terça-feira, 6 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18383: Estórias do Zé Teixeira (46): Uma chapelada de piolhos (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)



1. Em mensagem do dia 26 de Fevereiro de 2018, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais uma das suas estórias, esta metendo parasitas difíceis de controlar.


ESTÓRIAS DO ZÉ TEIXEIRA

46 - Uma chapelada de piolhos

O Dionísio era um rapaz alegre e camaradão. Onde houvesse sinais de festa, lá estava ele para dar duas de conversa, beber uns copos, contar umas anedotas e dar umas sonoras gargalhadas. Não era de admirar a sua paixão em passear pela tabanca, sobretudo à noite, onde se sentia bem e por vezes conseguia dar “um pézinho de dança”, nas festas familiares de aniversário, casamento ou qualquer outra, conforme as raízes culturais de cada etnia.

Um belo dia de Novembro de 1969, apareceu, manhã cedo, no refeitório para o “mata bicho” com um frondoso chapéu de palha, tipo brasileiro que se via muito nas fotografias do carnaval do Rio. Não faltaram os mirones à volta dele, com dichotes e piadas. Insensível, mas orgulhoso, o Dionísio comentava alegremente, enquanto comia as sopas de pão envolvidas em leite com borras de café: "dores de cotovelo é o que vocês têm!"

Durante dois ou três dias pavoneou-se pelo quartel e pela tabanca todo ufano, de chapéu na cabeça, como um brasileiro. De noite fechava o chapéu a sete chaves no seu cacifo, para que ninguém ousasse pô-lo na sua cabeça ou fazê-lo desaparecer. Consta que até tentou sair para o mato com o chapéu a substituir o quico.

Um dia, estava eu a ler pela undécima vez uma fotonovela, deviam ser umas dez horas da manhã, quando vejo o Dionísio, vir na minha direção, sem o chapéu e com cara de poucos amigos.
- Que se passa Dionísio? Parece que viste um fantasma!
- Um fantasma, não! Os filhos da puta são aos milhões. Cabrões! Mas vou dar cabo deles!
- Vá! Tem calma. Isso passa.
- Há de passar, há de! Arranja-me um frasco de DDT!
- Tás maluco?! Para que queres o DDT?
- Anda lá! Só preciso de umas gotas. Não demores que eu não aguento mais!

Nem me passou pela cabeça que ele queria o produto químico para matar piolhos que trazia escondidos debaixo do cabelo. Fui buscar o frasco de DDT, que ele me arrancou logo das mãos, e para meu espanto vejo o Dionísio encher a cova de uma mão com o produto e esfrega-la com todo o vigor na cabeça.

Numa fração de segundos, mais parecia um macaco cão a guinchar e a gritar. Ai que eu morro! Ai que eu morro! Acudam-me, estou a arder! Acudam-me... Acudam-me...

Nunca tinha visto tamanha aflição. A respiração tornou-se ofegante, o corpo tornou-se avermelhado, os olhos parece que queriam saltar-lhe das órbitas e ele gritava, gritava de dor e de pavor. E eu tremia de angústia.

Meti-o debaixo do chuveiro, que havia ali na enfermaria (felizmente o depósito tinha água). Baixei-lhe a cabeça e deixei correr o precioso líquido durante longos minutos. Ensaboei-o umas cinco ou seis vezes e ele foi acalmando. Até que o ardor lentamente desapareceu e o perigo passou.

- Se apanho aquele sacana espeto-lhe um tiro nos cornos! Comentou.
- Bem! Conta lá o que se passou que estou em pulgas para saber o que te levou a cometer tão grande disparate. Puseste a tua vida em perigo e pregaste-me um grande susto - disse-lhe com ar de zangado.
- Na quarta feira à noite fui até à tabanca dos manjacos. Estava lá uma garina meu! Nem te passas. Com um corpo escultural e de mama mais que firme. Linda como o sol! Com ela estava um grupo de rapazes da nossa idade que eu nunca os tinha visto em Empada. O grupo dançava, dançava, e eu aproveitei para dar duas de dança e de conversa à catraia. Um dos mancebos trazia o chapéu de palha e comprei-lho por vinte pesos. Nem sonhei que o chapéu trazia uma carripana de piolhos. Eram às toneladas a embrenharem-se por entre o meu cabelo. Olha, nestas duas noites não dormi, com a puta da comichão. Agora de manhã, pus-me a olhar para o chapéu e é que descobri de onde vinha a piolheira. Queimei-o logo, mas a comichão era tanta que... nem te passas!
- Por que não falaste comigo antes? Temos ali remédio para piolhos. Merecias quatro sopapos, meu.
- Pois! E a vergonha que eu sentia? Foda-se pá! Toda a gente me cobiçou o chapéu... e ele estava cheio de piolhos.

O tal grupo não mais apareceu na tabanca. Se foi coincidência eu não sei. Só sei que, três dias depois, os nossos amigos vieram visitar-nos ao cair da noite junto ao arame e voltaram de madrugada para chatear, matando-nos o Conceição Caixeiro.
Encontrei há tempos o Dionísio. Velho como eu, de cabelos brancos como eu, mas de farta cabeleira.
- Tás a ver - diz-me ele com o seu velho olhar de gozão - se tivesses usado o DDT talvez hoje tivesses mais cabelo!

Zé Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17598: Estórias do Zé Teixeira (45): O Valente, um homenzarrão, com um coração tão grande quanto o seu físico (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

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