pouco fora do normal.
Talvez já tivesse sido dito, mas nunca é demais lembrar, que nesses tempos, o emigrante, salvo raras excepções, era uma pessoa com o mínimo de escola, com alguma visão de prosperidade, espírito aventureiro, geralmente novo e com alguma saude física e moral, e desejoso de ter algo a que pudesse chamar seu.
Quando um emigrante abandonava o seu País, o seu lugarejo, deixava de ver as pessoas que lhe eram queridas, e com quem tinha convivido, deixava de beber a água da sua fonte, deixava de ver a paisagem, que só, com a ausência da mesma, é que começava a notar, o maravilhoso, que tinha deixado para trás. Nessa altura, começava a sangrar por dentro. Ficava triste e chorava perante qualquer contacto, com algo que lhe mostrasse a sua Pátria. A palavra saudade, começava a ter um significado muito importante. Nessa altura tinha que ser muito forte, moral e fisicamente.
Os primeiros anos eram terríveis. A língua, os costumes, o clima e alguma discriminação, eram quase insuportáveis. Demorava alguns anos até tornar-se um natural habitante do País, que escolhia para emigrar. Nesse período de tempo, se não tinha algum suporte humano, motivação interior e alguma sorte nos seus contactos, o emigrante não resistia, e a sua maior alegria era arranjar dinheiro para comprar um bilhete de passagem, e regressar definitivamente ao seu País.
Dada a sua pouca instrução escolar, tinha que se sujeitar aos trabalhos mais pesados e sujos. Enfim, tinham que fazer aquilo que os naturais não queriam fazer. Se a fase dos três ou quatro anos passasse, iríamos ter um emigrante com algum sucesso. Os filhos iriam estudar, pois queriam dar-lhes aquilo que eles próprios não tiveram. Geralmente construíam casa no seu País de origem, iriam ver essa casa nas férias, mas definitivamente, nunca regressariam, pelo menos os que tivessem atravessado o Atlântico.
Isto, salvo raras excepções.
Como por exemplo, o José, cujo nome de guerra era “Arroz com Pão”, o tal cabo do rancho, que conviveu com o Cifra, em cenário de guerra por quase dois anos, a quem o Cifra roubava pão quase todos os dias, e que era oriundo das terras da beira-mar, duma aldeia que pertencia à vila da Murtosa, e que quando regressou a Portugal, casou, e como tinha parentes nos Estados Unidos, na procura de melhor vida, deixou a sua bateira, onde andava às enguias, que vendia, e que o ajudava a sobreviver e a pôr alguma comida na mesa de sua casa.
Era muito trabalhador, sabia controlar todas as suas economias, pois tinha aprendido muito como cabo do rancho, na sua estadia em cenário de guerra. Tinha alguma ambição e veio para os Estados Unidos, sozinho, à frente, a esposa veio ter com ele mais tarde. Veio na altura em que também veio o Cifra, que agora se chamava única e simplesmente Tony. Viviam na mesma cidade, junto ao rio Passaic, conviviam e continuaram com a sua amizade. O “Arroz com Pão”, cujo verdadeiro nome era José, com a chegada de sua esposa, trabalhando os dois, assim que puderam, compraram uma casa de quatro famílias, já velha, repararam-na, alugaram as quatro famílias, construíram uns aposentos na cave, onde sempre viveram e onde criaram dois filhos.
Em Portugal, nuns terrenos que herdaram dos pais, construíram uma vivenda, último modelo, mobílias novas e lindas, garagem, jardim, com o nome deles na frente em azulejo, sobre a bandeira de Portugal e dos Estados Unidos, para que quem não soubesse, vendo a legenda e as bandeiras nos azulejos, ficassem a saber que eram emigrantes lá nos Estados Unidos, mas o seu coração e a sua casa estava cá no seu Portugal. Nos terrenos atrás da casa, fizeram uns anexos, que no futuro seriam uns currais para algum gado, ou qualquer outra coisa.
Quando vinham de férias a Portugal, pouco usavam a vivenda, pois estava tudo tão arrumadinho e limpo, que entendiam que não deviam sujar, nem usar. Ocupavam-se em pintar, ou reparar qualquer parte do muro que circundava a vivenda, que estivesse menos bonito com a chuva e o vento que durante a sua ausência tivesse sofrido algumas mazelas, ou em limparem e plantar novas flores no jardim, e lá se arranjavam como podiam nos anexos, usando a vivenda o menos possível. Quando regressavam de férias, e o Tony, lhe perguntava como correram, diziam:
- Não tivemos tempo para nada, há lá tanto trabalho para fazer, a casa está tão linda, que até temos pena de a sujar, só queria que vocês vissem, como temos lá, uma casa tão linda, e o jardim, é mesmo um sonho!
Entretanto os filhos foram estudar, casaram, constituíram família, têm os seus empregos, estão bem na vida, e com um futuro prometedor nos Estados Unidos. Eles decidem, e muito bem, regressar a Portugal. Levam um “contentor” dos grandes, com muitas coisas que achavam que seriam úteis, como por exemplo a mobília do quarto e da cozinha, que lhe tinham custado uma fortuna há trinta anos, uns sofás, muito bons, do melhor, que estiveram sempre cobertos com um plástico, para não se sujar, uma mesa e umas cadeiras, que tinham trazido de uma casa que ajudou a remodelar, de uns senhores muito ricos, numa cidade das montanhas, alguns garrafões de vinho vazios, que guardaram por toda a vida, e entendiam que depois de beber o vinho não se devia pôr fora o garrafão vazio, pois também os tinham pago.
A vivenda nova, último modelo, está completa, mobília e tudo, já não há lugar para mais nada. Então, decidem pôr todo o recheio do “contentor” nos anexos. Arranjar as paredes, pôr azulejos, luz eléctrica, cimento no chão e na frente, tudo muito arranjadinho, e vão viver para lá. A vivenda nova, último modelo, era boa demais para lá viver. Fica lá tudo, arrumadinho, limpinho e fechado, só para mostrar aos amigos, ou alguma visita, que tenha vindo dos Estados Unidos. Pois tinham orgulho em mostrar que tinham uma casa linda em Portugal.
Vivem nos anexos.
Com o tempo, vão fazendo mais arranjos, já têm um bom quarto de banho, com chuveiro, frigorífico dos bons, com duas portas, a televisão que levaram não trabalha, compraram outra nova, e um móvel, que também servia de bar, para pôr a televisão por cima, puseram ladrilhos dos grandes no chão da cozinha, ladrilhos dos pequenos nos anexos, excepto no quarto, onde mandaram pôr uma carpete, daquelas fofinhas, como se via na televisão. Na frente dos anexos, uma cobertura ondulada, em plástico, azul, que dava um certo conforto, e mais ao lado um limoeiro onde penduraram uma gaiola com um melro, onde até vinham comer outros pássaros, fazendo-lhe lembrar o periquito que tinha tido na então província da Guiné, onde tinha passado dois anos em cenário de guerra, que assobiava que era um assombro, já os conhecia, quando lhe davam algumas minhocas, pois nos seus tempos livres, andavam às minhocas para o melro, nas terras vizinhas. Tudo isto era bom, mas andavam um pouco tristes, não era bem tristeza, era qualquer coisa, que os fazia sentir menos felizes.
- Que raio, sempre que regresso de apanhar minhocas, tenho que sacudir e limpar os pés, antes de entrar nos anexos, pois está tudo tão limpinho e arrumadinho! - Dizia o José, inconformado com esta nova situação.
Às vezes tinham mesmo que se descalçarem, quando regressavam de apanhar minhocas para o melro. Dentro de casa havia sempre aquela sensação que não deviam ir para o quarto sem primeiro lavarem e limparem os pés, pois a carpete era nova, podiam ter mandado pôr um plástico por cima, mas custava mais dinheiro, e o homem que instalou a carpete disse que não se usava.
Depois de muito pensarem, chegaram à conclusão de que os anexos estavam bons demais para lá viverem. Vão viver a maior parte do tempo na bateira velha, que tinham antes de emigrar, onde puseram uns paus a segurar a antiga vela, onde se recolhem, nos dias em que há chuva, e ao lado, nos dias em que não chove, fazem uma fogueira com caruma dos pinheiros e assam umas sardinhas ou uns carapaus, que comem com um naco de pão, igual ao que o Cifra, que agora se chama Tony, ia roubar, na cozinha do aquartelamento, na então província da Guiné, ao Arroz com Pão, que agora ainda se deve de chamar José, bebendo uns goles de vinho pela mesma garrafa, e limpando de seguida a boca nas costas da mão, tal qual como faziam antes de emigrarem, sendo totalmente felizes neste humilde ambiente.
Esta é a homenagem do Cifra, que agora se chama Tony, ao Arroz com Pão, que agora ainda se deve de chamar José.
Oxalá que sim!.
Tony Borie,
Agosto de 2013
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11948: Bom ou mau tempo na bolanha (27): A velha diligência (Toni Borié)
A vida de emigrante, nos anos sessenta e setenta do século passado, era uma vida de aventura, de coragem, de sobrevivência e de uma força interior, um pouco fora do normal.
Talvez já tivesse sido dito, mas nunca é demais lembrar, que nesses tempos, o emigrante, salvo raras excepções, era uma pessoa com o mínimo de escola, com alguma visão de prosperidade, espírito aventureiro, geralmente novo e com alguma saude física e moral, e desejoso de ter algo a que pudesse chamar seu.
Quando um emigrante abandonava o seu País, o seu lugarejo, deixava de ver as pessoas que lhe eram queridas, e com quem tinha convivido, deixava de beber a água da sua fonte, deixava de ver a paisagem, que só, com a ausência da mesma, é que começava a notar, o maravilhoso, que tinha deixado para trás. Nessa altura, começava a sangrar por dentro. Ficava triste e chorava perante qualquer contacto, com algo que lhe mostrasse a sua Pátria. A palavra saudade, começava a ter um significado muito importante. Nessa altura tinha que ser muito forte, moral e fisicamente.
Os primeiros anos eram terríveis. A língua, os costumes, o clima e alguma discriminação, eram quase insuportáveis. Demorava alguns anos até tornar-se um natural habitante do País, que escolhia para emigrar. Nesse período de tempo, se não tinha algum suporte humano, motivação interior e alguma sorte nos seus contactos, o emigrante não resistia, e a sua maior alegria era arranjar dinheiro para comprar um bilhete de passagem, e regressar definitivamente ao seu País.
Dada a sua pouca instrução escolar, tinha que se sujeitar aos trabalhos mais pesados e sujos. Enfim, tinham que fazer aquilo que os naturais não queriam fazer. Se a fase dos três ou quatro anos passasse, iríamos ter um emigrante com algum sucesso. Os filhos iriam estudar, pois queriam dar-lhes aquilo que eles próprios não tiveram. Geralmente construíam casa no seu País de origem, iriam ver essa casa nas férias, mas definitivamente, nunca regressariam, pelo menos os que tivessem atravessado o Atlântico.
Isto, salvo raras excepções.
Como por exemplo, o José, cujo nome de guerra era “Arroz com Pão”, o tal cabo do rancho, que conviveu com o Cifra, em cenário de guerra por quase dois anos, a quem o Cifra roubava pão quase todos os dias, e que era oriundo das terras da beira-mar, duma aldeia que pertencia à vila da Murtosa, e que quando regressou a Portugal, casou, e como tinha parentes nos Estados Unidos, na procura de melhor vida, deixou a sua bateira, onde andava às enguias, que vendia, e que o ajudava a sobreviver e a pôr alguma comida na mesa de sua casa.
Era muito trabalhador, sabia controlar todas as suas economias, pois tinha aprendido muito como cabo do rancho, na sua estadia em cenário de guerra. Tinha alguma ambição e veio para os Estados Unidos, sozinho, à frente, a esposa veio ter com ele mais tarde. Veio na altura em que também veio o Cifra, que agora se chamava única e simplesmente Tony. Viviam na mesma cidade, junto ao rio Passaic, conviviam e continuaram com a sua amizade. O “Arroz com Pão”, cujo verdadeiro nome era José, com a chegada de sua esposa, trabalhando os dois, assim que puderam, compraram uma casa de quatro famílias, já velha, repararam-na, alugaram as quatro famílias, construíram uns aposentos na cave, onde sempre viveram e onde criaram dois filhos.
Em Portugal, nuns terrenos que herdaram dos pais, construíram uma vivenda, último modelo, mobílias novas e lindas, garagem, jardim, com o nome deles na frente em azulejo, sobre a bandeira de Portugal e dos Estados Unidos, para que quem não soubesse, vendo a legenda e as bandeiras nos azulejos, ficassem a saber que eram emigrantes lá nos Estados Unidos, mas o seu coração e a sua casa estava cá no seu Portugal. Nos terrenos atrás da casa, fizeram uns anexos, que no futuro seriam uns currais para algum gado, ou qualquer outra coisa.
Quando vinham de férias a Portugal, pouco usavam a vivenda, pois estava tudo tão arrumadinho e limpo, que entendiam que não deviam sujar, nem usar. Ocupavam-se em pintar, ou reparar qualquer parte do muro que circundava a vivenda, que estivesse menos bonito com a chuva e o vento que durante a sua ausência tivesse sofrido algumas mazelas, ou em limparem e plantar novas flores no jardim, e lá se arranjavam como podiam nos anexos, usando a vivenda o menos possível. Quando regressavam de férias, e o Tony, lhe perguntava como correram, diziam:
- Não tivemos tempo para nada, há lá tanto trabalho para fazer, a casa está tão linda, que até temos pena de a sujar, só queria que vocês vissem, como temos lá, uma casa tão linda, e o jardim, é mesmo um sonho!
Entretanto os filhos foram estudar, casaram, constituíram família, têm os seus empregos, estão bem na vida, e com um futuro prometedor nos Estados Unidos. Eles decidem, e muito bem, regressar a Portugal. Levam um “contentor” dos grandes, com muitas coisas que achavam que seriam úteis, como por exemplo a mobília do quarto e da cozinha, que lhe tinham custado uma fortuna há trinta anos, uns sofás, muito bons, do melhor, que estiveram sempre cobertos com um plástico, para não se sujar, uma mesa e umas cadeiras, que tinham trazido de uma casa que ajudou a remodelar, de uns senhores muito ricos, numa cidade das montanhas, alguns garrafões de vinho vazios, que guardaram por toda a vida, e entendiam que depois de beber o vinho não se devia pôr fora o garrafão vazio, pois também os tinham pago.
A vivenda nova, último modelo, está completa, mobília e tudo, já não há lugar para mais nada. Então, decidem pôr todo o recheio do “contentor” nos anexos. Arranjar as paredes, pôr azulejos, luz eléctrica, cimento no chão e na frente, tudo muito arranjadinho, e vão viver para lá. A vivenda nova, último modelo, era boa demais para lá viver. Fica lá tudo, arrumadinho, limpinho e fechado, só para mostrar aos amigos, ou alguma visita, que tenha vindo dos Estados Unidos. Pois tinham orgulho em mostrar que tinham uma casa linda em Portugal.
Vivem nos anexos.
Com o tempo, vão fazendo mais arranjos, já têm um bom quarto de banho, com chuveiro, frigorífico dos bons, com duas portas, a televisão que levaram não trabalha, compraram outra nova, e um móvel, que também servia de bar, para pôr a televisão por cima, puseram ladrilhos dos grandes no chão da cozinha, ladrilhos dos pequenos nos anexos, excepto no quarto, onde mandaram pôr uma carpete, daquelas fofinhas, como se via na televisão. Na frente dos anexos, uma cobertura ondulada, em plástico, azul, que dava um certo conforto, e mais ao lado um limoeiro onde penduraram uma gaiola com um melro, onde até vinham comer outros pássaros, fazendo-lhe lembrar o periquito que tinha tido na então província da Guiné, onde tinha passado dois anos em cenário de guerra, que assobiava que era um assombro, já os conhecia, quando lhe davam algumas minhocas, pois nos seus tempos livres, andavam às minhocas para o melro, nas terras vizinhas. Tudo isto era bom, mas andavam um pouco tristes, não era bem tristeza, era qualquer coisa, que os fazia sentir menos felizes.
- Que raio, sempre que regresso de apanhar minhocas, tenho que sacudir e limpar os pés, antes de entrar nos anexos, pois está tudo tão limpinho e arrumadinho! - Dizia o José, inconformado com esta nova situação.
Às vezes tinham mesmo que se descalçarem, quando regressavam de apanhar minhocas para o melro. Dentro de casa havia sempre aquela sensação que não deviam ir para o quarto sem primeiro lavarem e limparem os pés, pois a carpete era nova, podiam ter mandado pôr um plástico por cima, mas custava mais dinheiro, e o homem que instalou a carpete disse que não se usava.
Depois de muito pensarem, chegaram à conclusão de que os anexos estavam bons demais para lá viverem. Vão viver a maior parte do tempo na bateira velha, que tinham antes de emigrar, onde puseram uns paus a segurar a antiga vela, onde se recolhem, nos dias em que há chuva, e ao lado, nos dias em que não chove, fazem uma fogueira com caruma dos pinheiros e assam umas sardinhas ou uns carapaus, que comem com um naco de pão, igual ao que o Cifra, que agora se chama Tony, ia roubar, na cozinha do aquartelamento, na então província da Guiné, ao Arroz com Pão, que agora ainda se deve de chamar José, bebendo uns goles de vinho pela mesma garrafa, e limpando de seguida a boca nas costas da mão, tal qual como faziam antes de emigrarem, sendo totalmente felizes neste humilde ambiente.
Esta é a homenagem do Cifra, que agora se chama Tony, ao Arroz com Pão, que agora ainda se deve de chamar José.
Oxalá que sim!.
Tony Borie,
Agosto de 2013
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Nota do editor
Último poste da série de 17 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11948: Bom ou mau tempo na bolanha (27): A velha diligência (Toni Borié)
Guiné 63/74 - P11961: Parabéns a você (614): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11958: Parabéns a você (613): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)
Nota do editor
Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11958: Parabéns a você (613): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)
terça-feira, 20 de agosto de 2013
Guiné 63/74 - P11960: O nosso blogue como fonte de infiormação e conhecimento (14): Estou interessado em projetos conjuntos na área da arqueologia da guerra colonial (Jaisson Lino, Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, Santa Catarina, Brasil)
Página institucional do arqueólogo Jaisson Lino, Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus de Chapecó, Santa Catarina (SC), Brasil.
Data: 1 de Agosto de 2013 às 01:08
Assunto: arqueologia da guerra
Prezado Luís Graça,
Parabéns pelo excelente blog.
Trabalho com arqueologia das guerras e conflitos, fazendo parte de um grupo de arqueólogos que vem tratando do tema no que se refere à arqueologia do período português nas ex-colônias.
Lhe escrevo solicitando, caso seja possível, informações sobre este tema em Guiné-Bissau. O objetivo é estabelecer diálogos além fronteiras e estabelecer bases para projetos em conjunto no mundo lusófono.
Desde já muito obrigado pela atenção.
Cordialmente,
Prof. Jaisson Teixeira Lino
Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS
Campus de Chapecó-SC-Brasil
http://uffs.academia.edu/JaissonLino
2. Comentário de L.G.:
Meu caro colega (, sou também professor universitário e investigador, embora na área das ciêcnias da saúde):
Muito agradeço o seu contacto e as palavras de apreço que dirige ao blogue, coletivo, Luís Graça & Camaradas da Guiné. Sobre o seu pedido (ao qual respondendo com o atraso desculpável pelas férias escolares), o que posso fazer, desde já, é remetê-lo para um dos nossos parceiros na Guiné-Bissau, a ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento que tem trabalho feito na área da arqueologia militar. Tome boa nota do endereço de email: adbissau.ad@gmail.com. Pode contactar, em meu nome pessoal, o seu diretor executivo, eng agr Carlos Schwarz Silva (Pepito).
Esta ONGD, guineense, tem experiência concreta na pesquisa arqueológica do antigo quartel de Guileje, região de Tombali, sul da Guiné-Bissau. Na sequência desse trabalho, foi criado o Núcleo Museológico Memória de Guiledje.
Caro Jaisson, disponha sempre. E vá-nos pondo ao corrente dos seus projetos para a Guiné-Bissau ou outros territórios lusófonos (como é o caso de Angola, aonde temos contactos). Saudações académicas e bloguísticas. Luís Graça.
Nota do editor:
Último poste da série > 30 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11888: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (13): Fotojornalista famoso, Daniel Rodrigues, prémio 'World Press Photo 2013', quer fotografar alguns de nós, antigos combatentes, nos sítios originais onde tirámos as nossas melhores fotos no tempo da guerra
Guiné 63/74 - P11959: Resumo dos Factos e Feitos Mais Importantes da CCAÇ 3476 - "Bebés de Canjambari" (2): Capítulo II - OUT71/ABR72 (Manuel Lima Santos)
Capítulo II do Resumo dos Factos e Feitos Mais Importantes da CCAÇ 3476 - "Bebés de Cajambari", enviado pelo nosso camarada Manuel Lima Santos (ex-Fur Mil Inf.ª nesta Companhia açoriana que esteve em Canjambari e Dugal, nos anos de 1971 a 1973.
CCAÇ 3476
BEBÉS DE CANJAMBARI
RESUMO DOS FACTOS E FEITOS MAIS IMPORTANTES
CAPÍTULO II
ACTIVIDADES MAIS SIGNIFICATIVAS NO TO DA GUINÉ
OUTUBRO DE 1971
Em 02 – Início do IAO, no Cumeré, juntamente com a CCaç 3477 e BCav 3864.
Em 04 – Cerimónia de Boas-Vindas, presidida por Sua Exa o Brigadeiro Comandante Militar.
Em 30 – Fim do IAO. levado a efeito ao longo de quatro semanas, sendo as duas últimas passadas no Campo, na área de Cholufe.
NOVEMBRO DE 1971
Em 02 – Efectuados os preparativos para o deslocamento para o sector que nos foi destinado, seguimos em coluna auto para Farim onde nos foram transmitidas directivas operacionais, seguindo no mesmo dia para Canjambari. O trajecto seguido foi Cumeré - Nhacra - Dugal - Rossum - Uaque - Jugudul - Mansoa - Cutia - Mansabá - Salinquinhedim - Farim - Jumbembem - Canjambari.
Em 03 – Início do Treino Operacional que teve a duração de 15 dias, efectuado em coordenação com a CCaç 2681 que fomos render.
De 10 a 12 – Operação “Bom Começo” realizada por forças desta CCaç e da CCaç 2681 no “Corredor” de Sitató.
De 14 a 16 – Operação “Dura Espera”, levada a efeito no “Corredor” de Sitató, em que intervieram forças da CCAÇ 2753, CART 3358, CCAÇ 14, CART 3359, 27.ª CCOMANDOS, CCAÇ 2681, COM. MIL. CUNTIMA, CART 2732 e desta CCAÇ.
Em 18 – Fim do Treino Operacional e início de sobreposição de 10 dias com a CCAÇ 2681.
Localização de Canjambari. Vd. Carta de Farim
Em 26 – Assumida a responsabilidade da ZA de Canjambari. Durante o treino operacional e a sobreposição, esta CCAÇ levou a efeito 9 interdições de 24 horas no “Corredor” de Sitató, 20 patrulhas de Reconhecimento e Segurança Afastadas, 6 picagens e 6 escoltas a colunas de reabastecimento a Farim passando por Jumbembem. A ZA está integrada no sector de Farim, ocupado pelo BART 3844.
Em 29 – Detectada e levantada na estrada Canjambari – Jumbembem, uma mina A/C TMD reforçada com carga de trotil, por um GRCOMB desta CCAÇ
DEZEMBRO DE 1971
Em 05 – Todo o pessoal da CCAÇ 2681 segui em coluna para Farim.
Em 06 – Iniciadas obras intensas no Aquartelamento, para melhoramento geral do sistema defensivo (desobstrução de campos de tiro, limpeza de valas de acesso e trincheiras de Combate, construção de novas paliçadas, trincheiras e valas e completamento da rede de arame farpado) ao mesmo tempo que decorriam em força os trabalhos de reordenamento.
Em 15 – Forças desta CCAÇ em interdição no “Corredor” de Sitató, na operação” Corisca Diana”, detectaram grupo IN pouco numeroso deslocando-se de N/S. O Inimigo accionou uma armadilha e deixou um morto no terreno (sem documentos) e múltiplos vestígios de sangue.
Em 16 e 17 – Em continuação da Operação “Corisca Diana” após batida exaustiva na região Dando – Farincó, foram encontrados arroz e açúcar espalhados, muita roupa nova e usada (de homem, mulher e criança), de fabrico Russo ou sem marca, rações e maços de tabaco Russo, caixa de munições 7,62 e uma carta pessoal sem interesse militar aparente. O Comando do BART 3844 fez a seguinte apreciação à operação “Corisca Diana”, realizada de 15 a 17 de Dezembro: “de salientar o interesse com que a CCAÇ tem procurado evitar a passagem do IN na sua Zona de Acção”.
Em 18 – Iniciado o lançamento de frescos em pára-quedas, de um avião Nord Atlas. Este lançamento passou a ser feito de três em três semanas. Foi detectada e levantada uma mina A/P PMD-6 em Sare Tenem, junto a uma árvore, no local onde as NT costumam ficar no final da picagem da estrada. A coluna seguiu o seu destino. Descobertos por GRCOMB desta CCAÇ carreiros novos IN, numa patrulha de reconhecimento no sentido do limite Norte do Subsector. Estes carreiros foram armadilhados.
Em 20 – Sua Exa o General e Comandante Chefe visitou o Aquartelamento, tendo dirigido aos militares e milícias, em formatura, palavras de saudação e estímulo. Este Aquartelamento foi o primeiro visitado por Sua Exa na quadra Natalícia de 1971.
Em 23 – GRCOMB em Contra-penetração no “Corredor” de Sitató, no decorrer da Acção “Cidália”, verificou o accionamento de duas armadilhas das NT. Seguidos os rastos deixados pelo IN até ao limite Norte da ZA, foram encontradas três campas com mortos enterrados. A avaliar pelas roupas e quico encontrados, deveriam ser combatentes. O local foi armadilhado. A acção “Cidália” mereceu do Comando do BART 3844 a seguinte apreciação: “é de salientar a persistência e empenho postos em detectar o IN e em dificultar o livre trânsito pelo “Corredor”, tendo já obtido resultados assinaláveis, pelo accionamento das armadilhas implantadas”.
Em 28 – O IN flagelou o Aquartelamento com Mort 82, durante trinta minutos, da região de Tita Sambo, sem consequências. Caíram cerca de 20 granadas fora do quartel. As NT reagiram com fogo de Mort 81.
Em 30 – GRCOMB em Contra-penetração, na Acção “Carla”, descobriu um novo carreiro IN em Colina do Norte 15.13, juntando-se neste ponto a um outro carreiro anteriormente descoberto, e divergindo a partir daí no sentido NE. A acção “Carla” mereceu do Comando do BART 3844 o seguinte comentário: ”de salientar o interesse posto pela CCAÇ no cumprimento da sua missão de Contrapenetração. Bom comportamento do CMDT da Força”.
JANEIRO DE 1972
Em 05 – Recebida a transcrição da apreciação da actividade operacional pelo Comando-Chefe das Forças Armadas referente a Dezembro: “saliente-se a intensa actividade desenvolvida pela CCAÇ 3476 sobre o “Corredor” de Sitató“.
Em 07 – GRCOMB em C/P no “Corredor” de Sitató, na acção “ Cilinha”, verificou que foram accionadas duas armadilhas reforçadas. Junto da primeira armadilha foi encontrado sangue. Efectuada batida foi encontrado o local de estacionamento inimigo com latas de ração de combate, restos de tabaco Russo e 1 alguidar, em Colina do Norte 01 H6.52, aproximadamente. O Comandante do BART 3844 voltou a salientar o interesse posto por esta CCAÇ na interdição do “Corredor” de Sitató.
Em 24 – Encontrados vestígios de passagem IN no sentido Sul - Norte, próximo de Dando, por GRCOMB na acção “ César”.
Em 25 – Seguidos rastos do inimigo verificou-se que duas armadilhas reforçadas tinham sido accionadas. O IN dissimulou vestígios e deitou fogo ao capim provavelmente para fazer accionar outras possíveis armadilhas. Seguiram-se as pegadas até ao limite Norte do Subsector, constando-se que as mesmas seguiam na direcção de Sare Coli (ZA de Cuntima). A acção “César” mereceu do Comando do BART 3844 a seguinte apreciação: ”mais uma vez o armadilhamento no “Corredor” de Sitató conduziu a resultados positivos”.
Em 29 – A fim de inspeccionar a actividade e os projectos de reordenamentos em curso, estiveram nesta Companhia Oficiais do Com-Chefe, que vieram em helicóptero. Efectuaram-se alterações nos planos existentes do antecedente, que continham vários erros e, perante os projectos definitivos, começou a executar-se em força a construção das casas do reordenamento em novo local.
FEVEREIRO DE 1972
Em 05 – Efectuada por grupo de combate reforçado uma patrulha de reconhecimento na região de Bananto, tendo sido encontrados vestígios IN. Verificou-se a existência de muitas pegadas na direcção de Maninhã e para rio Canjambari na direcção de Samba Culo. Viu-se também uma grande queimada tendo como eixo um trilho aberto a corta-mato pelas NT em 31 de Jan 72.
Em 08 – Grupo IN numeroso flagelou-nos pelas 19 horas com armas ligeiras diversas incluindo PPSH, RPG2, RPG7 e ainda Mort.82 e Canhão S/R, durante 70 minutos, sem consequências. As NT ocuparam imediatamente posições no perímetro defensivo do Aquartelamento e na Base de Fogos de Mort.81, fazendo fogo com todas as armas. O IN voltou a flagelar cerca das 23h45, com muito maior intensidade de armas ligeiras e durante 50 minutos. Não houve consequências, sendo apenas de notar estragos materiais ligeiros, nomeadamente fios cortados e postes de iluminação derrubados.
Em 11 – Grupo IN numeroso flagelou-nos cerca das 19 horas com armas ligeiras, PPSH, RPG2 e RPG7 e ainda Mort 82 e Canhão sem recuo, durante 20 minutos. As bases de fogo estavam na região de Tita Sambo e as armas ligeiras nos lados Oeste e Sul do Aquartelamento. As posições das armas IN foram praticamente as mesmas da flagelação do dia 08 de Fev. de 72. Foram apenas provocados danos aligeirados no sistema de iluminação. O relatório respectivo mereceu o seguinte comentário do BART 3844: “Boa reacção das NT. De salientar a utilização por parte do IN de posições de armas ligeiras idênticas às ocupadas no ataque de 08 de Fev. e o rendimento das armadilhas implantadas pelas NT. Boa actuação do CMDT da Força. Dadas as circunstâncias este Comando é de parecer que se justificam os danos apontados". Concluídas batidas nos dias seguintes ao redor do Aquartelamento, foram encontradas as posições de armas ligeiras nos lados Oeste do Aquartelamento, (junto ao rio Tufili) e Sul/Sudeste, (ao longo e ao fundo da pista). Numerosos carreiros de aproximação e retirada convergindo para Sinhã Buco e dirigindo-se em direcção ao rio Canjambari. Verificado ainda o accionamento pelo IN de 01 armadilha reforçada com possíveis feridos. Ao fundo da pista foram encontrados sinais de arrastar corpos, assim como ligaduras, algodão e gaze abandonados, possível consequência do rebentamento de fornilhos comandados pelas NT. Na direcção de Bananto foi encontrada grande cova, possível espaldão de fogos de apoio. As outras bases situaram-se provavelmente fora do nosso subsector, em Tita Sambo.
Em 19 – Grupo IN flagelou-nos cerca das 19h10 com Mort 82 durante 10 minutos da região de Tita Sambo, sem consequências. Após a flagelação, o IN bateu durante largo tempo as imediações de Canjambari Praça e margem do rio Sulucunto, julgando haver actividade nocturna das NT nesses locais. O Comandante do BART 3844 fez a seguinte apreciação a esta flagelação: ”De salientar a atenção que o IN presta à região próxima de Canjambari Praça. Ajustada acção do CMDT da CCAÇ e reacção das NT".
Em 23 – Grupo IN flagelou-nos cerca das 17h30 com Mort.82, durante 20 minutos da região de Tita Sambo – Canjambari Praça, causando um ferido grave e um ferido ligeiro devido a estilhaços. Caíram granadas IN dentro do Aquartelamento, num abrigo, no refeitório e na parada, junto ao mastro da Bandeira. Os dois feridos foram evacuados na manhã seguinte. Comentário do CMDT do BART 3844 a esta flagelação: “ De salientar a hora do ataque e a precisão do fogo IN. Quanto às NT há a salientar a boa disciplina de fogo resultante de uma boa mentalização e de um bom comando por parte do CMDT da Sub-Unidade”.
MARÇO DE 1972
Em 02 – O IN flagelou-nos novamente cerca das 19h10 com 04 foguetões e granadas de Mort.82 da região de Tita Sambo – Samba Cula. As NT reagiram imediatamente com o Mort.81 e não houve consequências. Um dos foguetões caiu entre duas fiadas de arame farpado e os outros três caíram a Norte do Aquartelamento. Foi recebido o seguinte comentário do Comando do BART 3844: “De salientar a utilização pela primeira vez por parte do IN, de foguetões para flagelação ao Aquartelamento de Canjambari. Acção do CMDT da CCAÇ e reacção das NT ajustadas às circunstâncias”.
Em 04 – Avião não identificado sobrevoou esta COMP na direcção de Jumbembem. O ruído foi ouvido com bastante nitidez.
Em 08 – Grupo de Combate em patrulhamento na estrada de Fajonquito detectou e levantou mina A/P PMD-6 em Banjara 03 D 681, sem consequências.
Em 10 – Grupo de Combate em C/P junto de Dando encontrou vestígios de passagem no sentido Sul – Norte de grupo IN pouco numeroso, provavelmente 48 horas antes. Foi accionada uma armadilha havendo feridos IN prováveis. De notar que há longo período que o “Corredor” de Sitató não apresentava sinais de passagem, talvez como consequência da intensa actividade desenvolvida pelas NF.
Em 19 – Grupo IN flagelou-nos durante 15 minutos, com Mort.82 da região de Tita Sambo, cerca das 18h25. Caíram quatro granadas dentro do Aquartelamento, tendo causado estragos nas antenas do rádio e fios eléctricos. Em contraste com as outras flagelações, é de salientar a precisão do tiro IN. Houve três feridos que foram evacuados em DO-27. O relatório da flagelação mereceu do Comandante do BART 3844 o seguinte comentário: ”Boa reacção das NT, sendo de salientar a disciplina de fogo verificada. Bom comando por parte do CMDT da CCAÇ. Dadas as circunstâncias justificam-se os danos verificados”.
ABRIL DE 1972
Em 06 – Grupo IN flagelou às 18h40 com Mort.82, durante 10 minutos, sem consequências, da direcção de Canjambari Praça, estando situada a base de fogos na margem sul do rio Canjambari, junto de Tita Sambo. As NT reagiram imediatamente com fogo de Mort.81. O CMD do BART 3844 fez o seguinte comentário: ”Comando ajustado às circunstâncias. Reacção normal das NT”.
Em 29 e 30 – Grupo de Combate reforçado com milícias durante a picagem do itinerário Canjambari – Sare Tenem detectou e levantou em Jumbembem 7E 332 01 mina A/C TMD/6. Foi accionada uma mina A/P, tendo causado 02 feridos NT, ambos Sargentos e 04 feridos milícias, 01 dos quais ficou sem perna. Devido ao adiantado da hora a coluna foi adiada. Do Quartel saiu imediatamente uma coluna de viaturas para recolha da força e dos feridos. Pela forma pronta e decidida como um 1º cabo Aux Enf. socorreu os seus camaradas feridos, tendo avançado imediatamente para junto deles, apesar do local continuar minado, foi posteriormente Louvado. Comentário do BART 3844 a esta picagem: ”De salientar a forma de implantação de minas por parte do IN. Comando ajustado às circunstâncias. Reacção normal das NT”. Os feridos foram evacuados algumas horas depois.
(Continua)
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Nota do editor
Primeiro poets da série de 16 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11946: Resumo dos Factos e Feitos Mais Importantes da CCAÇ 3476 - "Bebés de Canjambari" (1): Capítulo I (Manuel Lima Santos)
Guiné 63/74 - P11958: Parabéns a você (613): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de Agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11952: Parabéns a você (612): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66)
Nota do editor
Último poste da série de 19 de Agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11952: Parabéns a você (612): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66)
segunda-feira, 19 de agosto de 2013
Guiné 63/74 - P11957: Tabanca Grande (408): Francisco Maria Magalhães Baptista, ex-Alf Mil Inf.ª da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72)
1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Francisco Maria Magalhães Baptista*, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 8 de Agosto de 2013:
Pretendo escrever uma breve história da minha passagem pela Guiné, mas entretanto, há poucos dias estive com uma irmã, mais nova que eu dois anos, que me que me surpreendeu com uma história do meu regresso, que eu não lembro de todo, e passo a contar pela impressão que me causou e pelo facto de a ter apagado completamente da memória.
A minha história da Guiné começa pelo fim.
Regressei a Lisboa, de avião, em 19 de Março de 1972, integrado na CART 2732, onde estive os meus últimos oito meses de comissão.
Depois do desembarque tínhamos que passar por um corredor, envidraçado dum lado, que nos separava duma sala com poucas condições (mais parecia um curral), onde estavam os nossos familiares e amigos que nos esperavam. Não podíamos contactar com eles logo pois tínhamos que ir primeiro cumprir certas formalidades que hoje não recordo.
O meu pai e esta irmã foram esperar-me.
Ainda antes do nosso desembarque, segundo a minha irmã, entrou nessa sala uma jovem senhora muito chorosa e revoltada, querendo saber o que teria acontecido ao marido, que era da companhia que chegava. Ela face a elementos e desconfianças que não são claros hoje, não acreditava muito na morte dele nem na versão oficial que lhe tinham dado. Punha até a hipótese de ele estar vivo e preso por lá. Queria falar com camaradas dele para se informar devidamente, pois não queria acreditar nas explicações dadas.
Nessa idade deve ser muito difícil acreditar que alguém que amamos, que praticamente faz quase parte da nossa identidade morreu. Porque essa pessoa vive em nós pois o amor confunde corpos e almas sobretudo quando se é jovem. Compreende-se a atitude de descrença dessa jovem senhora na morte do marido. Além do mais ela de certeza que não viu o seu homem morto um aspecto muito importante para se puder fazer o luto. Até nisso as viúvas e familiares dos nossos camaradas mortos nas antigas colónias foram duplamente castigados, pois penso, que nunca podiam confirmar essa notícia.
Na opinião da minha irmã essa jovem senhora era muito bonita.
O nosso pai terá ficado muito nervoso e sensibilizado, pela dor e pela beleza da jovem e querendo ajudá-la disse-lhe que o filho vinha nesse avião e possivelmente lhe daria informações.
Quando passamos no corredor essa senhora terá tentado falar comigo, através da divisória de vidro, não sei se conseguiu, a minha irmão não se recorda.
Posteriormente quando pudemos contactar os nossos familiares, o meu pai ter-me-à pedido para eu falar com ela. Eu não terei acedido ao seu pedido, tendo até ficado aborrecido com a sua insistência.
O meu pai viveu mais 5 anos e terá perguntado algumas vezes pelo nosso camarada, marido dessa senhora. As minhas respostas terão sido lacónicas e evasivas.
Olho para trás e não me reconheço porque eu tenho muitos defeitos mas sempre fui solidário como qualquer pessoa normal e este comportamento é até pouco humano
Desde o meu regresso já se passaram cerca de 43 anos, é natural que o tempo vá apagando muitas coisas da memória mas há acontecimentos como este que deviam deixar marcas quase perenes mas eu não recordo nada desta história triste, é natural que algum camarada ou familiar se tenha apercebido do que se passou, não sei. Pelo conhecimento que tenho da minha irmã tenho a certeza que esta senhora existiu, mas talvez pelo tempo já passado os pormenores poderão estar esbatidos ou um pouco alterados pela imaginação dela. Oxalá esta jovem senhora tenha conseguindo respostas satisfatórias às suas perguntas de forma a poder aliviar a enorme dor que terá sentido com a morte do marido.
Fui convidado pelo amigo Carlos Vinhal, com quem estive oito meses na CART 3732 e reencontrei neste blogue, a aderir a esta tertúlia e como me identifico com os seus ideais e objectivos, decidi apresentar a minha candidatura, pois será uma honra pertencer a este grande batalhão que cobre Portugal e a Guiné inteira, comandado com muito mérito pelo Luís Graça e outros camaradas que colaboram, entre os quais o Carlos.
Uma saudação fraterna a todos os camaradas, pois nalgum tempo e espaço, já todos fomos irmãos, nas vivências; no sol quente e por-dos-sóis multicolores, nas paisagens maravilhosas do mar, das florestas e bolanhas, nas chuvas sem fim que alagavam os dias e as terras, nos fados da Amália e baladas do Zeca Afonso, em noites de nostalgia e bebedeira, nos medos das minas, das emboscadas e bombardeamentos, na dor e na raiva dos camaradas mortos e feridos.
Mas julgo que todos nós conservámos as qualidades primordiais que fazem com que o jovem que cada um era, não se deixasse degradar demasiado com o passar dos anos e não perdesse o que deve ser perene na alma humana, a solidariedade, a amizade, enfim a boa camaradagem.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista
2. Comentário do editor CV
Caro camarada e amigo Francisco
Em boa hora me contactaste, descobrindo-me através deste Blogue, que é maior que o Mundo, onde os ex-combatentes da Guiné se vão encontrando e convivendo.
Vens juntar-te, no Blogue, a mim, ao ex-1.º Cabo Inácio Silva, que estava instalado no "condomínio/abrigo" da Mancarra e ao ex-Cap Mil Jorge Picado que teve a honra e o privilégio de comandar a nossa CART durante sensivelmente 3 meses. Vê tu que até foi a Fátima a pé nesse espaço de tempo. Vê o recorte da carta de Binta:
Tens aqui uma foto dos felizes condóminos da Mancarra. Em primeiro plano, de cócoras o ex-1.º Cabo Ornelas, apontador do morteiro 60, da minha secção/3.º Pelotão do ex-Alf Mil Bento, de quem te deves lembrar, e sentado, o Inácio Silva que tinha seu cargo uma Breda para contrariar as investidas dos nossos indesejáveis vizinhos. O Ornelas, como não podia enviar as suas granadas de dentro do abrigo, fazia-o cá fora ao ar livre. Homens valentes, estes madeirenses.
No teu tempo já o Inácio Silva estaria impedido na secretaria do COP 6.
Ainda hoje, felizmente, mantenho contactos regulares com ambos.
Para guardares, deixo-te também aqui uma vista aérea de Mansabá, do nosso tempo. Vê se te lembras onde era o teu quarto.
Tive o imenso prazer de te reencontrar em Leça da Palmeira, naquele famoso restaurante, propriedade de um colega de escola primária da 1.ª à 4.ª classe do ensino primário. Vê tu, onde me fizeste passar pela vergonha de me homenageares pelo trabalho que aqui faço, com imenso prazer. Valeu-me a presença de alguns amigos comuns para que não ficasse de todo inibido.
Quanto à tua história, a misteriosa senhora que queria falar contigo poderá ter sido quem pensamos, mas não podemos confirmar, logo ficamos por aqui. Já agora fica aqui declarado por quem sabe, eu, que tu não estavas em Mansabá na altura daquele funesto acontecimento.
Como este poste já vai longo, quero deixar-te um abraço em nome dos editores e da tertúlia, e os votos de que remexendo no fundo das tuas memórias, encontres matéria para nos enviares histórias passadas nas duas unidades em que militaste.
Abraço do camarada e amigo
Carlos Vinhal
____________
Notas do editor
(*) Vd. postes de:
26 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11873: O Nosso Livro de Visitas (167): Francisco Maria Magalhães Batista, ex-Alf Mil, integrado na CART 2732 em Setembro de 1971 (Carlos Vinhal)
e
29 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11882: Blogpoesia (351): "Conversas sem pressas", por Maria de Lourdes dos Anjos (Francisco Batista)
Último poste da série de 9 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11919: Tabanca Grande (407): José Fernando dos Santos Ribeiro, ex-1º Cabo de Transmissões da CCS do BCAÇ 2912 (Galomaro-Cossé), 1970/72
Pretendo escrever uma breve história da minha passagem pela Guiné, mas entretanto, há poucos dias estive com uma irmã, mais nova que eu dois anos, que me que me surpreendeu com uma história do meu regresso, que eu não lembro de todo, e passo a contar pela impressão que me causou e pelo facto de a ter apagado completamente da memória.
A minha história da Guiné começa pelo fim.
Regressei a Lisboa, de avião, em 19 de Março de 1972, integrado na CART 2732, onde estive os meus últimos oito meses de comissão.
Depois do desembarque tínhamos que passar por um corredor, envidraçado dum lado, que nos separava duma sala com poucas condições (mais parecia um curral), onde estavam os nossos familiares e amigos que nos esperavam. Não podíamos contactar com eles logo pois tínhamos que ir primeiro cumprir certas formalidades que hoje não recordo.
O meu pai e esta irmã foram esperar-me.
Ainda antes do nosso desembarque, segundo a minha irmã, entrou nessa sala uma jovem senhora muito chorosa e revoltada, querendo saber o que teria acontecido ao marido, que era da companhia que chegava. Ela face a elementos e desconfianças que não são claros hoje, não acreditava muito na morte dele nem na versão oficial que lhe tinham dado. Punha até a hipótese de ele estar vivo e preso por lá. Queria falar com camaradas dele para se informar devidamente, pois não queria acreditar nas explicações dadas.
Nessa idade deve ser muito difícil acreditar que alguém que amamos, que praticamente faz quase parte da nossa identidade morreu. Porque essa pessoa vive em nós pois o amor confunde corpos e almas sobretudo quando se é jovem. Compreende-se a atitude de descrença dessa jovem senhora na morte do marido. Além do mais ela de certeza que não viu o seu homem morto um aspecto muito importante para se puder fazer o luto. Até nisso as viúvas e familiares dos nossos camaradas mortos nas antigas colónias foram duplamente castigados, pois penso, que nunca podiam confirmar essa notícia.
Na opinião da minha irmã essa jovem senhora era muito bonita.
O nosso pai terá ficado muito nervoso e sensibilizado, pela dor e pela beleza da jovem e querendo ajudá-la disse-lhe que o filho vinha nesse avião e possivelmente lhe daria informações.
Quando passamos no corredor essa senhora terá tentado falar comigo, através da divisória de vidro, não sei se conseguiu, a minha irmão não se recorda.
Posteriormente quando pudemos contactar os nossos familiares, o meu pai ter-me-à pedido para eu falar com ela. Eu não terei acedido ao seu pedido, tendo até ficado aborrecido com a sua insistência.
O meu pai viveu mais 5 anos e terá perguntado algumas vezes pelo nosso camarada, marido dessa senhora. As minhas respostas terão sido lacónicas e evasivas.
Olho para trás e não me reconheço porque eu tenho muitos defeitos mas sempre fui solidário como qualquer pessoa normal e este comportamento é até pouco humano
Desde o meu regresso já se passaram cerca de 43 anos, é natural que o tempo vá apagando muitas coisas da memória mas há acontecimentos como este que deviam deixar marcas quase perenes mas eu não recordo nada desta história triste, é natural que algum camarada ou familiar se tenha apercebido do que se passou, não sei. Pelo conhecimento que tenho da minha irmã tenho a certeza que esta senhora existiu, mas talvez pelo tempo já passado os pormenores poderão estar esbatidos ou um pouco alterados pela imaginação dela. Oxalá esta jovem senhora tenha conseguindo respostas satisfatórias às suas perguntas de forma a poder aliviar a enorme dor que terá sentido com a morte do marido.
Fui convidado pelo amigo Carlos Vinhal, com quem estive oito meses na CART 3732 e reencontrei neste blogue, a aderir a esta tertúlia e como me identifico com os seus ideais e objectivos, decidi apresentar a minha candidatura, pois será uma honra pertencer a este grande batalhão que cobre Portugal e a Guiné inteira, comandado com muito mérito pelo Luís Graça e outros camaradas que colaboram, entre os quais o Carlos.
Uma saudação fraterna a todos os camaradas, pois nalgum tempo e espaço, já todos fomos irmãos, nas vivências; no sol quente e por-dos-sóis multicolores, nas paisagens maravilhosas do mar, das florestas e bolanhas, nas chuvas sem fim que alagavam os dias e as terras, nos fados da Amália e baladas do Zeca Afonso, em noites de nostalgia e bebedeira, nos medos das minas, das emboscadas e bombardeamentos, na dor e na raiva dos camaradas mortos e feridos.
Mas julgo que todos nós conservámos as qualidades primordiais que fazem com que o jovem que cada um era, não se deixasse degradar demasiado com o passar dos anos e não perdesse o que deve ser perene na alma humana, a solidariedade, a amizade, enfim a boa camaradagem.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista
2. Comentário do editor CV
Caro camarada e amigo Francisco
Em boa hora me contactaste, descobrindo-me através deste Blogue, que é maior que o Mundo, onde os ex-combatentes da Guiné se vão encontrando e convivendo.
Vens juntar-te, no Blogue, a mim, ao ex-1.º Cabo Inácio Silva, que estava instalado no "condomínio/abrigo" da Mancarra e ao ex-Cap Mil Jorge Picado que teve a honra e o privilégio de comandar a nossa CART durante sensivelmente 3 meses. Vê tu que até foi a Fátima a pé nesse espaço de tempo. Vê o recorte da carta de Binta:
Fátima, localizada a leste de Madina Mandinga. Carta de Binta
Tens aqui uma foto dos felizes condóminos da Mancarra. Em primeiro plano, de cócoras o ex-1.º Cabo Ornelas, apontador do morteiro 60, da minha secção/3.º Pelotão do ex-Alf Mil Bento, de quem te deves lembrar, e sentado, o Inácio Silva que tinha seu cargo uma Breda para contrariar as investidas dos nossos indesejáveis vizinhos. O Ornelas, como não podia enviar as suas granadas de dentro do abrigo, fazia-o cá fora ao ar livre. Homens valentes, estes madeirenses.
No teu tempo já o Inácio Silva estaria impedido na secretaria do COP 6.
Ainda hoje, felizmente, mantenho contactos regulares com ambos.
Era esta a malta do abrigo da Mancarra que assegurava a defesa de Mansabá no sector Norte do aquartelamento
Foto ©: Inácio Silva
Para guardares, deixo-te também aqui uma vista aérea de Mansabá, do nosso tempo. Vê se te lembras onde era o teu quarto.
Vista aérea de Mansabá
Foto ©: Carlos Vinhal
Tive o imenso prazer de te reencontrar em Leça da Palmeira, naquele famoso restaurante, propriedade de um colega de escola primária da 1.ª à 4.ª classe do ensino primário. Vê tu, onde me fizeste passar pela vergonha de me homenageares pelo trabalho que aqui faço, com imenso prazer. Valeu-me a presença de alguns amigos comuns para que não ficasse de todo inibido.
Quanto à tua história, a misteriosa senhora que queria falar contigo poderá ter sido quem pensamos, mas não podemos confirmar, logo ficamos por aqui. Já agora fica aqui declarado por quem sabe, eu, que tu não estavas em Mansabá na altura daquele funesto acontecimento.
Como este poste já vai longo, quero deixar-te um abraço em nome dos editores e da tertúlia, e os votos de que remexendo no fundo das tuas memórias, encontres matéria para nos enviares histórias passadas nas duas unidades em que militaste.
Abraço do camarada e amigo
Carlos Vinhal
____________
Notas do editor
(*) Vd. postes de:
26 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11873: O Nosso Livro de Visitas (167): Francisco Maria Magalhães Batista, ex-Alf Mil, integrado na CART 2732 em Setembro de 1971 (Carlos Vinhal)
e
29 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11882: Blogpoesia (351): "Conversas sem pressas", por Maria de Lourdes dos Anjos (Francisco Batista)
Último poste da série de 9 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11919: Tabanca Grande (407): José Fernando dos Santos Ribeiro, ex-1º Cabo de Transmissões da CCS do BCAÇ 2912 (Galomaro-Cossé), 1970/72
Guiné 63/74 - P11956: In Memoriam (158): João Santos Correia, ex-1.º Cabo TRMS da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, falecido em 4 de Agosto de 2013 (Manuel Marinho)
1. Mensagem do nosso camarada Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de hoje, 19 de Agosto de 2013:
Amigo e camarada Carlos
Este texto é uma homenagem a mais um dos meus camaradas que partiram, ele fez parte da minha coluna de 8 de MAI73 e deixou-nos a 4 de Agosto.
Agradeço a publicação.
Abraços para vós
Manuel Marinho
HOMENAGEM AO 1.º CABO TRMS JOÃO CORREIA
Meu camarada e amigo, João Correia:
Estou a escrever estas linhas ainda a quente, depois de receber o telefonema de teu filho, hoje, dando-me a triste noticia da tua morte, a um mês de nos encontrarmos para o almoço da nossa malta, tinhas muitas coisas a contar-me, e finalmente íamos tentar perceber como foi que aquela maldita emboscada aconteceu.
Partiste antes do nosso abraço, que não chegou a acontecer…
Tanto trabalho para te encontrar, a alegria da descoberta, a promessa do abraço fraterno de quem viveu dias e horas infernais, numa guerra para a qual fomos sem o desejarmos, mas também sem a renegarmos.
A vida prega-nos estas partidas, gostava nestas alturas de ser crente, ter fé… mas sinto uma raiva interior com a vida… Felizes todos os que o são….
Tiveste ainda a amabilidade de avisares a tua esposa para só me telefonarem quando fosses para o hospital, recomendando muitos abraços para mim e para os meus…Já te estavas a despedir de nós teus camaradas, e de mim em particular….
Meu amigo e camarada, as lágrimas secaram-me há muito tempo, que vontade que eu tive de as derramar… Aquele documento da emboscada que deixaste escrito, e que está na minha posse, não foi publicado pois faltavam os tais pormenores, nós os dois éramos testemunhas presenciais e ambos tínhamos escrito, eu já publiquei a minha versão, que hoje está mais bem documentada, e a tua acrescenta pormenores até hoje desconhecidos.
O relatório da emboscada que foi por ti descrito, perante oficiais vindos de Bissau de propósito para ouvirem da tua boca os detalhes da mesma, pois só tu estavas em condições de os dares, desapareceu…Não existe…. Ponto final….
O que havia era a tua (nossa) versão, mas eram incómodos, e desapareceram… Porque não interessava que se conhecessem os pormenores e apurassem as responsabilidades. Por acaso escreveste mais ou menos de memória tudo o que nos aconteceu, o que narraste para os ditos oficiais, e que era mau demais, os que poderiam dar explicações também já partiram, e sempre tive dúvidas como tu tinhas, que eles as quisessem dar.
Tiveste sempre a mágoa e a revolta de não te tratarem como deviam, depois da emboscada e do relatório, retiraram-te do mato da convivência com os operacionais, pelos motivos que sempre desconfiamos.
Não podias divulgar nada…. Naquele fatídico dia, antes de avançarmos para Guidaje, ouviste pelo rádio o que não devias, as mensagens trocadas, entre o CMDT do nosso Batalhão e o CMDT do COP 3 de Bigene, porque eras o nosso camarada das transmissões que ia na coluna.
E ficaste mais espantado e indignado quando soubeste, há pouco tempo, por mim meu amigo, que em Bissau esteve uma CCP, a 121, pronta para nos socorrer e não saíram… Por ordens superiores. E porquê?
Pensariam os estrategas que nós, cerca de 50 dávamos cabo de 200 IN? Mesmo assim e com a tua prestimosa ajuda no contacto com os nossos camaradas de Binta (poucos), conseguimos sair de lá. E os que nós combatíamos, só conseguiram os seus intentos, apenas por um dia, a chegada a Guidaje aconteceu no dia seguinte.
Aguentamos até ao limite… Nós cumprimos, os nossos superiores, não! Pois é, e no dia seguinte o cerco rompeu… Mas aí já foram quase duas Ccaç, reforçadas com 2 GrComb de CMDS, e passaram claro, com os nossos superiores à cabeça, embora hoje se tente fazer crer que houve um cerco infernal e que ninguém passava…. Coisas que ainda hoje se dizem e escrevem camarada….. E estava tudo tão mal contado….
Valeu tudo, e ainda hoje não emendam a mão, no princípio até esqueceram os nossos mortos… Descansa em paz meu amigo e camarada, não vou insistir para tentar encontrar explicações de quem tão mal nos comandou, pois esses também já partiram… Mas não terei razões para modificar a minha atitude em relação ao IN da altura, não esqueço… e não tenho que prestar contas a ninguém por ter combatido ao vosso lado, a vossa memória impõe que enquanto houver camaradas nossos vivos não deixarei cair no esquecimento as nossas interrogações.
Seja onde for que te encontres fica sabendo, que as esperanças que tinhas em publicar a nossa história, será cumprida, tentarei fazê-lo, é minha obrigação dar voz a quem não pode, e aos que estão incapacitados de o fazer. Será neste blogue de enorme camaradagem, de e para os combatentes, que nos compreenderão, eu terei a responsabilidade de zelar e de falar por ti, para que mais pormenores sejam conhecidos, e para que se escreva um dia a verdade.
E fica prometido que te faremos a homenagem devida, será penoso para mim, mas devemos-te isso a ti, por nós teus amigos e camaradas, pelo teu filho e pela tua esposa.
Paz à tua alma meu amigo e camarada, até sempre!
5 de Agosto de 2013
Manuel Marinho
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Nota do editor
Último poste da série de 10 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11926: In Memoriam (157): Luís Filipe Borrega - † 10 Agosto 2013, ex-Fur Mil Cav MA da CCAV 2749/BCAV 2922 (Piche, 1970/72)
Amigo e camarada Carlos
Este texto é uma homenagem a mais um dos meus camaradas que partiram, ele fez parte da minha coluna de 8 de MAI73 e deixou-nos a 4 de Agosto.
Agradeço a publicação.
Abraços para vós
Manuel Marinho
João Santos Correia, ex-1.º Cabo TRMS da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512
HOMENAGEM AO 1.º CABO TRMS JOÃO CORREIA
Meu camarada e amigo, João Correia:
Estou a escrever estas linhas ainda a quente, depois de receber o telefonema de teu filho, hoje, dando-me a triste noticia da tua morte, a um mês de nos encontrarmos para o almoço da nossa malta, tinhas muitas coisas a contar-me, e finalmente íamos tentar perceber como foi que aquela maldita emboscada aconteceu.
Partiste antes do nosso abraço, que não chegou a acontecer…
Tanto trabalho para te encontrar, a alegria da descoberta, a promessa do abraço fraterno de quem viveu dias e horas infernais, numa guerra para a qual fomos sem o desejarmos, mas também sem a renegarmos.
A vida prega-nos estas partidas, gostava nestas alturas de ser crente, ter fé… mas sinto uma raiva interior com a vida… Felizes todos os que o são….
Tiveste ainda a amabilidade de avisares a tua esposa para só me telefonarem quando fosses para o hospital, recomendando muitos abraços para mim e para os meus…Já te estavas a despedir de nós teus camaradas, e de mim em particular….
Meu amigo e camarada, as lágrimas secaram-me há muito tempo, que vontade que eu tive de as derramar… Aquele documento da emboscada que deixaste escrito, e que está na minha posse, não foi publicado pois faltavam os tais pormenores, nós os dois éramos testemunhas presenciais e ambos tínhamos escrito, eu já publiquei a minha versão, que hoje está mais bem documentada, e a tua acrescenta pormenores até hoje desconhecidos.
O relatório da emboscada que foi por ti descrito, perante oficiais vindos de Bissau de propósito para ouvirem da tua boca os detalhes da mesma, pois só tu estavas em condições de os dares, desapareceu…Não existe…. Ponto final….
O que havia era a tua (nossa) versão, mas eram incómodos, e desapareceram… Porque não interessava que se conhecessem os pormenores e apurassem as responsabilidades. Por acaso escreveste mais ou menos de memória tudo o que nos aconteceu, o que narraste para os ditos oficiais, e que era mau demais, os que poderiam dar explicações também já partiram, e sempre tive dúvidas como tu tinhas, que eles as quisessem dar.
Tiveste sempre a mágoa e a revolta de não te tratarem como deviam, depois da emboscada e do relatório, retiraram-te do mato da convivência com os operacionais, pelos motivos que sempre desconfiamos.
Não podias divulgar nada…. Naquele fatídico dia, antes de avançarmos para Guidaje, ouviste pelo rádio o que não devias, as mensagens trocadas, entre o CMDT do nosso Batalhão e o CMDT do COP 3 de Bigene, porque eras o nosso camarada das transmissões que ia na coluna.
E ficaste mais espantado e indignado quando soubeste, há pouco tempo, por mim meu amigo, que em Bissau esteve uma CCP, a 121, pronta para nos socorrer e não saíram… Por ordens superiores. E porquê?
Pensariam os estrategas que nós, cerca de 50 dávamos cabo de 200 IN? Mesmo assim e com a tua prestimosa ajuda no contacto com os nossos camaradas de Binta (poucos), conseguimos sair de lá. E os que nós combatíamos, só conseguiram os seus intentos, apenas por um dia, a chegada a Guidaje aconteceu no dia seguinte.
Aguentamos até ao limite… Nós cumprimos, os nossos superiores, não! Pois é, e no dia seguinte o cerco rompeu… Mas aí já foram quase duas Ccaç, reforçadas com 2 GrComb de CMDS, e passaram claro, com os nossos superiores à cabeça, embora hoje se tente fazer crer que houve um cerco infernal e que ninguém passava…. Coisas que ainda hoje se dizem e escrevem camarada….. E estava tudo tão mal contado….
Valeu tudo, e ainda hoje não emendam a mão, no princípio até esqueceram os nossos mortos… Descansa em paz meu amigo e camarada, não vou insistir para tentar encontrar explicações de quem tão mal nos comandou, pois esses também já partiram… Mas não terei razões para modificar a minha atitude em relação ao IN da altura, não esqueço… e não tenho que prestar contas a ninguém por ter combatido ao vosso lado, a vossa memória impõe que enquanto houver camaradas nossos vivos não deixarei cair no esquecimento as nossas interrogações.
Seja onde for que te encontres fica sabendo, que as esperanças que tinhas em publicar a nossa história, será cumprida, tentarei fazê-lo, é minha obrigação dar voz a quem não pode, e aos que estão incapacitados de o fazer. Será neste blogue de enorme camaradagem, de e para os combatentes, que nos compreenderão, eu terei a responsabilidade de zelar e de falar por ti, para que mais pormenores sejam conhecidos, e para que se escreva um dia a verdade.
E fica prometido que te faremos a homenagem devida, será penoso para mim, mas devemos-te isso a ti, por nós teus amigos e camaradas, pelo teu filho e pela tua esposa.
Paz à tua alma meu amigo e camarada, até sempre!
5 de Agosto de 2013
Manuel Marinho
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Nota do editor
Último poste da série de 10 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11926: In Memoriam (157): Luís Filipe Borrega - † 10 Agosto 2013, ex-Fur Mil Cav MA da CCAV 2749/BCAV 2922 (Piche, 1970/72)
Guiné 63/74 - P11955: Manuscrito(s) (Luís Graça) (9): Em honra da Lourinhã e da(s) sua(s) banda(s) filarmónica(s)
Vídeo (2' 01'): Luís Graça (2013. Alojado em You Tube > Nhabijoes
Lourinhã > Jardim de Nossa Senhora dos Anjos > 15 de agosto de 2013 > Concerto pela Banda filarmónica da AMAL - Associação Musical e Artística da Lourinhã. Maestro: João Alberto de Menezes dos Santos.
Vídeo (4' 38''): Luís Graça (2013). Alojado no You Tube > Nhabijoes
Lourinhã > Jardim de Nossa Senhora dos Anjos > 15 de agosto de 2013 > Marcha da Lourinhã, da autoria de António Epifânio Ribeiro. Banda filarmónica da AMAL - Associação Musical e Artística da Lourinhã. Maestro: João Alberto de Menezes dos Santos
A banda da Lourinhã, centenária mas extremamente jovem, é um exemplo a ser apontado e elogiado. Em honra desta terra, que me viu nascer, e onde costumo passar férias e fins de semana, insiro hoje dois vídeos que gravei da atuação recente da banda da AMAL.
António Epifâneio Ribeiro, autor da marcha ".Lourinhanense", nasceu em 1890 e faleceu em 8 de Fevereiro de 1963. Era natural e residente na Lourinhã. Foi industrial de sapataria, e amigo do meu pai, Luís Henriques (1920-2012) (que faria hoje 93 anos, se fosse vivo).
O Epifânio Ribeiro [, que eu ainda conheci bem, já bastante surdo, tocava pratos na banda!...] dedicou-se à música desde os seus 12 anos, tendo sido um grande músico e compositor na Banda dos Voluntários da Lourinhã e antiga Filarmónica Lourinhanense. Tem nome de rua na sua terra natal (Confrontações: Rua da Bica).
Confesso que, tal como o Chico Buarque, tenho uma fascínio por bandas, e eme especial por ver a banda passar... Enfim, devaneios de verão...
Confesso que, tal como o Chico Buarque, tenho uma fascínio por bandas, e eme especial por ver a banda passar... Enfim, devaneios de verão...
2. Sobre a Banda filarmónica da Lourinhã, hoje da AMAL [, imagem do brasão à esquerda]
Morada: AMAL
Largo Praça José Máximo da Costa
2534 - 500 lourinhã
A Banda da Lourinhã foi fundada em 2 de Janeiro de 1878, com a designação de Filarmónica Lourinhanense, sendo seu fundador e primeiro Maestro o Anacleto Marcos da Silva (1850-1930).
Na década de 1930, a Banda passou a designar-se Banda dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã.
Em 1988 constituiu-se a AMAL - Associação Musical e Artística Lourinhanense, que passou a integrar a banda local.
Durante os seus 135 anos de existência conta, no seu currículo, com inúmeras atuações um pouco por todo o país. Destacam-se os concertos realizados na ex-Emissora Nacional; nas Ruínas do Carmo; no Auditório, ao ar livre, da Fundação Calouste Gulbenkian; no Teatro da Trindade; na Expo-98, entre outros.
No ano de 1990 a Banda deslocou-se à cidade de Augsburg na então Alemanha Ocidental, onde participou num festival de Bandas Civis, com mais de 150 congéneres de vários países da Europa. Nas provas em que foi atribuída pontuação, a Banda ficou classificada em 1ª categoria com mérito na prova de desfile.
Voltou a deslocar-se à Alemanha, no ano de 1993, para participar nas festas da cidade de Calw, onde fez diversas atuações naquela região, tendo obtido grande êxito. Por sua vez, em Maio de 2003, efetuou-se, de um modo honroso, a terceira deslocação da Banda ao estrangeiro, desta vez a Ecully – França, ao abrigo do protocolo de geminação existente ente a vila da Lourinhã e esta cidade francesa.
A Banda deslocou-se ao estrangeiro, pela quarta vez, no mês de Maio de 2011, a Deuil-la-Barre, nos arredores de Paris, também ao abrigo do protocolo de geminação existente entre a vila da Lourinhã e a vila de Deuil-la-Barre, exibindo-se com muito agrado de todos.
Através dos tempos teve na sua Direção Artística vários regentes de que se destacam os Maestros:
Anacleto Marco da Silva (1850-1930), seu fundador;
Francisco Baía; Carlos Franco; Belmiro de Almeida;
Manuel Maria Baltazar (1927-1992) [, que eu conheci bem, era meu conterrâneo e meu vizinho, chefe da banda da armada de 1976 a 1987, reformado da marinha, com o posto de capitão-tenente, vd foto à direita];
Élio Salsinha Murcho e, atualmente, João Alberto de Menezes dos Santos (n. 1964).
Atual presidente da direção da banda da AMAL:
Fernando Gonçalves (telemóvel de contacto: 963846641). Email: amalourinhanense@net.sapo.pt
Fonte: Adapt. de Município da Lourinhã > Banda da Associação Muscial e Artística Lourinhanense
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Nota do editor:
Último poste da série > 18 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11950: Manuscrito(s) (Luís Graça) (8): Périplo amoroso pelas praias da Lourinhã, no nosso querido mês de agosto de todos os aniversários...
Guiné 63/74 - P11954: Notas de leitura (512): Uma Breve História de África, por Gordon Kerr (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2013:
Queridos amigos,
Por uso e costume, as recensões para o blogue versam primordialmente a Guiné de todos os tempos. Acontece que “Uma breve história de África” é um ensaio digno de nota na medida em que em escassas 180 páginas aborda o berço da civilização, as eras antiga e medieval, a chegada dos europeus, a ascensão e queda de Estados como o império do Gana, detalha o comércio de escravos e refere as conquistas europeias e a “Corrida por África” que conduziu à ocupação efetiva e, mais adiante, a descolonização e a África depois da independência.
É sem dúvida um ensaio que traça uma panorâmica e ajuda a compreender as vicissitudes históricas do segundo maior continente.
Um abraço do
Mário
Uma breve história de África
Beja Santos
O título atrai imediatamente, como é que é possível de escrever em 170 páginas a história do segundo maior continente, o berço da civilização, até aos acontecimentos da Primavera Árabe: “Uma breve história de África”, por Gordon Kerr, Bertrand Editora, 2013. Se é facto que foi sobretudo a partir do século XIX que passou a chamar a atenção dos países colonizadores, a África do Vale do Nilo, África Bantu, a presença árabe, as caravanas transportando o ouro e atravessando desertos, impérios como o Gana, o Mali, o Kanem-Bornu e o Songhai, o reino do Congo, a presença de europeus a partir do século XV e o comércio dos escravos, são factos e acontecimentos de uma importância que transcende a própria África. É certo que a documentação é bastante omissa quanto às civilizações do continente, desde a pré-história até ao fim da Idade Média. Como também é verdade que o olhar dos europeus que aqui chegaram também subtraia o estudo do passado, tudo parecia condenado ao vazio. E só muito lentamente se vieram a juntar as pedras do mosaico para hoje se dispor, mesmo com grandes lacunas, de uma certa ideia do que foi o passado de toda a África.
A partir do século XVIII, a historiografia melhorou consideravelmente. Hoje já se sabe com consistência o que foi o Império Songhai e como se desmoronou, o Império Lunda, o Império Rozwi e mesmo o sul de África. Com o século XIX, passa-se a dispor de uma mais ampla informação sobre os Fulas e como irromperam na Guiné, como os Mandingas fundaram um império que se estendia pela África Ocidental, hoje dispõe-se de informação abundante sobre o comércio de escravos, um pouco por todo o continente. O que os europeus conheciam de África cingia-se ao litoral. E em meados do século XIX os exploradores europeus começaram a penetrar no interior da África Ocidental, foram seguidos pelos missionários que procuravam conversões e travar a fé islâmica. O movimento para a abolição do comércio de escravos reavivou o interesse por África. Os exploradores estavam envolvidos em investigações científicas e cresceu a presença de aventureiros que andavam à procura de fama e fortuna.
O autor pormenoriza as atividades destes exploradores naquilo que se chamou a “corrida a África” que se tornou possível pelos desenvolvimentos tecnológicos europeus como os barcos a vapor, os caminhos-de-ferro e o telégrafo, e as armas de fogo modernas. A presença dos europeus era justificada como um dever de civilização, como é óbvio havia outro tipo de ambições, potências como a Alemanha e a Itália desenvolveram a crença de que também mereciam ter o seu próprio império ultramarino. A Grã-Bretanha não podia perder o controlo no Canal de Suez, e por isso ocupou o Egito. A “Corrida a África” foi o principal resultado da Conferência de Berlim (1884-1885), o objetivo era chegar a um entendimento acerca da partilha do continente africano, foi assim que se desenharam esferas de influência. Os franceses que já estavam no rio Senegal estenderam a sua área de influência até às fronteiras dos atuais Gana e Costa do Marfim; os ingleses começaram a constituir o protetorado britânico ao longo da Costa do Ouro (recorde-se que na Conferência de Berlim a Grã-Bretanha declarou o Delta do Níger como seu protetorado). O autor refere igualmente os britânicos e alemães na costa oriental de África, os portugueses em Moçambique, os alemães na Namíbia e a revolução mineira que tomou conta da África do Sul.
No final do século XIX, não havia margem para dúvidas sobre a preponderância do domínio colonial em África. Os africanos opunham-se tenazmente aos povoamentos brancos. O autor descreve vários Estados sobre o Governo colonial, realçando o Congo e a África Oriental alemã. A I Guerra Mundial refletiu-se em África, a Grã-Bretanha invadiu as colónias alemãs da África Ocidental, Togo e Camarões, as tropas sul-africanas ocuparam o Sudoeste Africano Alemão. É facto que os anos entre as guerras marcaram o apogeu do governo colonial em África. Mas os africanos foram encorajados a desenvolver-se num modo “africano”, as potências coloniais permitiam que os chefes mediassem disputas locais, reconheceram os líderes tradicionais mas sempre com o espírito de que os africanos e a cultura africana eram inferiores aos seus equivalentes europeus. Os governadores europeus estavam convictos de que os africanos e a cultura africana eram inferiores aos seus equivalentes europeus. “Ao mesmo tempo que encorajavam os africanos a desenvolver as suas instituições de um modo africano, os europeus insistiam em impor a adoção de estilos e técnicas dos governos ocidentais (…) Para permitir aos governadores africanos funcionar na língua da sua potência colonial, estes tinham de ser instruídos. Foi disponibilizada uma educação ao estilo ocidental, mas com restrições frequentes. Por exemplo, no Congo as autoridades belgas forneciam uma boa educação ao nível do ensino secundário, mas os africanos estavam proibidos de frequentar a universidade”.
A II Guerra Mundial preparou um colapso do domínio colonial. O norte de África conheceu as batalhas e viu a derrota de italianos e alemães; os africanos conheceram o trabalho forçado mas iram igualmente desenvolverem-se infraestruturas em vários locais. Os africanos aperceberam-se que as potências coloniais não eram invencíveis. O autor sintetiza as etapas do movimento pan-africano e a emergência de negritude. A Grã-Bretanha e a França resignaram-se com a independência das suas colónias africanas. O Gana deu o sinal, seguiram-se as independências na África Ocidental e Equatorial Francesa, mudou o mapa do Norte de África (Egito, Sudão, Eritreia e Somália tornaram-se independentes). Dos anos 1950 para os anos 1960, tudo mudou na África Oriental e Central Britânica e no Congo Belga. A África portuguesa ficou independente a partir de 1974 e a independência de Angola e Moçambique influíram decisivamente nos acontecimentos da África do Sul.
O quadro traçado pelo autor da África depois da independência não é muito lisonjeiro. A maior parte dos líderes políticos revelou-se ineficiente na governação. O marxismo tornou-se a filosofia política de muitos dos novos governos nacionais, sucederam-se desastres em cadeia, os políticos sentiram maior lealdade para com o seu grupo étnico e geraram descontentamentos profundos: “A gestão estatal da agricultura era reminiscente da forma como as autoridades coloniais tinham governado e gerou dissensão. Muitos aspetos da vida eram controlados a partir do centro e foram desenvolvidos sistemas de patronato, nos quais os amigos e os parentes dos governantes beneficiavam de novos projetos. Os que se encontravam no poder controlavam todo o dinheiro, quer se tratassem de recursos provenientes de outros países, de organizações humanitárias ou do comércio internacional. As instituições do Estado encontravam-se em desordem e só o suborno, a corrupção e a intimidação funcionavam”. Nos anos 1980, África encontrava-se tolhida pela dívida externa. O autor elenca os principais conflitos, descreve a Primavera Árabe e a nova “corrida por África” em que as empresas dos EUA, da Grã-Bretanha, da França e da China competem pelos favores de regimes caóticos para ter acesso ao gás, ao petróleo e aos diamantes. No essencial, o povo africano continua a viver na pobreza e no desespero.
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Nota do editor
Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11944: Notas de leitura (511): Gentes de Catió na Revista Geographica de 1972 (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Por uso e costume, as recensões para o blogue versam primordialmente a Guiné de todos os tempos. Acontece que “Uma breve história de África” é um ensaio digno de nota na medida em que em escassas 180 páginas aborda o berço da civilização, as eras antiga e medieval, a chegada dos europeus, a ascensão e queda de Estados como o império do Gana, detalha o comércio de escravos e refere as conquistas europeias e a “Corrida por África” que conduziu à ocupação efetiva e, mais adiante, a descolonização e a África depois da independência.
É sem dúvida um ensaio que traça uma panorâmica e ajuda a compreender as vicissitudes históricas do segundo maior continente.
Um abraço do
Mário
Uma breve história de África
Beja Santos
O título atrai imediatamente, como é que é possível de escrever em 170 páginas a história do segundo maior continente, o berço da civilização, até aos acontecimentos da Primavera Árabe: “Uma breve história de África”, por Gordon Kerr, Bertrand Editora, 2013. Se é facto que foi sobretudo a partir do século XIX que passou a chamar a atenção dos países colonizadores, a África do Vale do Nilo, África Bantu, a presença árabe, as caravanas transportando o ouro e atravessando desertos, impérios como o Gana, o Mali, o Kanem-Bornu e o Songhai, o reino do Congo, a presença de europeus a partir do século XV e o comércio dos escravos, são factos e acontecimentos de uma importância que transcende a própria África. É certo que a documentação é bastante omissa quanto às civilizações do continente, desde a pré-história até ao fim da Idade Média. Como também é verdade que o olhar dos europeus que aqui chegaram também subtraia o estudo do passado, tudo parecia condenado ao vazio. E só muito lentamente se vieram a juntar as pedras do mosaico para hoje se dispor, mesmo com grandes lacunas, de uma certa ideia do que foi o passado de toda a África.
A partir do século XVIII, a historiografia melhorou consideravelmente. Hoje já se sabe com consistência o que foi o Império Songhai e como se desmoronou, o Império Lunda, o Império Rozwi e mesmo o sul de África. Com o século XIX, passa-se a dispor de uma mais ampla informação sobre os Fulas e como irromperam na Guiné, como os Mandingas fundaram um império que se estendia pela África Ocidental, hoje dispõe-se de informação abundante sobre o comércio de escravos, um pouco por todo o continente. O que os europeus conheciam de África cingia-se ao litoral. E em meados do século XIX os exploradores europeus começaram a penetrar no interior da África Ocidental, foram seguidos pelos missionários que procuravam conversões e travar a fé islâmica. O movimento para a abolição do comércio de escravos reavivou o interesse por África. Os exploradores estavam envolvidos em investigações científicas e cresceu a presença de aventureiros que andavam à procura de fama e fortuna.
O autor pormenoriza as atividades destes exploradores naquilo que se chamou a “corrida a África” que se tornou possível pelos desenvolvimentos tecnológicos europeus como os barcos a vapor, os caminhos-de-ferro e o telégrafo, e as armas de fogo modernas. A presença dos europeus era justificada como um dever de civilização, como é óbvio havia outro tipo de ambições, potências como a Alemanha e a Itália desenvolveram a crença de que também mereciam ter o seu próprio império ultramarino. A Grã-Bretanha não podia perder o controlo no Canal de Suez, e por isso ocupou o Egito. A “Corrida a África” foi o principal resultado da Conferência de Berlim (1884-1885), o objetivo era chegar a um entendimento acerca da partilha do continente africano, foi assim que se desenharam esferas de influência. Os franceses que já estavam no rio Senegal estenderam a sua área de influência até às fronteiras dos atuais Gana e Costa do Marfim; os ingleses começaram a constituir o protetorado britânico ao longo da Costa do Ouro (recorde-se que na Conferência de Berlim a Grã-Bretanha declarou o Delta do Níger como seu protetorado). O autor refere igualmente os britânicos e alemães na costa oriental de África, os portugueses em Moçambique, os alemães na Namíbia e a revolução mineira que tomou conta da África do Sul.
No final do século XIX, não havia margem para dúvidas sobre a preponderância do domínio colonial em África. Os africanos opunham-se tenazmente aos povoamentos brancos. O autor descreve vários Estados sobre o Governo colonial, realçando o Congo e a África Oriental alemã. A I Guerra Mundial refletiu-se em África, a Grã-Bretanha invadiu as colónias alemãs da África Ocidental, Togo e Camarões, as tropas sul-africanas ocuparam o Sudoeste Africano Alemão. É facto que os anos entre as guerras marcaram o apogeu do governo colonial em África. Mas os africanos foram encorajados a desenvolver-se num modo “africano”, as potências coloniais permitiam que os chefes mediassem disputas locais, reconheceram os líderes tradicionais mas sempre com o espírito de que os africanos e a cultura africana eram inferiores aos seus equivalentes europeus. Os governadores europeus estavam convictos de que os africanos e a cultura africana eram inferiores aos seus equivalentes europeus. “Ao mesmo tempo que encorajavam os africanos a desenvolver as suas instituições de um modo africano, os europeus insistiam em impor a adoção de estilos e técnicas dos governos ocidentais (…) Para permitir aos governadores africanos funcionar na língua da sua potência colonial, estes tinham de ser instruídos. Foi disponibilizada uma educação ao estilo ocidental, mas com restrições frequentes. Por exemplo, no Congo as autoridades belgas forneciam uma boa educação ao nível do ensino secundário, mas os africanos estavam proibidos de frequentar a universidade”.
A II Guerra Mundial preparou um colapso do domínio colonial. O norte de África conheceu as batalhas e viu a derrota de italianos e alemães; os africanos conheceram o trabalho forçado mas iram igualmente desenvolverem-se infraestruturas em vários locais. Os africanos aperceberam-se que as potências coloniais não eram invencíveis. O autor sintetiza as etapas do movimento pan-africano e a emergência de negritude. A Grã-Bretanha e a França resignaram-se com a independência das suas colónias africanas. O Gana deu o sinal, seguiram-se as independências na África Ocidental e Equatorial Francesa, mudou o mapa do Norte de África (Egito, Sudão, Eritreia e Somália tornaram-se independentes). Dos anos 1950 para os anos 1960, tudo mudou na África Oriental e Central Britânica e no Congo Belga. A África portuguesa ficou independente a partir de 1974 e a independência de Angola e Moçambique influíram decisivamente nos acontecimentos da África do Sul.
O quadro traçado pelo autor da África depois da independência não é muito lisonjeiro. A maior parte dos líderes políticos revelou-se ineficiente na governação. O marxismo tornou-se a filosofia política de muitos dos novos governos nacionais, sucederam-se desastres em cadeia, os políticos sentiram maior lealdade para com o seu grupo étnico e geraram descontentamentos profundos: “A gestão estatal da agricultura era reminiscente da forma como as autoridades coloniais tinham governado e gerou dissensão. Muitos aspetos da vida eram controlados a partir do centro e foram desenvolvidos sistemas de patronato, nos quais os amigos e os parentes dos governantes beneficiavam de novos projetos. Os que se encontravam no poder controlavam todo o dinheiro, quer se tratassem de recursos provenientes de outros países, de organizações humanitárias ou do comércio internacional. As instituições do Estado encontravam-se em desordem e só o suborno, a corrupção e a intimidação funcionavam”. Nos anos 1980, África encontrava-se tolhida pela dívida externa. O autor elenca os principais conflitos, descreve a Primavera Árabe e a nova “corrida por África” em que as empresas dos EUA, da Grã-Bretanha, da França e da China competem pelos favores de regimes caóticos para ter acesso ao gás, ao petróleo e aos diamantes. No essencial, o povo africano continua a viver na pobreza e no desespero.
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Nota do editor
Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11944: Notas de leitura (511): Gentes de Catió na Revista Geographica de 1972 (Mário Beja Santos)
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