terça-feira, 23 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19131: Efemérides (292): Há exactamente 50 anos que embarquei para a Guiné - 23.10.68-23.10.18 (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG - STM/QG/CTIG)

1. Mensagem de hoje, 23 de Outubro de 2018, do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), a propósito da data em que se perfazem 50 anos do seu embarque para a Guiné:

Há exactamente 50 anos que embarquei para a Guiné 
23.10.68 – 23.10.18

Tudo começou muito antes

A Inspecção Militar a que todos os mancebos eram sujeitos, era o princípio da vida militar e era feita na sede do concelho de residência dos referidos, no ano em que se faziam vinte anos. Eu, porque tinha nascido e morado sempre em Alcanena, foi na minha terra que fui inspeccionado juntamente com os outros quarenta e nove. Logo de manhã fomos para o Salão Nobre do edifício da Câmara Municipal, portas fechadas e janelas corridas, mandaram-nos despir e deram-nos um papel onde um soldado apontou o nosso peso e a nossa altura. Todos nus, com um papel na mão.

No Gabinete do Presidente da Câmara estavam os médicos militares que nos inspeccionavam, um a um, muito à pressa e lá nos davam a notícia que estávamos “apurados” para todo o serviço militar. É certo que um ficou “esperado”, porque era baixo e gordo e outros dois ficaram “livres” sem se saber porquê.

Quando nos íamos vestindo o tal soldado que nos tinha pesado e medido vendia-nos uma fita verde e vermelha, com um alfinete, para colocarmos na lapela do casaco, a dizer que estávamos apurados. Os que ficavam livres, tinham direito a uma fita branca.

Nesse dia, apesar de tudo foi dia de festa. Houve jantarada do grupo e depois baile até de madrugada. Era assim.

Depois foi só aguardar que os editais nos chamassem para a vida militar. A minha sorte mandou-me para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, no dia 10 de Outubro de 1967. Era uma segunda-feira e tudo era novo para aqueles trezentos e sessenta recrutas do Curso de Sargentos Milicianos. A maioria, onde eu estava incluído, só entrou depois do almoço e depois de ter sido dado mais um toque no cabelo, e lá entrámos. Logo de seguida fomos receber o fardamento, deram-nos um número – eu era o 2060/67 – indicaram-nos a caserna e o nosso número lá estava numa cama. Nada de enganar.

Aprendemos, assim-assim, a formar para o jantar. O refeitório era do outro lado da parada, no primeiro andar. E lá jantámos tendo-nos sido dito que às nove horas tínhamos uma palestra no mesmo refeitório para aprendermos o que era a tropa. Claro que ninguém faltou. Todos presentes para aprender onde estávamos metidos. O porta-voz foi o Comandante do meu Esquadrão, o Tenente Sentieiro que em palavras simples nos elucidou perfeitamente onde estávamos e o que o futuro nos reservava. Dessa palestra há passagens que ficaram na memória e que hoje aqui merecem ser recordadas. Por exemplo: “Essa coisa onde estão a deitar a cinza dos cigarros e as beatas, agora é um cinzeiro, mas amanhã de manhã é uma chávena de vista alegre para beberem o café com leite e à hora do almoço é um copo de cristal por onde vão beber o vinho ou a água”. Afinal aquilo era só um púcaro de alumínio… Outra dessa noite com alguma piada, mas sem graça nenhuma, foi quando o orador nos disse que só poderíamos sair para a rua quando soubéssemos todos os postos da hierarquia militar e bem assim os que mereciam ser cumprimentados militarmente – com continência – para evitar que fossemos bater pala ao porteiro do Hotel Abidis que tinha uma farda que parecia um marechal. E assim foi.

No outro dia foi o princípio. Aprendemos a marchar, aprendemos a rebolar nas barreiras, a saltar ao galho, a fazer a ponte interrompida, saltar a vala, rastejar, subir ao pórtico e lá fazermos alguma manobras, saltar das camionetas a não sei quantos à hora, devidamente enrolados, e sempre a marchar.

As barreiras, antes da recruta acabar, foram proibidas. Não por causa de alguns braços partidos e outros pequenos ferimentos, mas porque as fardas estavam a desfazer-se.

O tiro era treinado, de dia e de noite, na Carreira de Tiro fora do quartel com todo o tipo de arma desde a pistola até às várias metralhadoras pesadas.

As instruções nocturnas eram normalmente às terças e quintas-feiras e duravam até depois da uma da manhã, quando não era até mais tarde. Íamos para as Ómnias, lá para as margens do Tejo, para o Monte do Zé Morto, para o caminho de Rio Maior e na semana de campo fomos para lá da Chamusca, sempre a pé e com a carga toda às costas, incluindo a Mauser e o Capacete na cabeça. Nessa semana nem uma tenda pôde ser montada, apesar de irmos carregados com todos os apetrechos. Parece que o “inimigo” estaria ali por perto. Ordens são ordens. Esta semana de campo foi depois da tragédia das cheias, inundações e morte de centenas de pessoas na zona de Vila Franca, Alenquer, Loures e Odivelas. Só para nos centrarmos no tempo.

Depois de tudo isto, lá chegou o dia do Juramento de Bandeira e logo a seguir ficámos a saber que a maioria do pessoal, daqueles dois Esquadrões de Instrução, tinha chumbado e passado para o Contingente Geral. Dos trezentos e sessenta, foram só duzentos e um que chumbaram. E mais tarde, já na Guiné, é que vim a saber de fonte segura a razão de tanto chumbo. Foi o Comandante daquele Grupo de Esquadrões de Santarém, que também estava na Guiné e, infelizmente, lá morreu no acidente do helicóptero que caiu e onde iam também alguns Deputados da Assembleia Nacional que estavam de visita à Guiné que morreram também, que me disse que tinha havido um erro na classificação das pautas de tiro, que dependiam da Direcção da Arma de Infantaria a quem podiam pedir a revisão das mesmas. Mas como éramos de Cavalaria, ficou assim.

Não vale a pena continuar a falar, agora da especialidade, nem do resto do tempo até ao embarque. Mas passei pelo RTM no Porto onde tirei a especialidade, fui depois para o BT, na Graça, em Lisboa, a seguir para o QG em Tomar, depois de mobilizado voltei ao BT, e logo de seguida fui para o 15 em Tomar, que foi a minha Unidade Mobilizadora e na véspera do embarque fui passar a noite aquele hotel estrelado que era o Depósito Geral de Adidos.

É verdade. Parece que foi ontem e já lá vão CINQUENTA anos desde o dia do embarque para a Guiné, mas está tudo bem guardado na memória.

Depois de uma noite muito mal dormida nos Adidos, na Calçada da Ajuda, logo de manhã lá estava ataviado a preceito para embarcar para a guerra.

Dois dias antes, ainda no RI 15 em Tomar, a minha Unidade Mobilizadora, soube que ia para o BCaç 1911 que nunca vi e que parece que veio no barco onde fui, apanhei uma boleia com um senhor da minha terra que lá foi buscar o filho, para também embarcar para a guerra, salvo erro era para Angola. Lá fomos os três no Volkswagen 1300 do senhor, a caminho dos Adidos em Lisboa. Almoçámos, já não me lembro onde, e lá chegámos à capital do Império e aos Adidos.

Entrámos os dois pela porta de armas, cada um foi para o seu sítio, mas no dia seguinte deixei de o ver. Afinal ficou cá. Não chegou a embarcar. Tinha as suas mazelas certamente.

No dia do embarque, no dia 23 de Outubro de 1968, como disse, logo de manhã lá estava fardado como deve ser, de saco às costas com os meus pertences. Foi só esperar que as camionetas começassem a chegar para levar toda aquela malta de rendição individual para o cais de Alcântara. Éramos cerca de sessenta, tudo de cabeça baixa, sem saber para onde ia.·

Quando chegamos ao Cais, o grosso dos expedicionários já estava devidamente formado; era o Batalhão de Caçadores 2856, também do RI 15 de Tomar, constituído por quatro Companhias, mais um Pelotão de Polícia Militar que ia para Cabo Verde e ainda outras Unidade mais pequenas, género Pelotões de Canhão Sem Recuo, Pelotões de Apoio Directo, etc.·

Nós ficámos livres da formatura e, certamente por isso, fomos dos primeiros a embarcar. Ao cimo das escadas lá estavam as senhoras do MNF – Movimento Nacional Feminino a darem um maço de cigarros "Porto", um isqueiro e uns aerogramas a cada um. Também por lá se viam uns senhores de chapéu e de sobretudo, que alguns mais vividos diziam serem da PIDE.

O Uíge atracado à espera, com a tropa formada, depois de um General ter passado revista às forças ao som de uma Banda Militar, depois dos discursos da ordem, lá começaram a embarcar, sempre com a Banda a tocar marchas militares.

Os nossos familiares estavam do outro lado das barreiras e muitos nas varandas da Gare, com os lenços brancos nas mãos e as lágrimas nos olhos.

Os lenços brancos a acenar eram mais do que muitos. Da minha parte lá estavam os meus pais e os meus tios que moravam em Lisboa. Sabia mais ou menos onde eles estavam posicionados porque tínhamos combinado antecipadamente. A amurada do barco do lado do Cais estava repleta de militares o que provocava um relativo adornar do navio.

Entretanto, cerca do meio-dia, as máquinas do navio começam a fazer mais barulho e a silvar. Vêem-se já os rebocadores que o há-de ajudar a largar e a ganhar o rumo da Barra do Tejo. Foram momentos difíceis de descrever. Adivinhávamos facilmente que os familiares no Cais choravam. Alguns até gritavam e ouvia-se bem apesar da distância ser cada vez maior. Mas ouvia-se.

Navio Uíge em Bissau
Foto: Torcato Mendonça

A bordo também havia lágrimas em muitos olhos. O barco ganha rumo, a ponte "Salazar", era assim que se chamava a que hoje se chama "25 de Abril", começa a ficar cada vez mais perto, até que passámos por baixo dela. Dali até à Barra e depois ao mar alto parece que foi um momento.·

Mal ou bem lá fomos encaminhados para os nossos aposentos, para largarmos o nosso saco e para tomarmos conhecimento dos nossos beliches. A esmagadora maioria, onde eu estava incluído, viajou nos porões que noutras viagens transportavam tudo e mais alguma coisa. O cheiro era horroroso. As camas eram mesmo tipo beliche, mas em madeira de pinho, com colchões de palha e uma manta da tropa em cima. A estrutura das mesmas, porque em madeira, estava já cheia de dedicatórias de toda a ordem que se possa imaginar, fruto de outras viagens de idas e de regressos.

Já no mar alto fomos para a primeira refeição, o almoço, numa sala grande, a sala de jantar do barco, e a comida era aquela que nos quiseram dar, porque os orçamentos naquela altura já eram apertados, mas ninguém se queixou.

Depois foram cinco dias a ver-se só mar e céu, tudo azul, e de vez em quando uns peixes voadores a acompanhar o Uíge e por vezes até golfinhos como que a desejarem-nos boa viagem. Raras vezes avistámos outros barcos, mas sempre ao longe. Passámos relativamente perto das Canárias. Disseram-nos que, como aquilo era um Transporte de Tropas, estávamos a ser a ser acompanhados por um submarino. Já era a psicossocial a funcionar.

No convés havia uma espécie de um bar onde se vendia cerveja e Coca-Cola, sendo esta uma novidade autêntica uma vez que na Metrópole a mesma ainda era proibida. A cerveja era holandesa. Eram garrafas de meio litro, verdes, que nós nunca tínhamos visto. Claro que com estes estimulantes a viagem e o tempo parece que custavam muito menos a passar.

Nos porões, logo no primeiro dia, foram montadas bancas para a batota, neste caso a lerpa, e os profissionais dessa jogatina lá assentaram arraiais e foram depenando os mais desprevenidos, que era a esmagadora maioria.

E assim chegámos a Bissau no dia 28, ao final do dia, tendo o barco ficado ao largo e o pessoal desembarcado para barcaças que de imediato tinham rodeado o navio por todos os lados.

A todos os companheiros, camaradas e amigos que vão sobrevivendo e que há 50 anos viajaram comigo no Uíge, um grande abraço e votos de muita saúde.

Carlos Pinheiro
23 de Outubro de 2018
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19093: Efemérides (291): Faz hoje 51 anos: 12 de outubro de 1967, o dia em que eu morri....Por outro lado, sou o "único culpado" do suicídio do ex-alf mil, madeirense, Gouveia (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 61/74 - P19130: Agenda cultural (653): 1.º Encontro Nacional de Militares Escritores, Coimbra, FL/UC, 4.ª feira, dia 24 (Manuel Barão da Cunha)



Amanhã, 4.ª feira, dia 24 de outubro, realiza-se, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), o 1.º Encontro Nacional de Militares Escritores. O evento insere-se no âmbito das comemorações do Dia do Exército Português. A sessão vai contar com os seguintes palestrantes: Coronel Manuel Barão da Cunha, Coronel Carlos de Matos Gomes, Coronel Nuno de Lemos Pires, Tenente-Coronel Pedro Marquês de Sousa, Tenente-Coronel Luís Brás Bernardino e Sargento-Chefe Jorge da Silva Rocha.

A sessão decorrerá no Teatro Paulo Quintela (FLUC – 3.º Piso), a partir das 15 horas.



1.º ENCONTRO NACIONAL DE MILITARES ESCRITORES

FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

24 de outubro de 2018


PROGRAMA


14H50 – Receção dos convidados e ocupação de lugares no Anfiteatro

15H00 – Chegada de Sua Excelência o General CEME

15H05 – Início da Conferência

– Intervenção de Sua Excelência o General CEME

– Intervenção do Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra

– Troca de lembranças institucionais


15h30 – Primeira Mesa

– Moderadores: 
Prof. Dra. Manuela Ribeiro | Prof. Dr. António Ventura

– Palestrantes: 
Cor Matos Gomes | Cor Lemos Pires | TCoR Marquês de Sousa

– Debate

16H30 – Intervalo

16H45 – Segunda Mesa

– Moderadores: 
Prof. Dra. Manuela Ribeiro | Prof. Dr. António Ventura

– Palestrantes: 
Cor Barão da Cunha | TCor Brás Bernardino | SCh Silva Rocha

– Debate

17H45 – Entrega de lembranças aos Moderadores e Palestrantes e Fim do Encontro
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1.º ENCONTRO NACIONAL DE MILITARES ESCRITORES 

FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

24 DE OUTUBRO DE 2018


PALESTRANTE
OBRA
EDITORA
Coronel Manuel Júlio Matias Barão da Cunha
Radiografia Militar e os 4 DDDD? Fim do Império, anverso e reverso?
Âncora Editora
Coronel Carlos Manuel Serpa de Matos Gomes (Carlos Vale Ferraz)
A Última Viúva de África
Porto Editora
Coronel Nuno Correia Barrento de Lemos Pires
Cartas de Cabul
Tribuna da História
Tenente-Coronel Pedro Alexandre Marcelino Marquês de Sousa
Bandas de Música na História da Música em Portugal
Fronteira do Caos
Tenente-Coronel Luís Manuel Brás Bernardino
Timor Leste. Da Guerrilha às Forças de Defesa
Mercado de Letras
Sargento-Chefe Jorge Manuel Lima da Silva Rocha
PLANEAMENTO DE DEFESA E ALIANÇAS
Portugal nos primeiros anos da Guerra Fria 1945 - 1959
Comissão Portuguesa de História Militar
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19128: Agenda cultural (652): DocLisboa 2018, 16º Festival Internacional de Cinema...Todo o cinema do mundo: 243 obras, de 54 países... Uma sugestão do nosso blogue: vejam o filme "Para la guerra", de Francisco Marise, na Culturgest (Grande auditório), na 5ª feira, dia 25, às 19h.

Guiné 61/74 - P19129: (D)o outro lado do combate (37): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: As intervenções cirúrgicas na base do Sará: fotos do médico holandês Roel Coutinho (Jorge Araújo)


Foto nº 3

Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar]. [P18848].



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, 
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > 
A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE >  AS INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS NA BASE DO SARÁ (FOTOS DO MÉDICO HOLANDÊS ROEL COUTINHO)


(Parte II – Resposta ao P18848) (*)


1. INTRODUÇÃO


Ainda que com algum atraso, o que lamento, a presente narrativa surge na sequência de uma outra relacionada com a temática em título – P18848 – com o objectivo de alargar um pouco mais a reflexão sobre os conteúdos então apresentados. Pretende-se, assim, dar cumprimento à promessa feita no fórum, no sentido de melhor esclarecer as dúvidas suscitadas em cada um dos comentários elaborados pelo auditório, e foram muitos, o que naturalmente agradeço.

São relevante neste caso, por exemplo, os cometários do C. Martins, que aproveito para citar:

"CONFUSÕES… PROPAGANDA [Vd. foto nº 1]

É sabido da grande dificuldade na evacuação de feridos do PAIGC, no interior do território da Guiné. Analisando as fotos nomeadamente a da dita intervenção cirúrgica verifica-se que o cirurgião [médico cubano Dr. António] tem bata cirúrgica e tem luvas, mas não tem máscara facial. O doente está coberto com um lençol do qual se encontra material cirúrgico, supostamente já utilizado.

Suponho que esteja a suturar um ferimento no abdómen. O doente foi anestesiado com anestesia local ou geral? Ninguém em redor tem qualquer preocupação com a assepsia, no mínimo colocarem máscaras faciais, e estarem afastados. Não se vêm quaisquer insectos, sendo a intervenção cirúrgica ao ar livre e no meio da mata, é de estranhar. Não se vê qualquer aparelho para avaliar os sinais vitais, nomeadamente um esfigmomanómetro (medidor de tensão arterial).

Julgo que se o doente não morreu do ferimento… morreu da cura. Como foi esterilizado o material? Segundo as informações que tenho… tentavam evacuar os feridos… só que a esmagadora maioria morria durante o trajecto. O PAIGC tinha hospitais de rectaguarda em Boké, na Guiné Conacri, e em Ziguinchor, no Senegal. Foram efectivamente ajudados por médicos cubanos, e provavelmente alguns estiveram no interior da Guiné, mas a grande maioria só estiveram nos respectivos hospitais já referidos.

É preciso analisar se são factos reais ou se é mera propaganda". AB. C. Martins.


Antes de mais, considero as questões acima identificadas como pertinentes. Aliás, a mesma opinião já a tinha manifestado no comentário escrito a este propósito.(*)

Chegados aqui, convém recordar que a narrativa anterior, tendo por base uma dimensão histórica específica, foi estruturada a partir da triangulação das fontes consultadas, em que grande parte do espaço foi ocupado com imagens seleccionadas de um universo de algumas centenas, do álbum do médico holandês Roel Coutinho, clínico que durante os anos de 1973/1974 cooperou com a estrutura militar do PAIGC no apoio aos actos médicos, quer de combatentes, quer da população sob o seu controlo.

Por isso, acredito que as imagens apresentadas correspondam a "factos reais", todas elas obtidas num contexto de "reportagem fotográfica" de dimensão deontológica, para mais tarde recordar como experiência vivida naquela região e naquela época, e como valor sociocultural e profissional a partilhar ao longo da vida. Adiciona-se, também, o facto do médico Roel Coutinho ter percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, nomeadamente as bases de Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).

Para além das imagens (fotos) terem sido obtidas há quarenta e cinco anos, não entendo o conceito "propaganda" como perspectiva enganosa, mas sim "propaganda" como conjunto de acções específicas para dar a conhecer algo. Estou nesta… por ser este o objectivo das minhas narrativas.


2. TESTEMUNHOS DO MÉDICO DOMINGO DIAZ DELGADO (1966)


Como suporte historiográfico, recordo alguns dos testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n-1936-), referentes à sua passagem pela base do Sará, durante o segundo semestre de 1966, ou seja, sete anos antes das imagens do médico Roel Coutinho.


Diz ele: […] "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. 

De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo [NT]. 

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 1966] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]


Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as principais bases do PAIGC existentes nessa região e os possíveis itinerários até à fronteira com o Senegal de modo a proceder à evacuação dos feridos para o Hospital do PAIGC, em Ziguinchor.


3. TESTEMUNHOS DO MÉDICO ROEL COUTINHO (1973-1974)


Aos depoimentos do médico cubano Domingo Diaz Delgado reportados ao ano de 1966, e referidos no ponto anterior, apresentamos abaixo uma sequência de imagens do espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho] obtido durante os anos de 1973/1974.

Na ordem estabelecida, independentemente da omissão de explicações sobre cada detalhe, creio ser possível encontrar respostas às questões pertinentes apresentadas pelo camarada C. Martins. No global, com a divulgação destas imagens, procura-se satisfazer, igualmente, a curiosidade de todos.

Por último, é justo agradecer ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG, contributos importantes para o esclarecimento possível sobre a prática dos actos médicos em contexto de conflito bélico e como uma visão «do outro lado do combate».




Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974 
[fotos  de 3 a 13]



Foto nº 4

ASC_Leiden_-_Coutinho_Collection_-_18_05_-_Medical_consultation_in_Sara,_Guinea-Bissau_by_a_Cuban_doctor. [Mesa improvisada com medicamentos, …].


Foto nº 5

ASC Leiden - Coutinho Collection - A 01 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Washing hands before operation. [O médico cubano, Dr. António, lavando as mãos antes de uma operação cirúrgica].


Foto nº 6
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 02 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Putting on a surgical gown. [O médico cubano, Dr. António, vestindo a bata cirúrgica].



Foto nº 7
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Preparation of local anesthesia. [O Dr. António preparando a anestesia local].



Foto nº 8
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 05 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Surgical instruments table. [Mesa com instrumentos de cirurgia].


Foto nº 9
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 09 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Local anesthesia. [O Dr. António introduzindo a anestesia local].



Foto nº 10
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 35 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Cuban nurse checks blood pressure. [O enfermeiro cubano Gustavo medindo a pressão sanguínea durante uma operação cirúrgica].


Foto nº 11
ASC Leiden - Coutinho Collection - B 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Operation from distance. [Operação cirúrgica observada à distância].


Foto nº 12

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat. [O médico cubano, Dr. António, durante uma consulta].



Foto nº 13

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - "Waiting room". [População do Sará aguardando pela sua consulta médica].



Nota Final:

Para concluir este texto, quero relevar as preocupações, enquanto médico, do camarada C. Martins. Outra coisa não era de esperar de um profissional que diariamente tem na sua frente, e como principal preocupação deontológica, a segurança dos cuidados de saúde prestados a quem deles precisam.

Outro caso, é a missão dos profissionais de saúde em contexto de guerra, particularmente a do conflito armado que nós, os ex-combatentes, conhecemos há mais de meio século no CTIG. Essa situação não era apenas problemática para a logística das nossas forças armadas. Para o PAIGC, quer gerir recursos que não havia/tinha, materiais e humanos, seria certamente muito mais dramático e doloroso, onde, por essa causa/efeito, a questão do "protocolo clínico" não era possível observar/respeitar.

Não pondo em causa a competência de cada um dos clínicos que decidiram colaborar com os movimentos de libertação, creio que o primeiro objectivo, presente em cada acto, seria "não fazer mal", esforçando-se por reduzir, tanto quanto possível, os efeitos adversos das diferentes práticas de saúde não seguras, onde se incluíam, também, as cirurgias. (**)

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

22OUT2018.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 25 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19046: (D)o outro lado do combate (36): Bigene, agosto de 1972, «Operação Silenciosa"... (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P19128: Agenda cultural (652): DocLisboa 2018, 16.º Festival Internacional de Cinema... Todo o cinema do mundo: 243 obras, de 54 países... Uma sugestão do nosso blogue: vejam o filme "Para la guerra", de Francisco Marise, na Culturgest (Grande Auditório), na 5.ª feira, dia 25, às 19h00


"Para la guerra", de Francisco Marize (2018, 65'), com Andrés Rodriguez Rodriguez. 


Cartaz do doclisboa' 18,  16º Festrival Internacional de Cinema, a decorrer de 18 a 28 de outubro de 2018. Salas: Culturgest, São Jorge, Cinemateca. Cinema Ideal. Ver programa aqui.

São 243 obras exibidas nesta edição de um dos  mais prestigiados festivais internacionais de cinema documental, vindas de 54 países, sendo  68 as estreias mundiais.


2018: dez filmes a não perder 
por Por Eurico de Barros e Rui Monteiro |


Time Out Lisboa, Quarta-feira 17 Outubro 2018

"Para la Guerra", de Francisco Marise


Chama-se Andrés Rodríguez Rodríguez, foi “combatente internacionalista” cubano e respondia pela alcunha de El Rayado quando lutou em Angola entre 1975 e 1977, na sangrenta guerra civil que se seguiu à independência desta ex-colónia portuguesa, e que envolveu também forças sul-africanas; e chamou-se Mandarria quando esteve na Nicarágua entre 1983 e 1987. 

Hoje, este sexagenário que viveu para fazer a guerra, continua a elogiar Fidel Castro e o comunismo, faz exercícios de combate e recorda as peripécias da sua vida para a câmara do documentarista Francisco Marise, neste filme da Competição Internacional. 

EB [Eurico de Barros]
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Fotograma do filme "Para la guerra", do realizador argentino Francisco Marise, talvez um dos 10 melhores dos filmes em competição no doclisboa'18, segundo  a crítica especializada. A ver, na Culturgest, dias 25 (5ª feira) e 27 (sábado).

2. Sinopse do filme , segundo o programa  do doclisboa'18 

Para a guerra explora a memória e a solidão de um ex-soldado internacionalista cubano a partir da observação do seu corpo e dos seus gestos (extra)ordinários. 

Um filme de guerra sem um único tiro, mas com uma ferida, a de um veterano das forças especiais que procura os companheiros que sobreviveram à sua última missão há já 30 anos.

To War  / Para la guerra Francisco Marise 2018 • ARGENTINA, ESPANHA, PORTUGAL, PANAMÁ / ARGENTINA, SPAIN, PORTUGAL, PANAMA • 65’ 

25 OUT / 19.00, Culturgest – Grande Aud. 27 OUT / 14.00, Culturgest – Pequeno Aud.

Legendagem em português e inglês, Preço: 3,5 euros para séniores.

Este filme passa com um outro documentário, "Les Grands Squelettes", de Philippe Ramos:


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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19127: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (8) :A minha cunha era tão frágil., que não rachava um pau de Gamão ou Abrótea (José Colaço)

1. Mensaegm, com data de 21 do corrente, do José [Botelho] Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65):


Assunti : A minha cunha era tão frágil que não rachava um pau de Gamão ou Abrótea.

Começo por dizer que tive no comando das minhas companhias homens com H grande de humano, excepção na especialidade em Mafra, no  curso do STM:  aí o comandante de companhia tenente Lopes Pinto só falava directamente para os seus instruendos para os mandar para o barrbeirro (era assim que ele falava). No pelotão só não foi 100% de carecadas porque o cabo miliciano se enganou ou fez de propósito ao tirar os números, eu não sei porquê fui um dos contemplados,  pelo menos  o meu número não fazia parte da lista. Motivo desta falta: tínhamos o cinto da farda a segurar as calças por baixo dos arreios o que não era permitido.

Agora vamos à minha cunha:  passou-se na recruta, sendo o comandante de companhia o tenente Mesquita. Soube já depois de regressar da Guiné, também ele devido à sua rebeldia,  tinha sido vitima da hierarquia castrense.

Recruta no RI3 em Beja,  como eu morava em Castro Verde , aproveitava os fins de semana para desactivar,  com o mínimo de prejuízo,  a actividade de pequeno agricultor pois eu era o único elemento masculino da famííia em actividade, o meu pai tinha falecido,  o meu irmão vítima de acidente de moto do qual ficou paraplégico, estava internado no ex-hospital do Rego., hoje Curry Cabral.

A viagem para Castro Verde era feita de motorizada. Acontece que nesse dia choveu como Deus a mandava,  foram 60 km debaixo de água, ainda consegui fazer alguma coisa no Sábado mas no Domingo uma febre a quase 40º e de seguida o vírus da papeira. De cama,  faltei à chamada no quartel, na sexta feira seguinte aparece na minha casa o meu conterrâneo e amigo 2º sargento  Reinaldo, a dizer que eu, morto ou vivo,  tinha que me apresentar no quartel pois estava dado como refractário.

Com muito custo lá apanhei a camioneta no Sábado para Beja e na Segunda Feira fui fazer a apresentação ao Tenente Mesquita. Oviu-me com muita atenção e parece-me que acreditou nas verdades que lhe estava dizer, mas tinha que ser castigado: próximo fim de semana cortado...

Com muito custo da minha parte pois encontrava-me bastante debilitado, lá fui aguentando o treino militar durante a semana, para não dar baixa ao hospital,  o que me faria quase de certeza perder a recruta.

Sexta feira à tarde sozinho, a falar com os meus botões,  tomei a seguinte decisão: Ir falar com o tenente Mesquita pois ele estava de oficial de dia à unidade, cheguei ao gabinete, pedi licença,  bati a minha palada o melhor que sabia e recontei-lhe a minha história novamente.

- Está bem vai lá de fim de semana.

Mas eu ainda indaguei:
- Meu tenente,  mas eu estou na escala de serviço de faxina à cozinha.

Resposta final:
- Está bem,  manda f...isso, mas na Segunda Feira, à uma da manhã aparece-me cá, senão dou-te uma que te desapego a cabeça do corpo.

Na Segunda feira à uma hora da manhã, quando me apresentei no quartel quem nos estava a receber era um primeiro cabo chico, o "Bimbo". Diz-me ele;
- ó Doje doje [1212]  estavas de xerviço,  e foste embora... Dei o número  ao nocho  tenente, mas o nocho tenente deve ter enviado a participação para xesto dos papeis, porque ninguém me chamou.

Na guerra da Guiné tive a sorte de encontrar aquele então capitão com H grande de humano que dá pelo nome de João Luís da Costa Martins Ares (hoje coronel reformado).


Guiné 61/74 - P19126: Notas de leitura (1113): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,

O tempo passa e cada vez mais me convenço que estamos perante um segredo de polichinelo que se intenta manter com vivíssima matéria de investigação. Um complô, está demonstrado, única e exclusivamente constituído por guineenses. Há informações de que aqueles últimos meses que precedem o assassínio decorrem numa atmosfera irrespirável em Conacri, os guineenses já não se sentam à mesa com os cabo-verdianos. Pôs-se em andamento o complô, são presos todos os cabo-verdianos e ameaçados de fuzilamento. 

Uma testemunha privilegiada, Oscar Oramas, embaixador de Cuba na Guiné Conacri, assiste à conversa dos sublevados com Sékou Touré, poucas horas depois do assassínio, justificam-se porque não querem continuar a ser mandados por cabo-verdianos. Todos os fuzilados serão guineenses, sem exceção. Desapareceram comodamente todos os documentos das comissões de inquérito. 

Anos depois, diferentes dirigentes de topo do PAIGC queixavam-se dos excessos cometidos. Deu jeito, nos tempos subsequentes, atribuir-se o assassínio a Spínola e à PIDE/DGS, como a história se faz de provas factuais e da consulta de fontes, jamais se encontrou qualquer documento comprometedor. Mas nos tempos que corre, e em nome dos mitos, todos estes acontecimentos aparecem atravessados por fantasmas para contornar habilmente irmãos desavindos, de duas parcelas de África com coisas em comum e muitíssimas outras em atrito.

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1)

Beja Santos

O nome do jornalista José Pedro Castanheira está associado a dois trabalhos de reportagem de excecional valor para o período da guerra da Guiné e do fim do Estado Novo. Tendo dado conta que se aproximavam os 20 anos da efeméride do assassinato de Amílcar Cabral, obteve meios para uma investigação aprofundada, falou com alguns protagonistas de maior peso, a viúva de Cabral, Ana Maria de Sá Cabral, António de Spínola, Luís Cabral, entre outros, visitou o local do crime, debruçou-se sobre a documentação existente nos arquivos da PIDE sobre tentativas de eliminar Amílcar Cabral.
Esta reportagem será a catapulta de um livro que foi acolhido muitíssimo bem em Portugal e vários países.

A outra grande reportagem que revela o talento jornalístico de José Pedro Castanheira foi a reunião de diferentes protagonistas em Londres que participaram no encontro secreto de Março de 1974, do lado português estava o então cônsul em Milão, o futuro embaixador José Manuel Vilas Boas.

Para surpresa de muita boa gente, em 1994, ficava-se a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros, de Marcello Caetano, Rui Patrício, diligenciava negociações que levassem ao acordo de paz e ao reconhecimento da República da Guiné-Bissau, estava já imparável o processo de reconhecimento na ONU, o que tornaria ainda mais calamitosa a situação portuguesa, adensava-se a hipótese de uma intervenção militar da Organização da Unidade Africana.

António de Spínola

A reportagem de Castanheira aprofunda quatro pistas para a compreensão do atentado:

(i) um golpe de Estado de uma fação guineense;

(ii) a cumplicidade de Sékou Touré;

(iii) uma operação desencadeada por Spínola;

(iv) ou uma iniciativa da PIDE.

Inicia-se a reportagem com os acontecimentos que terão ocorrido cerca das 23,00h de 20 de Janeiro de 1973, quando Cabral e a mulher regressavam de uma receção em Conacri na embaixada da Polónia. Interpelado por um grupo onde a figura proeminente era Inocêncio Kani, um ex-comandante da Marinha do PAIGC, Cabral não deixa que o amarrem, Kani disparou um tiro à queima-roupa, Cabral pretende ainda conversar com os sublevados, alguém de nome Bacar assesta-lhe uma curta rajada que o atinge na cabeça, Cabral morre.

Um segundo grupo liderado pelo chefe dos guardas, Mamadu N’Diaye, aprisiona Aristides Pereira, que trabalhava numa casa próxima, e metem-no numa vedeta, barbaramente amarrado.

Um terceiro e último grupo, chefiado por João Tomás, apodera-se da prisão do partido, conhecida por Montanha, e libertam detidos que faziam parte do complô. Contam com a conivência dos guardas, e detêm um número elevadíssimo de dirigentes que metem na prisão, advertindo-os que iam ser fuzilados no dia seguinte.

Os revoltosos vão dar conhecimento a Sékou Touré, este não dá cobertura ao assassínio, manda prender os conspiradores, mais adiante ouviremos as recordações de um participante privilegiado, Oscar Oramas, embaixador de Cuba em Conacri, será o primeiro diplomata a ver o corpo de Cabral abatido, telefonará a Sékou Touré, assistirá à reunião deste com os sublevados.


Ana Maria Cabral na Função Amílcar Cabral na Cidade da Praia 


Seguem-se dois processos misteriosos, duas comissões de inquérito de que jamais conheceremos os resultados.

Uma comissão de inquérito internacional de que farão parte, entre outros, Agostinho Neto e Joaquim Chissano. As autoridades guineenses nunca deixaram vir à luz os resultados do inquérito. Do lado do PAIGC, na medida em que Sékou Touré entregou os revoltosos à nova direção do partido, forma-se uma comissão de inquérito que seria presidida por Fidélis Almada e onde estariam nomes como Otto Schacht, António Buscardini e José Araújo. Também não se virá a conhecer a documentação constante às inquirições, os sublevados, em número que nunca se pôde quantificar com rigor, foram divididos em grupos, e executados. Pedro Pires garantiu ter assistido aos fuzilamentos na região Sul. Castanheira fez perguntas a vários dirigentes. Disse-lhes Aristides Pereira:

“Nunca consegui ter uma ideia exata dos fuzilados. Pedi ao Fidélis uma lista, mas nunca me chegou às mãos”.

Fidélis confirma que o relatório da comissão não fornece números:

“Creio que se provou a culpa de 71, mas nem todos foram executados". 

Fernando Baginha fala em 110. Luís Cabral confessa que não houve um interrogatório sereno, Carlos Correia admite que “tenha havido maldade em algumas denúncias”.

A cumplicidade de Sékou Touré é outro mistério. Vários investigadores avaliam um elevado grau de indecisão quando se dá o assassínio, outros admitem que ele recebeu prontamente os sublevados temendo que se tratava de algo parecido com a invasão de Conacri, de 22 de Novembro de 1970. Não são de fiar as declarações de Senghor de que a morte de Cabral foi instigada por Sékou Touré, eram adversários figadais. Senghor afirmava ter provas de que a morte de Cabral fora apoiado por Touré, mas nunca mostrou tais provas.

Aristides Pereira foi sempre reservado sobre a participação guineense no complô, mas na longa e importante entrevista que concedeu ao jornalista José Vicente Lopes, deixou bem claro que Osvaldo estaria envolvido na trama e não excluiu o apoio expetante de Nino Vieira. Morto Cabral, era preciso camuflar a querela multisecular entre cabo-verdianos e guineenses.

O alibi foi o de que por detrás do complô exclusivamente guineense estava a manipulação de um braço longo, a DGS, dentro de um plano maquinado por Spínola. Todas as investigações nesta direção encontram prateleiras vazias, nem um só papel no arquivo da DGS, todas as maquinações para matar Cabral precedem Spínola na Guiné e Fragoso Allas na direção da PIDE em Bissau. Spínola adiantará a Castanheira argumentos de uma tremenda ingenuidade. Esperava que a invasão de Conacri, desenhada por Alpoim Calvão, trouxesse um Amílcar Cabral sequestrado que aceitaria de bom grado fazer parte do governo da Guiné.

Também sem exibir provas, Spínola diz ter recebido um convite de Amílcar Cabral para se encontrar com ele em Bissau, em Outubro de 1972. Alega que esta proposta lhe chegou por via de Fragoso Allas, Marcello Caetano disse-lhe redondamente que não. Na sua entrevista com o Castanheira diz igualmente que não se lembra do nome de quem era o delegado de confiança de Amílcar Cabral. Enfim, há muita gente a abusar do diz-se e consta.

(Continua)
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Notas do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19125: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (7): as "cunhas" e os TSF...(Hélder Sousa, ex-Fur Mil de Trms, TSF, Piche e Bissau, 1970/72)


Porto > Ribeira > 27 de maio de 2015 > VI Encontro dos "Ilustres TSF" > Em baixo o C. Lã. De pé, da esquerda para a direita: A. Calmeiro (já entretanto falecido), M. Rodrigues, E. Pinto, J. Reis, H. Sousa, M. Martins, F. Cruz, e F. Marques. Faltou o  Nelson Batalha que   já não compareceu por razões de saúde, e que viria a morrer,  entretanto, um ano e meio depois (*)


Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comnplementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Hélder Sousa:

[Foto à esquerda: O camarada, amigo, grã-tabanqueiro, colaborador permanente do nosso blogue Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72): desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de novembro de 1970, e regressou 2 anos depois, exatamente a 10 de novembro de 1972. Ei-lo aqui, no "Pelicano", em Bissau, é o primeiro da esquerda, de perfil; à direita o Nelson Batalha (1948-2017) e ao centro  o Fernando Roque, que não era TSF mas TPF. A foto é do Hélder Sousa que é, também, o régulo da Tabanca de Setúbal, e tem mais de 140 referências no nosso blogue]


Data: domingo, 21/10/2018 à(s) 02:11
Assunto: As "cunhas"....

Caros amigos

Tenho acompanhado as várias publicações do nosso blogue e, dentro destas, esta última série, relacionada com o tema 'Então e depois? Os filhos dos ricos também vão p'ra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais iguais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada, que acho interessante e que pode ser tratada com mais ou menos ligeireza e com mais ou menos profundidade. (**)

Porque as escritas (e as leituras das mesmas...) serão mais eficazes se não forem muito extensas, vou tentar abordar o tema pelo prisma de forma "mais ligeira e menos aprofundada".

Cumprir ou não a "comissão de serviço por imposição" era um dilema que se colocava realmente mas não era tema alimentado por largas maiorias.

Havia quem entendesse que era dever defender os "seus" territórios ameaçados pela cobiça internacional. Conheci alguns.

Havia quem quisesse dar corpo à missão que a Pátria lhe impunha. Conheci alguns.

Havia quem pensasse que não deveria ir para África mas... o peso na consciência de "faltar ao dever", o anátema de "cobardia", o não saber quando e como voltar a estar com amigos e família, acabava por ter o peso suficiente para fazerem o "cruzeiro das suas vidas". Conheci bastantes.

Havia ainda quem achasse que sim, porque sim.

E havia também outros....

Nesta amálgama de possibilidades então muitos foram, pobres, remediados e ricos, e alguns, também pobres, remediados e ricos, 'não foram'. Refractaram-se, desertaram, ou ficaram por cá, resguardados...  Poderemos pensar que esses, os de cá, tinham "cunhas". Talvez, acredito que isso possa ter acontecido com muitos mas seguramente não com todos. Conheci alguns.

E então eu? Como foi?

Para mim foi um "percurso normal".  Fui incorporado no CSM em Santarém, na 3ª incorporação de 1969, em plena época de exames, a meio de Julho.

Vi recusado o pedido de dispensa para comparecer a exames na 2ª quinzena e por isso não me parece que tenha tido 'facilidades'.

No ano anterior, no Verão de 1968, com o dinheiro que amealhei na apanha do tomate, aproveitei o "Turismo Estudantil" e fui até Paris, Bruxelas e Londres. Menos "turismo" e mais "prospecção" para uma eventual "retirada da circulação". Quando chegou a incorporação, a opção foi "cumprir".

Fiz uma recruta empenhada, com bom aproveitamento geral, e já vos dei conta num 'post' daquela série "A terra que mais gostei ou odiei" (***),  que tive uma classificação tão boa que me colocou em condições de ser 'convidado' a passar ao COM mas não aceitei porque entretanto saiu a especialidade TSF, que me disseram ser muito boa, e como tal,  perante a quase certeza de poder vir a ser um "COM atirador"...., continuei o meu percurso no CSM.

Como me "saiu" TSF? Não faço ideia!

Os meus pais não tinham dinheiro suficiente para 'comprar' ninguém, não tinham conhecimentos capazes de o fazerem, por isso desconheço realmente como foi. Aliás, nesse Turno, em Santarém, apenas 'saíram' dois TSF, os outros 13 (pois o 2º Ciclo do CSM para TSF comportou 15 elementos) foram de Vendas Novas, Tavira e Caldas da Rainha.

Gosto de pensar que poderá ter sido numa informação que dei de ter construído,  com o meu vizinho do andar de baixo da casa onde vivia,  uma comunicação a partir de duas chaves de "morse" que um primo dele nos arranjou ...

Em Lisboa, no então BT [, Batalhão de Telegrafistas], fiz o 2º Ciclo, após isso fui fazer um estágio para Tancos, na EPE [, Escola Prática de Engenharia].

Findo o estágio houve exames para classificação. Dos 15 fiquei em 7º. Fui para o Porto, para o então RTm dar instrução.

Entretanto as mobilizações dos camaradas do meu Curso estavam a ser conhecidas a 'conta-gotas', pois do final de Abril de 1970 ao final de Agosto, dos 15 apenas tinham partido 6 e nós sabíamos que no dia 3 de Setembro entrariam todos os que estavam a acabar o seu percurso formativo e que assim estariam à nossa frente para 'marcharem'.

Pensava eu, assim, que tendo ainda dois dos meus camaradas à minha frente para serem mobilizados e com o acrescento dos que aí vinham, que a mobilização já não se daria e, caso isso tivesse acontecido, não teria havido "cunha" nenhuma... Mas não foi assim, já que no dia 1 de Setembro, dois dias antes do "reforço" da lista para mobilização, saiu a "rifa" a 7 de nós, do meu Curso, com passaporte para a Guiné.

Na Guiné, dos 7 que para lá foram, 3 arrumaram-se por Bissau.Eu e outros 3 fomos para o "mato". 

Não me parece que aqui tenha funcionado alguma "cunha". Fui para Piche com uma missão específica, que não vem agora aqui ao caso, embora o meu Capitão que chefiava o STM (Serviço de Telecomunicações Militares) onde me incorporei, tivesse garantido antes que nenhum de nós iria chefiar Postos em 'zonas problemáticas' e,  no meu caso concreto, em compensação, como a zona seria 'problemática', quando terminasse a missão iria para zonas mais pacíficas, como Bissau, Bolama, Teixeira Pinto, por exemplo.

Não foi assim! Quando regressei de Piche fui 'requisitado' para a Companhia de Transmissões para integrar o Serviço de Escuta. Esta história já dei conta em 'post' faz muito tempo. (****)

O meu desempenho na "Escuta" poder-se-à dizer que me foi agradável. Não me vou alongar em motivos, poderá ficar para outra ocasião, mas não foi por "cunha", foi bem vivido.

Portanto, quanto a mim, desconhecendo na verdade como me "saiu" TSF, foi um percurso 'limpo, sem cunhas'. 

Conheci "filhos de ricos" que foram mobilizados e que foram para a Guiné. Conheci "filhos de não ricos" que ficaram por cá, alguns talvez com 'cunhas', mas outros nem por isso. Conheci alguns "filhos de patriotas" que procuraram fazer as suas vidas em lugares mais saudáveis do que os difíceis climas africanos. E também outros "meninos de suas mães" que foram para fora.

Por isso digo: "há de tudo"!

Um abraço
Hélder Sousa
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Notas do editor:


(****)  Vd. poste de 12 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

Vd. também  poste de 26 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)

Ver ainda poste de 11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira

domingo, 21 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19124: Blogpoesia (590): "No meio da geometria", "Não tem pele a alma" e "Estado de alma", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


No meio da geometria

Vivemos mergulhados na geometria.
Geometria das flores e das galáxias.
Das esferas e planetas.
Das dunas e dos vulcões.
Somos massa e pedra multiforme.
Temos ossos e temos carne.
Somos frágeis em demasia.
Átomos e moléculas de carbono em ebulição.
Temos pés e temos mãos.
Seria o fim do mundo se também tivéssemos asas.
Descontentes, tudo lamentamos.
Até o ar gelado que nos dá a vida.
Nos fingimos doces, só por fora.
Cá por dentro, tão amargos.
Insaciáveis. Queremos tudo.
Prometemos e não cumprimos.
Ortorrômbicos e octaédricos.
Nem um só ângulo recto...

Berlim, 19 de Outubro de 2018
8h 32m
dia de sol, frio
Jlmg

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Não tem pele a alma

Sua cor é a transparência e brilha à luz do bem.
Tem o sopro da vida eterna e a força do amor sem fim.
Sempre atenta ao que o corpo pede.
Faz de conta a ver se aprende quando ele erra o seu caminho.
Não tem pele a alma
Tem o sopro da vida eterna e a força do amor sem fim.
Sempre atenta ao que o corpo pede.
Faz de conta quando ele erra só para ver se aprende
Como o astro-rei gravita ao sabor do tempo.
Sabe de cor os passos que seu corpo dá.
Dá-lhe a arte pura de saber dizer.
É em união perfeita que os dois se entendem.
Têm a sabedoria inata de saber sorrir.
Só a lei da morte os pode separar.
Que ela venha tarde...

Berlim, 16 de Outubro de 2018
10h46m
Jlmg

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Estado de alma

Não é sempre a mesma a cor do mar.
As núvens do céu não param de mudar.
Seus tons e suas formas.
O sol e o vento as molda como quer.
Cada dia nasce e é de sua maneira.
Todos temos nossas formas de adormecer e de dormir.
O chorar e o sorrir é ao corpo que compete mas vem da alma a hora de os sentir.
Cada voz tem o seu tom.
Tem cor e não tem pele
E mais nenhuma é igual.
Ninguém escolhe onde nascer
Nem a hora de morrer.
O sabor da vida só depende do estado de alma...

ouvindo HAUSER - Vocalise (Rachmaninov)
Berlim, 14 de Outubro de 2018
8h51m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de14 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19101: Blogpoesia (589): "Com um ponteiro de lousa...", "É amarelo o Outono" e "Pardo e negro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728