Vigésimo oitavo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
A vida de emigrante, nos anos sessenta e setenta do século passado, era uma vida de aventura, de coragem, de sobrevivência e de uma força interior, um pouco fora do normal.
Talvez já tivesse sido dito, mas nunca é demais lembrar, que nesses tempos, o emigrante, salvo raras excepções, era uma pessoa com o mínimo de escola, com alguma visão de prosperidade, espírito aventureiro, geralmente novo e com alguma saude física e moral, e desejoso de ter algo a que pudesse chamar seu.
Quando um emigrante abandonava o seu País, o seu lugarejo, deixava de ver as pessoas que lhe eram queridas, e com quem tinha convivido, deixava de beber a água da sua fonte, deixava de ver a paisagem, que só, com a ausência da mesma, é que começava a notar, o maravilhoso, que tinha
deixado para trás. Nessa altura, começava a sangrar por dentro. Ficava triste e chorava perante qualquer contacto, com algo que lhe mostrasse a sua Pátria. A palavra saudade, começava a ter um significado muito importante. Nessa altura tinha que ser muito forte, moral e fisicamente.
Os primeiros anos eram terríveis. A língua, os costumes, o clima e alguma discriminação, eram quase insuportáveis. Demorava alguns anos até tornar-se um natural habitante do País, que escolhia para emigrar. Nesse período de tempo, se não tinha algum suporte humano, motivação interior e alguma sorte nos seus contactos, o emigrante não resistia, e a sua maior alegria era arranjar dinheiro para comprar um bilhete de passagem, e regressar definitivamente ao seu País.
Dada a sua pouca instrução escolar, tinha que se sujeitar aos trabalhos mais pesados e sujos. Enfim, tinham que fazer aquilo que os naturais não queriam fazer. Se a fase dos três ou quatro anos passasse, iríamos ter um emigrante com algum sucesso. Os filhos iriam estudar, pois queriam dar-lhes aquilo que eles próprios não tiveram. Geralmente construíam casa no seu País de origem, iriam ver essa casa nas férias, mas definitivamente, nunca regressariam, pelo menos os que tivessem atravessado o Atlântico.
Isto, salvo raras excepções.
Como por exemplo, o José, cujo nome de guerra era “Arroz com Pão”, o tal cabo do rancho, que conviveu com o Cifra, em cenário de guerra por quase dois anos, a quem o Cifra roubava pão quase todos os dias, e que era oriundo das terras da beira-mar, duma aldeia que pertencia à vila da Murtosa, e que quando regressou a Portugal, casou, e como tinha parentes nos
Estados Unidos, na procura de melhor vida, deixou a sua bateira, onde andava às enguias, que vendia, e que o ajudava a sobreviver e a pôr alguma comida na mesa de sua casa.
Era muito trabalhador, sabia controlar todas as suas economias, pois tinha aprendido muito como cabo do rancho, na sua estadia em cenário de guerra. Tinha alguma ambição e veio para os Estados Unidos, sozinho, à frente, a esposa veio ter com ele mais tarde. Veio na altura em que também veio o Cifra, que agora se chamava única e simplesmente Tony. Viviam na mesma cidade, junto ao rio Passaic, conviviam e continuaram com a sua amizade. O “Arroz com Pão”, cujo verdadeiro nome era José, com a chegada de sua esposa, trabalhando os dois, assim que puderam, compraram uma casa de quatro famílias, já velha, repararam-na, alugaram as quatro famílias, construíram uns aposentos na cave, onde sempre viveram e onde criaram dois filhos.
Em Portugal, nuns terrenos que herdaram dos pais, construíram uma vivenda, último modelo, mobílias novas e lindas, garagem, jardim, com o nome deles na frente em azulejo, sobre a bandeira de Portugal e dos Estados Unidos, para que quem não soubesse, vendo a legenda e as bandeiras nos azulejos, ficassem a saber que eram emigrantes lá nos Estados Unidos, mas o seu coração e a sua casa estava cá no seu Portugal. Nos
terrenos atrás da casa, fizeram uns anexos, que no futuro seriam uns currais para algum gado, ou qualquer outra coisa.
Quando vinham de férias a Portugal, pouco usavam a vivenda, pois estava tudo tão arrumadinho e limpo, que entendiam que não deviam sujar, nem usar. Ocupavam-se em pintar, ou reparar qualquer parte do muro que circundava a vivenda, que estivesse menos bonito com a chuva e o vento que durante a sua ausência tivesse sofrido algumas mazelas, ou em limparem e plantar novas flores no jardim, e lá se arranjavam como podiam nos anexos, usando a vivenda o menos possível. Quando regressavam de férias, e o Tony, lhe perguntava como correram, diziam:
- Não tivemos tempo para nada, há lá tanto trabalho para fazer, a casa está tão linda, que até temos pena de a sujar, só queria que vocês vissem, como temos lá, uma casa tão linda, e o jardim, é mesmo um sonho!
Entretanto os filhos foram estudar, casaram, constituíram família, têm os seus empregos, estão bem na vida, e com um futuro prometedor nos Estados Unidos. Eles decidem, e muito bem, regressar a Portugal. Levam um “contentor” dos grandes, com muitas coisas que achavam que seriam úteis, como por exemplo a mobília do quarto e da cozinha, que lhe tinham custado uma fortuna há trinta anos, uns sofás, muito bons, do melhor, que estiveram sempre cobertos com um plástico, para não se sujar, uma mesa e umas cadeiras, que tinham trazido de uma casa que ajudou a remodelar, de uns senhores muito ricos, numa cidade das montanhas, alguns garrafões de vinho vazios, que guardaram por toda a vida, e entendiam que depois de beber o vinho não se devia pôr fora o garrafão vazio, pois também os tinham pago.
A vivenda nova, último modelo, está completa, mobília e tudo, já não há lugar para mais nada. Então, decidem pôr todo o recheio do “contentor” nos anexos. Arranjar as paredes, pôr azulejos, luz eléctrica, cimento no chão e na frente, tudo muito arranjadinho, e vão viver para lá. A vivenda nova, último modelo, era boa demais para lá viver. Fica lá tudo, arrumadinho, limpinho e fechado, só para mostrar aos amigos, ou alguma visita, que tenha vindo dos Estados Unidos. Pois tinham orgulho em mostrar que tinham uma casa linda em Portugal.
Vivem nos anexos.
Com o tempo, vão fazendo mais arranjos, já têm um bom quarto de banho, com chuveiro, frigorífico dos bons, com duas portas, a televisão que levaram não trabalha, compraram outra nova, e um móvel, que também servia de bar, para pôr a televisão por cima, puseram ladrilhos dos grandes no chão da cozinha, ladrilhos dos pequenos nos anexos, excepto no quarto, onde mandaram pôr uma carpete, daquelas fofinhas, como se via na televisão. Na frente dos anexos, uma cobertura ondulada, em plástico, azul, que dava um certo conforto, e mais ao lado um limoeiro onde penduraram uma gaiola com um melro, onde até vinham comer outros pássaros, fazendo-lhe lembrar o periquito que tinha tido na então província da Guiné, onde tinha passado dois anos em cenário de guerra, que assobiava que era um assombro, já os conhecia, quando lhe davam algumas minhocas, pois nos seus tempos livres, andavam às minhocas para o melro, nas terras vizinhas. Tudo isto era bom, mas andavam um pouco tristes, não era bem tristeza, era qualquer coisa, que os fazia sentir menos felizes.
- Que raio, sempre que regresso de apanhar minhocas, tenho que sacudir e limpar os pés, antes de entrar nos anexos, pois está tudo tão limpinho e arrumadinho! - Dizia o José, inconformado com esta nova situação.
Às vezes tinham mesmo que se descalçarem, quando regressavam de apanhar minhocas para o melro. Dentro de casa havia sempre aquela sensação que não deviam ir para o quarto sem primeiro lavarem e limparem os pés, pois a carpete era nova, podiam ter mandado pôr um plástico por cima, mas custava mais dinheiro, e o homem que instalou a carpete disse que não se usava.
Depois de muito pensarem, chegaram à conclusão de que os anexos estavam bons demais para lá viverem. Vão viver a maior parte do tempo na bateira velha, que tinham antes de emigrar, onde puseram uns paus a segurar a antiga vela, onde se recolhem, nos dias em que há chuva, e ao lado, nos dias em que não chove, fazem uma fogueira com caruma dos pinheiros e assam umas sardinhas ou uns carapaus, que comem com um naco de pão, igual ao que o Cifra, que agora se chama Tony, ia roubar, na cozinha do aquartelamento, na então província da Guiné, ao Arroz com Pão, que agora ainda se deve de chamar José, bebendo uns goles de vinho pela mesma garrafa, e limpando de seguida a boca nas costas da mão, tal qual como faziam antes de emigrarem, sendo totalmente felizes neste humilde ambiente.
Esta é a homenagem do Cifra, que agora se chama Tony, ao Arroz com Pão, que agora ainda se deve de chamar José.
Oxalá que sim!.
Tony Borie,
Agosto de 2013
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Nota do editor
Último poste da série de 17 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11948: Bom ou mau tempo na bolanha (27): A velha diligência (Toni Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Amigo Tony, por estranho que pareça e custe a acreditar, sei que a coisa tem muita verdade aqui escrita. Conheço um caso igual ou muito parecido dum casal que vive nas férias perto de mim e que sempre almoçam ou jantam no quintal para não sujarem a casa de jantar. Têm trabalhado muito lá fora em França, têm dinheiro, mas continuam poupados. Para além disso, têm a vantagem de terem aquilo para que trabalharam, o que nós aqui em Portugal, mesmo trabalhando nunca conseguimos e muito menos agora que temos um (des)governo, que tira só aos trabalhadores. Tudo passa.
Manda mais, e toma lá um abraço do
Veríssimo Ferreira
Camarigo Tony Borié
Tenho lido e apreciado os teus postes,este particularmente .Pouco sei
de ti mas sinto que tens alma de artista, um artista português nos EUA,pois claro.
Parabéns e continua com boa saúde e boa disposição e inspiração para continuares a partilhar as tuas vivências com humor e sensibilidade.
Joaquim L. Fernandes
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