Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > 7 de janeiro de 1974 > Alguns dos efeitos do ataque ao quartel e tabanca de Fulacunda
Fotos (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da pré-publicação do próximo
Cortesia do autor, página do Facebook |
(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje: que o digam mais de 150 mil portugueses!), tendo sido criado pela avó materna;
(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;
(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade no âmbito do programa Novas Oportunidades; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);
(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.
2. Sinopse dos postes anteriores:
(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;
(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);
(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré; o dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;
(v) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas da companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;
(vi) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;
(vii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe"; a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";
(viii) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...
(ix) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.
(x) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;
(xi) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.
(xii) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);
(xiii) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;
(xiv) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;
(xv) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não... no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda; manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada; em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.
(xvi) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas; em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.
(xvi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas; o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;
(xvii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];
(xviii) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;
(xix) vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; manda um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...
(xx) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné;
(xxi) grande ataque, em 7/1/1974, ao quartel e tabanca de Fulacunda com canhões s/r, resultando danos materiais, feridos entre os militares e a população e a morte de uma criança.
3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 65 e 66
[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
65º Capítulo > O ataque ao quartel
3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 65 e 66
[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
65º Capítulo > O ataque ao quartel
Talvez até agora este seja o momento mais doloroso. Tenho de escrever sobre o mais grave ataque que a minha companhia sofreu. Se escrevesse de memória, jurava que nada disto se passou. Se os meus ex-camaradas de guerra não estiverem de acordo, lamento imenso, mas tal como já me referi ao ler o que escrevi há 45 anos, parece-me que a minha guerra foi outra.
“Estamos debaixo de fogo muito intenso. Vamos morrer todos”
Somente esta frase está escrita numa folha de papel. O que se segue está noutras duas folhas datadas de 8 de Janeiro de 1974.
“Minha eterna adorada.
Ontem sofremos um grande ataque, não sei muito o que aconteceu, mas o cheiro a pólvora e a queimado ainda se sente no ar.
Os meus colegas tinham ido para o mato fazer segurança, mas em vez de irem para o sítio onde o capitão mandou, ficaram ali perto da pista, os “turras” vinham atacar-nos ao arame e viram que eles estavam no mato e parece-me que avisaram os deles que tem os canhões sem recuo para em vez de atingir o quartel atingi-los a eles que lá não tinham abrigos.
Deviam ser seis horas quando ouvimos as primeiras saídas e fomos todos para os abrigos, os primeiros rebentamentos foram muito perto foi o Silva que disse que as bombas estavam a cair fora do quartel. Acho que as primeiras caíram em cima dos meus colegas que fugiram à balda do mato para o quartel sendo uma confusão enorme na pista 1 e na pista do meio porque não cabiam lá todos e parece que alguns estavam feridos.
O Cruz disse que ao atravessarem a pista, decerto estavam alguns “turras” na ponta a disparar Kalashnikov e R.P.G, também não sei se atingiram algum, mas disse que os nossos não podiam disparar logo, com medo de atingir algum colega que ainda estivesse no mato.
Eu estava nos Lagartos, ouvia tiros e bombas de todos os lados, mandaram-me ir buscar uma caixa de Dilagramas ao paiol. Tive muito medo acho que não devia ter ido porque é longe mas já não havia mais onde eu estava para o meu colega atirar. Um condutor ainda fez pior pois andava no Unimog de lado para lado nem vi quem era o doido.
Depois parecia que as bombas caíam mais perto e começamos a ouvir os nossos obuses a disparar. Nunca tinha ouvido um barulho tão horrível na minha vida. Fiquei aterrorizado, soube há bocado que mandamos mais de trezentas bombas. Onde estávamos ouvíamos a população a gritar e víamos chamas, mas só hoje é que soube que muitas tabancas foram atingidas e numa dela morreu um menino.
Já era muito tarde quando o ataque acabou, logo que eu saiba mais alguma coisa digo-te. É verdade, pelo menos os meus amigos mais próximos não sofreram nada.
Um beijo apaixonado do teu Dino”.
Não possuo a correspondência dos três dias seguintes, apenas me voltei a referir a este ataque dias depois, nos seguintes termos:
“Os meus colegas que foram fazer o reconhecimento ao local de onde nos atacaram com os canhões disseram-me que as nossas bombas destruíram um espaço enorme onde os “turras” estavam e que até havia sinais de sangue dos feridos deles”
Lamento sinceramente não ser mais específico e compreendo que os leitores que se deram ao incómodo de ler até aqui se sintam algo confusos, mas não posso, com sinceridade, dizer mais nada sobre este violento ataque que as nossas tropas sofreram.
Na carta seguinte, 9/1/74, falo de anedotas picantes e que o capitão não me cobrou o dinheiro dos artigos que faltaram na cantina. Acreditou que os roubaram durante o ataque de Novembro [de 1973].
Também me refiro que o carteiro iria omeçar a cobrar dinheiro por levar o correio tal o volume que transportava só da minha parte. Seria verdade?
“Os meus colegas que foram fazer o reconhecimento ao local de onde nos atacaram com os canhões disseram-me que as nossas bombas destruíram um espaço enorme onde os “turras” estavam e que até havia sinais de sangue dos feridos deles”
Lamento sinceramente não ser mais específico e compreendo que os leitores que se deram ao incómodo de ler até aqui se sintam algo confusos, mas não posso, com sinceridade, dizer mais nada sobre este violento ataque que as nossas tropas sofreram.
Na carta seguinte, 9/1/74, falo de anedotas picantes e que o capitão não me cobrou o dinheiro dos artigos que faltaram na cantina. Acreditou que os roubaram durante o ataque de Novembro [de 1973].
Também me refiro que o carteiro iria omeçar a cobrar dinheiro por levar o correio tal o volume que transportava só da minha parte. Seria verdade?
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Nota do editor:
Último poste da série > 30 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18881: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 63 e 64: que grande burro!, aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta [, o meu voto de castidade]...