A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado
No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.
CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES
ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU
4 - DA ADAPTAÇÃO AO XITOLE ATÉ AO BAPTISMO DE FOGO
Ainda mal refeitos das primeiras impressões, fomos literalmente “abafados” pelos velhinhos que íamos render, na ânsia de encontrarem entre nós alguém conhecido. Uns e outros, por diferentes razões, tínhamos rajadas de perguntas prontas a disparar.
Como é isto aqui? Quantas baixas tiveram? Quantas vezes foram atacados... e tantas e tantas perguntas para conseguirmos obter alguma acalmia na nossa inquietude.
E os velhinhos disparavam.
- Queres que te arranje uma “lavadeira”?
- De onde vens tu?
- É pá és de Matosinhos? Eu sou de lá perto, sou da Maia e conheço bem a tua terra.
Impelidos por emoções e sentimentos que as circunstâncias ditaram, formamos uma massa humana cuja convivência diária se repartia entre a carinhosa ajuda vinda dos velhinhos e o respeito, e quase admiração, com que os tratávamos. Singular era a forma como os velhinhos se referiam ao tempo que ainda lhes faltava cumprir para acabarem a comissão. Seriam uns quantos dias, horas e minutos e, como estavam felizes por estarem tão perto do fim dos cerca de dois anos de pesadelos.
Vasculhamos o aquartelamento para conhecermos os cantos da casa.
- Olha, ali é a cozinha, olha ali um abrigo e mais outro e outro, olha ali è o depósito de géneros e ali o paiol das munições.
- Olha ali a messe dos Sargentos, o Posto das Transmissões e do outro lado a casa do Chefe de Posto.
- Olha a pista para aviões ligeiros, a placa para os helicópteros e o indispensável campo de futebol,
- Olha aqui é a messe dos oficiais e o quarto do Comandante da Companhia e olha ali ao centro a nossa Capelinha de costas para o bar dos Soldados, e mais para ali fica o Posto de Socorros e a Oficina Mecânica.
Se a tudo isto, juntarmos as valas e os abrigos das armas pesadas, ficamos com um cenário digno de um qualquer Apocalypse Now.
A partilha do mesmo espaço físico por duas companhias implicou o desconforto na acomodação em tendas, alimentação a ração de combate e, por outro lado, saídas conjuntas às tabancas e aos patrulhamentos às zonas envolventes.
Quantos de nós sabiam o que era a Coca-Cola, a Fanta, a Seven-Up? E quantos teriam tido acesso a Whisky, Gin, Vodka, etc.?
Era um mundo de coisas novas, quase irreais, e a guerra ainda não tinha chegado.
Ainda na companhia dos velhinhos fomos iniciados no relacionamento com as populações locais, nomeadamente nas tabancas de Cambessê, Sinchã Madiu, Tangali e Gunti, em que começamos a privar com os Homens e Mulheres Grandes dessas aldeias e em particular na aproximação às “bajudas”.
Até que o dia da partida dos velhinhos chegou.
Uma agitação febril, em que viaturas se misturavam com civis e militares. Com o aproximar da hora, choviam os abraços e os votos sentidos de boa sorte que novos e velhinhos mutuamente trocavam. Ficamos sós, entregues à nossa sorte e aos imponderáveis do nosso futuro próximo.
Os postes que suportavam e garantiam a iluminação dos contornos físicos do aquartelamento, limitavam a área da nossa “Casa”. Tínhamos agora uma percepção do nosso refúgio de segurança. Marcante para um novato que vem duma cidade é a sensação de que, à noite, para além das luzes do quartel, só existe o domínio do escuro profundo da África, tão escuro como nenhum outro até aí sentido.
Aos sons do “silêncio” da noite juntam-se amiúde, tão longe e tão perto, os estouros do despejar de armas pesadas. É a noite sedenta de morte e o afugentar dos nossos fantasmas.
Estávamos por estas alturas no início da época das chuvas.
Eram, a imensa quantidade daqueles enormes morcegos, quase nuvens, que ao fim da tarde toldavam a luz do dia, eram os insectos que rodopiavam numa incessante dança em volta das lâmpadas da iluminação do quartel, eram os pequenos tornados que, levantando poeira e folhagens, anunciavam a proximidade das bátegas de chuva, eram as violentas e assustadoras trovoadas que “rachavam” o horizonte numa demonstração de beleza e poder da Natureza, eram os mangueiros e cajueiros carregados de fruta madura mas que ainda não haviam conquistado o nosso paladar, eram as terríveis formigas e abelhas de tão má memória, era enfim a lenta descoberta dos segredos que a África nos escondia.
Como foi chocante e dolorosa a noite em que tombou o nosso camarada no seu posto de sentinela. Enquanto a maioria do pessoal se divertia, assistindo a um filme projectado no grande depósito de géneros e protagonizado pela actriz espanhola Sarita Montiel, o Sargento de dia na sua ronda pelos postos, apercebeu-se de que algo de anormal se passaria com a sentinela junto da Casa do Chefe de Posto.
Dado o alarme, a equipa de Enfermagem tentou, até à exaustão, todas as manobras de reanimação ao camarada prostrado no chão e que não dava sinais de vida. Foram infrutíferas todas as tentativas realizadas. Perdemos o nosso primeiro camarada, e não conseguimos evitar um sentimento de sofrida impotência por não lhe podermos valer. Era a primeira lição da vida para esta dura e amarga realidade que nos cerca, que é a brutalidade da morte. Havendo dúvidas sobre a causa do falecimento, foi destacado de Bissau um médico para se proceder à autópsia do cadáver do nosso camarada.
Lembram-se camaradas? Foi no topo da pista, resguardados dos olhares pela colocação de viaturas e, seguindo as indicações do médico, executamos pela primeira vez na vida essa difícil e arrepiante tarefa.
Após termos terminado o nosso trabalho, o médico concluiu que o nosso camarada caíra fulminado por um ataque cardíaco e, teve o cuidado de nos mostrar a lesão causadora da morte. Este era o enredo do filme que estávamos a viver, porque o outro já não foi projectado até ao FIM.
Assim se ia adquirindo a carapaça que nos tornaria mais experientes e capazes de enfrentarmos as dificuldades que iríamos inevitavelmente encontrar.
E a vida continuava, cada um carregando o fardo onde continuavam a caber todos os sonhos e esperanças. A malária atingia já um número significativo de camaradas e constituía uma grande preocupação para o pessoal do Serviço de Saúde e para o Comando da Companhia.
Segundo informações que nos chegaram de Bissau, a percentagem de pessoal com baixa devido à malária era, naquela época, a mais elevada em toda a Guiné. O apoio na assistência sanitária às populações das tabancas mais afastadas era, para o pessoal de Enfermagem, uma oportunidade de conhecimento das realidades culturais e humanas daquelas gentes simples e acolhedoras, a quem nos ligamos irremediavelmente para toda a vida.
Continuaram os patrulhamentos no mato circundante para se garantir o domínio da zona. As idas às proximidades de Seco Braima, zona de confluência do rio Pulon com o rio Corubal, apesar de regulares, eram motivo de muita preocupação, porque não raras vezes se assistiam a movimentos de agricultores do PAIGC nas bolanhas para além das margens do Pulon. As repetidas sortidas a essa zona, sem registo de qualquer confronto, criaram uma falsa e perigosa sensação de segurança. Até que o inevitável aconteceu.
No regresso de mais uma patrulha às proximidades de Seco Braima e, quando 1.º GRCOMB, por se encontrar muito próximo do Xitole aligeirou os procedimentos de segurança, surgiu uma gazela que em fuga se cruzou com o pelotão.
Um dos camaradas, dando-se ares de caçador, levanta a arma e faz um disparo. Foi uma atitude que, pelos insondáveis percursos do destino, salvaria alguns dos nossos.
Os nossos camaradas, ao disparo, procuraram protecção nas árvores e nos baga-baga.
Nas proximidades estava emboscado um grupo do PAIGC que interpretou o disparo como um sinal de que haviam sido detectados e, mesmo reagindo de imediato e intensamente, encontraram os nossos camaradas fora da zona de morte e protegidos.
A resposta pronta ao fogo do inimigo e o apoio do pelotão dos morteiros do Xitole que bateu a zona, obrigaram o PAIGC a retirar, deixando no local rastos de sangue.
Foi o nosso BAPTISMO de fogo... felizmente sem qualquer consequência para o nosso pessoal, para além das bocas secas provocadas pela elevada tensão do momento.
E como num conto infantil, “A gazelinha salvou os meninos”.
O PAIGC veio testar a nossa capacidade de resposta e, se possível, marcar negativamente o inicio da nossa Comissão com as consequências que traria ao moral da Companhia.
E assim, tivemos a primeira aula prática do curso “VAIS VER COMO ELAS TE MORDEM”
Apoio sanitário às tabancas
Com Galé Djaló, auxiliar da equipa de saúde
Vista da zona central do Xitole
Chegada do helicóptero com o correio ou algo mais
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11945: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (3): Da chegada a Bissau ao aquartelamento no Xitole
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