Queridos amigos,
As semanas passam, a vida profissional destes dois cinquentões é intensa, ocupam-se muito um do outro, estão a aprender a mitigar a distância, a vida de intérprete tem aspetos aliciantes, passeia-se um pouco por toda a Europa, gera um sentimento nómada onde não falta a saudade de regressar ao ninho, no caso dela; ele tem o dia todo ocupado, é funcionário público, desdobra-se na escrita, dá aulas, preserva uma certa vida social, também tem falta de regressar ao ninho, são as leituras, a doçura do ambiente, rodeado de fotografias e de pequenos objetos de arte. Correspondem-se, ela chamou a si o trabalho de organizar a comissão da Guiné dele, já se sonha com o romance, Rua do Eclipse, imagine-se, ele falou do título numa roda de amigos, houve quem ficasse intrigado, o que é que tinha a ver os tiroteios da bolanha e a vida de tabanca com o tal eclipse? Tudo se explicou e houve mesmo gente que aplaudiu a solução imaginativa de voltar ao passado com uma história de amor. Mas mesmo nessa mesma roda de amigos houve quem ficasse de boca à banda quando ele revelou que havia para ali dois romances, e que mais importante que pôr tudo em papel e trazer de volta a guerra da Guiné, acontecera que essa mesma guerra da Guiné espoletara uma bela história de amor, que aqueles dois, que se tinham conhecido numa conferência, já não podiam viver um sem o outro, acreditassem ou não era uma relação que gerara um eclipse total.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (38): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon adorable Paulo, conversámos longamente ao telefone (e como foi bom para mim!), antes de partir para Viena, onde fui trabalhar numa conferência de dois dias referente aos doadores que apoiam projetos em África, Caraíbas e Pacífico. Momentos houve das exposições de responsáveis de projetos que me deixaram o coração contrito, ressurgem ditaduras, a impressionante corrupção das cliques à volta dos dirigentes totalitários, o desvio de fundos destinados a projetos de bem-estar para as contas desses dirigentes. Dentro e fora da cabine de interpretação, recordava as nossas conversas sobre as desditas da Guiné-Bissau, com os seus elefantes brancos, as sórdidas negociações com as duas Chinas, a ver quem dá mais, a riqueza dos dirigentes graças a apoios à agricultura, os atropelos e manigâncias perpetradas por um antigo valoroso líder militar que não se coibiu de meter as mãos no erário público e encher os bolsos. Numa das noites, a organização da conferência ofereceu-nos bilhetes para a Ópera de Viena, foi um espetáculo memorável, representou-se O Navio Fantasma, com interpretações de luxo. Mas na noite da chegada dediquei-me de alma e coração a organizar toda a cronologia dos tais meses de julho a novembro de 1969, que tu designas por um dos períodos mais ásperos da tua comissão na Guiné. Se em junho tenho o registo de três pequenas flagelações, a de 15 de julho, como tu escreves, teve um início brutal, foram todos apanhados de surpresa, mas a reação foi pronta, pouco depois de meia-hora o fogo da guerrilha esmoreceu, e durante horas ouviam-se tiros à distância, significava gente desaparecida ou desorientada ou gravemente ferida ou morta. Como se comprovou na manhã seguinte, a força hostil tivera um desaire. Tu tiveste no início do mês em Bissau, foste testemunha abonatória do tal cabo da milícia que deixara fugir um prisioneiro, no regresso deixaram-te em Nova Lamego e tiveste conhecimento de que havia flagelações com uma arma nova a que chamavam foguetões. Não deixei de sorrir com a descrição que tu fazes de um jantar a bordo de uma lancha, por convite do comandante Teixeira da Mota, um jantar quase cerimonioso, mas cá fora havia uma gritaria imensa de gente que experimentava as armas e que não se coibia de um bom palavrão – soubeste mais tarde, por aerograma enviado por Teixeira da Mota que eram fuzileiros que partiam de madrugada para um local da região do Xime onde irás várias vezes. Nessa flagelação de 15 de julho, também houve revezes do vosso lado, uma roquetada entrou pelo teto da casa de Quebá Soncó, as vigas aluíram e Nhamô, uma das mulheres de Quebá perdeu um braço na derrocada, tu guardas uma fotografia de braço dado com ela no dia em que foram ao Enxalé, voltarás a visitá-la na tua estadia em 1991. Registas também que o PAIGC estava muito ativo na região de Ponta Varela, na outra margem do Geba e a uma boa distância de Mato de Cão, vinham depois as embarcações civis altamente danificadas e as pessoas não escondiam o terror vivido.
Meu adorado, nunca imaginei o que era um tornado, as mudanças que tu notavas no céu, os relâmpagos, o lusco-fusco, e depois um dia de tons elétricos, guardei para mim e naturalmente que ficou registado o que tu escreveste, estavas a ver o tornado no fundo da bolanha de Finete á espera de cambar o rio Geba:
“Com ronco, ergue-se um redemoinho sobre o cais de Bambadinca e saltaram as primeiras chapas dos telhados. Do céu escuro estalavam mais relâmpagos, viam-se os animais a fugir, e depois as árvores de diferente porte a quererem desprender-se pelas raízes. Os militares no cais gritavam a pedir a clemência de Deus ou, espavoridos, fugiam para dentro dos armazéns. Os civis afastavam-se das árvores, certamente com medo dos raios. Do lado de cá do Geba, Bambadinca estava espetral: formavam-se e desapareciam os redemoinhos, as águas saltavam o cais, os arbustos voavam, as crianças fugiam, os adultos procuravam dar-lhes proteção. Estávamos a ser recebidos por um desses tornados que tornam o dia noite, que destroem casas, revolvem as florestas, despedaçam os bissilões, os poilões, o pau-de-cabaceira e o pau-de-mandjandjan. E de repente tudo se aquietou, como se a natureza estivesse cansada daquele grande grito da revolta, dos soluços e das imprecações dos sofredores”.
Registo patrulhamentos no Cuor, recebeste em estágio um pelotão de uma nova companhia africana. Naturalmente, amor da minha vida, solucei com a descrição daquela horrível noite de 3 de agosto em que numa emboscada noturna um dos teus colaboradores te chamou branco assassino por teres fogueado mortalmente o que se veio a descobrir ser uma mulher, e tu escreves que foi uma noite que mudou a tua vida. Esse mês de agosto foi um mês duríssimo, tu foste encontrar elementos em cartas que dirigiste a familiares e amigos. E recebeste a nota de punição, mesmo depois do teu recurso eram mantidos dois dias de prisão simples por “tendo sido chamado à atenção pelas deficientes condições de defesa e limpeza do seu aquartelamento, não ter dedicado o máximo do seu interesse à resolução de tais problemas”, percebe-se perfeitamente o grau de humilhação. Eu peço-te para ficarmos por aqui, temos neste momento inventariado todo o primeiro ano da tua comissão, desembarcaste em 29 de julho de 1968 e interrompo a 4 de agosto de 1969, isto para dizer que ainda há acontecimentos funestos, muito funestos, a contar, até à vossa partida para Bambadinca, em novembro.
Paulo, regressei a Bruxelas, cheguei a casa e era um tumulto pela tua falta, tumulto quer dizer inquietação, a minha vida sem sentido quando tu estás ausente, a minha cabeça sempre a girar, a recordar o que era a minha vida sem ti, como daquela curiosidade com que tu chegaste para me pedir ajuda e a transformação que se operou. Jean-Luc, como tu sabes, trabalha com um contrato precário, é aquilo que hoje se chama um mileurista, é uma expressão em voga para quem aufere à volta de mil euros, e o meu filho precisa da ajuda dos pais. Convidei-o para jantar ontem, está aborrecido com o que faz, é uma perfeita sensaboria, tirou habilitações universitárias para viver de um trabalho rotineiro, sem nenhuma chama. Fala em emigrar, para uma mãe é mais uma inquietação.
Paulo, vê se vens depressa, eu bem contrario estes pensamentos negros, procuro trazer à memória o que de melhor há na nossa vida conjunta, o conforto praticamente diário dos teus telefonemas, dos teus mails, dos subscritos com papéis da guerra, aerogramas e fotografias. Espero que percebas o meu desabafo, às vezes a tua ausência é-me insuportável. Foi o caso de hoje, foi um dia de trabalho excecional, compareci logo de manhã a uma reunião entre a Europa e a Coreia do Sul num dos edifícios da Comissão no Rond-point Schuman, já em direção ao Parque do Cinquentenário, de que tu gostas tanto. Ainda não eram quatro horas e a reunião terminara, europeus e asiáticos felizes por terem chegado a acordo quanto a novos termos de cooperação. Eu pensava desesperadamente em ti, meti-me no carro e lancei-me numa romagem de saudade. Primeiro fui a Laeken, sei muito bem que tu gostas das Estufas Reais, por ali me passeei. Escurecia quando vim até à Praça Real e pus-me a olhar o Museu Magritte, que tu tanto gostas, e depois prossegui até Ixelles, parei o carro e pus-me defronte do museu de que ambos gostamos tanto. Regressei a casa pela Avenida Louise, não sei se te recordas mas não muito longe da Universidade Livre há uma escultura que uma vez tiraste uma fotografia e que chama A Fénix, estavas muito contente quando regressaste ao carro disseste-me que eu era a tua fénix renascida, e renascida para todo o sempre, não sei o que te deu mas desataste a beijar-me, e eu com aquele sentimento ambivalente do teu toque de paixão e o meu convencionalismo de ver as pessoas passar na rua e a olharmo-nos, um tanto perplexas, como se o mais importante não fosse o tu me quereres, esqueci-me da minha idade e entreguei-me ao teu ardor como uma adolescente irrequieta, na idade das descobertas.
Para te dizer o quê, Paulo? Que te amo, que há momentos em que esta ausência é um escuro vazio que não sei aplacar, e pergunto-me se não seria melhor vivermos ao menos e eu ir para o pé de ti. Depois destes rompantes, arrefeço e tomo consciência de que estamos a agir bem, e sei perfeitamente que tu estás ansioso de voltar para o local do teu romance, aquele título que tu adoras, e naquele espaço onde nos entregamos, a Rua do Eclipse. Bien à toi, Annette.
Nota do editor
Último poste da série de 29 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21823: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (37): A funda que arremessa para o fundo da memória