quarta-feira, 7 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18388: Historiografia da presença portuguesa em África (112): Um estudo desconhecido sobre a etnia Manjaca em O Mundo Português, por Edmundo Correia Lopes (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Há algo de original e inovador no trabalho rudimentar deste etnógrafo. Desembarcaram uns manjacos no porto de Lisboa e num ritmo de boa convivência o cientista social procurou indagar elementos sobre a estrutura social, espiritualidade, a música, a língua, o posicionamento da etnia, medularmente animista, entre os islamizados. O autor confessa que é trabalho rústico, pesquisa de poucos elementos com exceção daqueles que ele foi repertoriando noutras jornadas científicas, como a que fez nos Bijagós. Inovador na justa medida em que só anos depois é que é lançado o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e pedido aos administradores de circunscrição que fizessem inquéritos e elaborassem relatórios, documentação que, como se sabe, ainda é hoje é basilar no estudo etnográfico, etnológico e antropológico na Guiné. É uma curiosidade, mas há que reconhecer os seus méritos.

Um abraço do
Mário


Um estudo desconhecido sobre a etnia Manjaca (2)

Beja Santos

Tem-se aqui repetidamente falado da publicação O Mundo Português, da Agência Geral das Colónias, teve a sua influência nas décadas de 1930 e 1940, apresentava-se como revista de cultura e propaganda, incluía discursos das figuras gradas do Estado Novo, artigos de divulgação histórica, pequenas reportagens e até ensaios. Figuras importantes do modernismo português como Stuart, Jorge Barradas, Manuel Lima, Bernardo Marques e Diogo Macedo emprestaram a sua colaboração ao nível gráfico.

Entre Maio e Novembro de 1943 apareceu em O Mundo Português um conjunto de artigos sobre a etnia Manjaca assinados por Edmundo Correia Lopes. Encontramos no Google os seguintes elementos sobre o autor: Edmundo Correia Lopes (1898-1948), filólogo e etnógrafo, distinguiu-se como estudioso africanista, e desde cedo a cultura das colónias portuguesas despertou nele um profundo interesse. Formado em Letras, publicara já um repositório de música tradicional, fruto do seu apego à cultura popular, quando embarcou para o Brasil em 1927 e se fixou no Rio de Janeiro e em São Paulo, tendo percorrido Pernambuco, o Ceará e a Amazónia. Faleceu no arquipélago dos Bijagós, onde integrava uma missão etnográfica ao serviço do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

O estudioso propôs-se apresentar de forma resumida os dados que obtivera sobre a etnia, a língua, a vida material, a estrutura familiar, a música e a vida espiritual. Em texto anterior fez-se aqui uma síntese dos elementos apresentados sobre as origens da etnia, a língua e a vida material, vamos agora apreciar os restantes elementos.

Quanto ao clã e família, o clã é matrilinear, mas há jogo complexo de elementos que devem ter sido em conta, caso dos direitos políticos hereditários e os régulos eletivos, as relações económicas e até as classes de idade. Os Manjacos de Pecixe não caçam fora da ilha. O clã é que sucede e a representação do seu direito de sucessão está no irã, isto quanto a direito políticos e acerca da sucessão do régulo. Diz o autor que é necessário não fazer confusão entre a família e a unidade de ordem superior – o clã – embora ambas sejam de natureza matrilinear. E depois de citar o que conseguiu apurar da entrevista feita aos Manjacos que vieram a Lisboa tira a conclusão de que há necessidade de orientar o estudo dos Manjacos de modo a conhecer a organização do clã, a extensão da sua influência política, ritualística e social. E diz mais: as interdições matrimoniais não são determinadas apenas, como entre nós pelo parentesco carnal mas pelo classificatório. Os enteados tratam os padrastos como pais e portanto os padrastos não podem casar com enteados e com maior razão o não podem fazer sogro com nora ou sogra com genro, porque se tratam de pais a filhos. Tratamento de irmão estende-se aos primos coirmãos.


As fábulas e narrativas da cultura Manjaca parecem aparentar-se com a de outras culturas quanto ao uso de animais, caso da hiena, raposa, lobo, lebre, crocodilo. Tratar-se-á de moralidades espelhadas por histórias de animais, como ele narra:
“Um homem levava a corda para subir à palmeira para ir procurar coconote. Via um lagarto (crocodilo). O lagarto disse-lhe: leva-me para o mar. Tem paciência, leva-me para a água. Tem vinte dias que não como. O homem respondeu: eu levo-te e tu matas-me para me comer. O lagarto disse: não te como. Amarra-me a boca, amarra-me o pé. O homem pegou no lagarto ao colo e levou-o para o rio. Chegado ao rio, disse: arreio-te aqui. Avança mais, insistiu o lagarto. O homem avançou. O lagarto disse: arreia-me. Quando o homem o arreou o lagarto mandou que o soltasse e o homem soltou-o. E ele: agora, eu como-te. E o homem respondeu: então, faço-te bem e tu pagas-me mal? O lagarto replicou: digam os três que passaram qual é a verdade. Passou uma velha. O lagarto perguntou-lhe: se alguém faz bem não é com mal que lhe pagam? A velha preta, animal de carga desprezado pelo marido, podia confirmar a sentença diabólica do crocodilo. O mesmo se passou com um cavalo velho, agora abandonado. Só a lebre é que não partilhava de igual doutrina, manifesta incredulidade do facto do homem ter transportado crocodilo para o rio e insiste em que se repita a operação…”.
Esta história foi contada ao autor por António Pecixe, é muito conhecida no folclore Mandinga, tem várias versões.


Falando da estrutura musical Manjaca, diz que o padrão musical é muito simples, há de certo modo uma íntima associação com a vida espiritual, as composições musicais possuem temas próximos da sacralidade, mas também entre o sagrado e o profano, as divisões do trabalho, os ritos de promoção, os requisitos e condicionalismos do casamento e os respetivos festejos. Os casamentos obrigam a grande matança de cabeças de gado e há etapas a percorrer: os pedidos de casamento realizam-se em Maio mas só em Janeiro seguinte é que os casais podem erigir a sua palhota, mesmo que vivam já em mancebia.

Falando do fanado, o autor diz que este não tem nenhuma originalidade e observa:  
“Lá encontramos o irã representado num mascarado de pele branca, barbado, cabelos crescidos que lhe caem sobre as espáduas, pequenos e mofinos olhos encarnados, da cor do manto de mangas curtas, segurando na mão a espada. Assim, pelo menos, os novos lhe pintam a máscara, designando o mascarado pelo mesmo nome que os Mandingas – Kankura. Bastaria esta aproximação para nos persuadir que se trata de uma influência dos povos centrais (Fulo-Mandingas) sobre este povo atlântico, a que devia naturalmente corresponder uma iniciação incruenta, como a dos Bijagós".
Falando dos Beafadas, população vizinha dos islamizados, que estavam a ser progressivamente islamizados, observa também que os Manjacos são muito diferentes dos Beafadas. Além de não terem atração pelo islamismo, tem ritos de passagem bastante distintos e descreve com algum pormenor a sociedade do fanado. Termina esta série de artigos dizendo que procura aproveitar o melhor do que colheu sobretudo pela originalidade e a paciência em pescar etnografia africana à beira do Tejo, não esconde que os elementos obtidos carecem de mais estudo, para maior clarificação.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18365: Historiografia da presença portuguesa em África (110): Um estudo desconhecido sobre a etnia Manjaca em O Mundo Português, por Edmundo Correia Lopes (1) (Mário Beja Santos)

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