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segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24971: Notas de leitura (1650): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Entrevistado na dimensão ainda em voga da História Oral, o comandante Pedro Pires fala da sua vida ao serviço do PAIGC e do PAICV. Confesso que me toca positivamente o que ele comenta quanto à dedicação às causas pela luta da independência dos dois países, não há para ali nem charamelas nem o vemos atrelado a nenhuma carro triunfal, resistiu a muita insídia e comentários soezes por parte da oposição, quando perdeu em 1991, faz-nos ver que Cabo Verde caminha saudavelmente como uma democracia liberal, é um verdadeiro farol africano. Não se entenderá, à luz dos conhecimentos históricos, que continue a dar como certo e seguro que Spínola e a PIDE/DGS mandaram matar Amílcar Cabral, foi mantra de grande conveniência durante algum tempo, acontece que não há nenhum, absolutamente nenhum, documento que comprove qualquer ligação do Governo de Bissau, da delegação da polícia política com o assassinato de Cabral, houvesse e dele se teria feito a devida publicitação, mas não há, não houve marinha portuguesa à espera do barco de Inocêncio Kani, e é preciso ter um grande estômago para pôr como coordenador do complô Momo Touré, não sei como pessoas com pesadas responsabilidades históricas ainda têm e tanta desfaçatez, e parecem aliviadas quando propalam tais inverdades.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu Presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel, FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires assume elevadas responsabilidades na luta da Guiné-Bissau, é um quadro político de peso e é nessa altura que é questionado pela equipa entrevistadora sobre o assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973. Começa por referir que Amílcar Cabral já tinha alertado sobre a probabilidade desse risco, a partir da recolha de várias informações de amigos no seio do exército português. Considera ter havido falhanço nos serviços de segurança, o próprio Amílcar Cabral não teria dado o valor necessário a tais informações. Nesse dia, 20 de janeiro, Pedro Pires encontrava-se na base de Kandiafara, na Frente Sul, as informações pareciam suspensas, só quase ao anoitecer é que alguém lhe veio dizer que ouvira na BBC a notícia do assassinato. Através de um emissário enviado a Boké receberam-se pormenores dos acontecimentos pelo responsável local, José Pereira, fora em Boké que Inocêncio Kani fora detido.

Uma semana depois, na companhia de outros líderes, como Nino Vieira e Cármen Pereira, estão em Conacri, assistem às cerimónias de homenagem a Amílcar Cabral, o ambiente encontrado era pesado e de muita tristeza. Pedro Pires propõe aos seus colegas do Comité Executivo de Luta a realização de uma reunião extraordinária para análise da situação, fez-se a reunião e traçaram-se novas linhas de orientação, todos voltaram para as frentes de luta, ele regressou à Frente Sul. Dá-se a sua visão sobre o apuramento das responsabilidades sobre os acontecimentos do assassinato, justifica a importância da operação Amílcar Cabral que tinha como objetivo geral a intensificação e multiplicação da ação militar nas três frentes, era necessário tornar a vida insuportável aos militares portugueses. Associa tais acontecimentos ao golpe de Estado de 25 de Abril, detalha ao pormenor o cerco a Guileje, e não deixa de ressalvar a diferença introduzida na luta pelos mísseis Strela. Fala num embate que teria tido lugar em território manjaco da qual um tenente dos Comandos africanos se passou para as forças do PAIGC.

A explicação para o assassinato do líder fundador do PAIGC pôde dar muito alívio a Pedro Pires, mas não tem qualquer consonância com factos documentais e elementos de prova. Que era urgente travar Amílcar Cabral antes que fosse tarde demais para a sobrevivência do Império português; que no plano interno português tinha crescido a oposição e o descontentamento pelos sacrifícios humanos, económicos e financeiros impostos ao país; que o prestígio e a credibilidade internacional de Amílcar Cabral atingira a sua quota máxima e estava em andamento uma dinâmica que devia conduzir à emergência do Estado soberano da Guiné-Bissau; que as autoridades coloniais, num esquema de guerra antissubversiva, aproveitara-se de alguns traidores que fomentaram a divisão do PAIGC entre guineenses e cabo-verdianos; refere antecedentes como a Operação Mar Verde, em que se procurara liquidar Amílcar Cabral; que Inocêncio Kani era o principal responsável pelo crime de traição.

Este mantra fez o seu percurso útil para liquidar os elementos do complô que os tribunais revolucionários decidiram, fez-se um hábil desvio histórico da fundamentada e multisecular tensão entre guineenses e cabo-verdianos, hoje é argumento de venda para puros nostálgicos, faz deliberadamente esquecer que não se podem entender os acontecimentos de novembro de 1980 e o afastamento da liderança cabo-verdiana na Guiné sem ter em conta a tensão existente em Conacri e mesmo nas bases do PAIGC no interior da Guiné, Pedro Pires nem refere que no dia do assassinato Inocêncio Kani esteve sempre na companhia de Osvaldo Vieira, e que este assistiu à distância ao assassinato do líder – pormenor de pouca importância, claro. Para consolo de nostálgicos e permanente enigma para a história é a destruição de todo o material que se acumulou sobre os julgamentos dos elementos associados ao assassinato. Há explicações que são de farsa, pôr o Momo Touré a liderar uma sedição de centenas de pessoas é por de mais caricato, não tinha nem envergadura nem credibilidade para tal cometimento. E penso que não se tem feito qualquer pressão para ouvir as figuras que participaram nos julgamentos (caso de Joaquim Chissano), que disseram ter lido toda a documentação (caso de Ana Maria Cabral), os testemunhos de quem compareceu em tribunal e não sofreu da pena capital, etc. São de presumir razões fundadas para manter esta pesada barreira de silêncio.

Pedro Pires fala do segundo congresso do PAIGC, da eleição de Aristides Pereira, a líder do PAIGC, e descreve-se o processo da Independência da Guiné-Bissau e tudo quanto aconteceu até ao reconhecimento de Portugal da Guiné-Bissau como Estado independente.

Não se pode desdizer que Pedro Pires não seja um homem de consciência tranquila sobre o seu comportamento político como Primeiro-ministro de Cabo Verde, e ele próprio explica os insultos miseráveis que sobre ele proferiram elementos de oposição. Teria tudo a ganhar em mostrar de corpo inteiro que soubera perder as eleições em 1991, que as calúnias proferidas ficaram por demonstrar, responde aos seus entrevistadores com elevado nível de tolerância, escusava de dizer qual era, no seu entender, a origem do MpD:
“Muitos foram militantes do PAICV. Por outro lado, houve gente de boa-fé entusiasmada com a abertura política que quis uma alternativa ao PAICV. Era um grupo heteróclito. Constituía uma autêntica frente dos contra. Faziam parte desta aliança ex-militantes do PAICV dececionados, os trotskistas, os herdeiros do colonialismo, os despromovidos socialmente que tinham perdido privilégios de classe, funcionários desonestos sancionados, os imediatistas à espera de resultados milagreiros em curto prazo, gente que discordava da Independência, também pessoas de boa-fé que queriam uma mudança do Governo e, ainda, os fiéis que acreditaram nas intrigas veiculadas pelo clero católico, pela rádio e pela imprensa escrita de inspiração católica. Foi mais ou menos isso. Era esse o contexto sociopolítico em que lutou o PAICV, naquela altura, e os adversários contra os quais se tinha batido”.

Comentários completamente escusados, diga-se em abono da verdade. Ao comandante Pedro Pires saem por vezes comentários que não o dignificam. Já aqui repontei com aquela sua tirada de que os Comandos Africanos cobiçavam trazer artigos das bases do PAIGC, eram artigos que eles não tinham à sua disposição no mercado da colónia, escreveu num prefácio do livro O PAIGC Perante o Dilema Cabo-Verdiano (1959-1974), de José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015. Enfim, dislates pouco abonatórios para um líder do seu tamanho.


Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Notas do editor

Poste anterior de 11 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24943: Notas de leitura (1648): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5344: Notas de leitura (37): Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?, de José Pedro Castanheira (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2009:

Carlos e Luís,
Soube-me muito bem reler o José Pedro Castanheira, o enigma persiste, é espantoso como desapareceram todas as provas, salvo a do ódio que deixou raízes e que eu vivi durante aqueles anos da nossa guerra, e confirmei em 1991.
O que é estranho é todos se recusarem a perguntar o que verdadeiramente está por detrás destes rancores.

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral?
Por Beja Santos

Na noite de 20 de Janeiro de 1973, à porta da sua residência na Guiné-Conacri, Amílcar Cabral foi assassinado a tiro por companheiros de luta: Inocêncio Kani desfechou o primeiro tiro, outro (ainda não identificado) deu-lhe os tiros de misericórdia.

Iniciava-se, com este assassínio, um processo de identificação das razões de um crime, nada está apurado, escreveram-se milhares de páginas em relatórios, artigos, livros, depoimentos. Desapareceram todas as provas do processo movido aos conspiradores e suspeitos (declarações escritas e cassetes).

Ao longo dos anos, desenvolveram-se hipóteses sobre quem verdadeiramente o mandou matar, organizou o crime e tentou um golpe de Estado no interior do PAIGC. A reportagem de José Pedro Castanheira Quem mandou matar Amílcar Cabral? (Relógio d’Água Editores, 1995) continua a ser o documento mais interessante para analisar esta tragédia, o que abona o mal-estar que este assassinato ainda hoje provoca entre os protagonistas e os investigadores que acabam por desistir devido à sinuosidade dos depoimentos dos vivos e à incapacidade de decifrar a eliminação de provas. Por isso, vale a pena relê-lo, à luz dos ensinamentos dos últimos 15 anos.

Durante anos, insistia-se na tecla de um assassinato promovido pela PIDE/DGS, a partir de Lisboa ou de Bissau. Tratar-se-ia de uma operação cuidadosamente montada envolvendo pelo menos dois dos mais importantes cabecilhas da conspiração, Mamadu Turé e Aristides Barbosa, antigos tarrafalistas [, prisioneiros do Tarrafal,] que teriam sido aliciados para o crime.

Esta argumentação, veio-se a provar, não tinha fundamento, nenhum documento se encontrou nos arquivos da PIDE/DGS onde existem os nomes dos informadores que colaboraram com a PIDE/DGS e que tiveram acesso ao topo da hierarquia do PAIGC. As declarações arrancadas aos assassinos e suspeitos, que confessaram tal ligação, foram arrancadas com violência abominável, como mais tarde se veio a saber.

Não existem provas do braço longo do ditador Sékou Turé, que inequivocamente detestava a popularidade de Cabral, cujo prestígio aumentava de ano para ano, na cena internacional. Nunca se apresentou uma prova fidedigna do envolvimento do ditador ou da sua polícia secreta na divisão no interior dos dirigentes e centenas de militantes do PAIGC que operavam em Conacri ou noutros pontos da República da Guiné. Com o tempo, também se veio a perceber que o assassinato de Amílcar Cabral foi um golpe duro nos planos de Spínola que acalentou negociações com o dirigente máximo do PAIGC.

A reportagem de José Pedro Castanheira mantêm-se actual, investigou em todas as direcções e não é por acaso que o seu trabalho foi galardoado com dois importantes prémios do jornalismo: pesquisou a vida de Cabral, os seus estudos em Lisboa, as suas amizades com futuros dirigentes africanos, os seus trabalhos na Guiné, a formação do PAIGC, a sua residência em Marrocos depois de ter passado à clandestinidade, a consolidação do seu pensamento, a luta armada a partir de 1963, o crescente prestígio internacional, o seu trabalho político no PAIGC, em África, no mundo.

O jornalista explora, em torno do assassinato, outras especulações de outras tentativas para liquidar o dirigente mítico. Recorda-nos que em Março de 1972 ele próprio denunciara um plano para “destruir o partido por dentro”. Segundo o documento que distribuiu, haveria três fases: (i) infiltração de agentes africanos preparados pela PIDE e fomento da discórdia entre guineenses contra cabo-verdianos; (ii) criação de uma “direcção paralela” aglutinando esses descontentes infiltrados; (iii) contactos com partidos e governos de países vizinhos no sentido de se obter apoio, admitindo-se mesmo a liquidação física do secretário-geral do PAIGC.

Contou Manuel Alegre que Cabral lhe disse um dia em Argel: “Se um dia for assassinado, sê-lo-ei, provavelmente, por um homem do meu povo, do partido e talvez mesmo da primeira hora”. E Alegre comentou: “Foi uma previsão premonitória”.

Provado, verdadeiramente provado, sabe-se que pelas 23 horas de 20 de Janeiro de 1973, Amílcar regressou a casa na companhia da mulher. Aguarda-os um jipe de onde saltam vários militantes armados. Um deles é Inocêncio Kani, um veterano do PAIGC, ex-membro do Comité Central e ex-comandante da Marinha de Guerra. Querem prender Cabral, ele resiste, Kani dispara a pistola a queima-roupa, tê-lo-á atingido no fígado. Um seu companheiro, nunca identificado, disparou uma curta rajada de metralhadora AK, atingindo-o na cabeça.

Um outro grupo liderado pelo chefe dos guardas capturou Aristides Pereira e levaram-no para uma vedeta do PAIGC. Aristides Pereira disse sempre que o informaram que o iam levar para Bissau. Três embarcações zarpam do porto de Conacri, presume-se que para atingir Bissau. E um outro grupo apodera-se da prisão do partido de onde foram libertados quadros guineenses do PAIGC, sobretudo os cabecilhas da conjura.

Os conspiradores foram às instalações do partido onde detiveram aos molhos dirigentes cabo-verdianos, incluindo a mulher de Cabral. Os cabecilhas foram à presença de Sékou Turé que desmantelou a conspiração, prendendo-os e mandando perseguir as embarcações. Começara o estranho processo, com dezenas de acusados, cúmplices e suspeitos. O dirigente do inquérito foi Fidelis Almada que mais tarde veio denunciar as monstruosidades cometidas. Viveu-se um clima de terror estalinista, nem Nino Vieira escapou.

Quem ganhou com o crime, é sempre a pergunta obrigatória. As concepções de Spínola ficaram prejudicadas com o desaparecimento de Cabral. O governo de Caetano e os dirigentes militares portugueses como o general Costa Gomes não desconheciam a escalada armamentista do PAIGC, com alto patrocínio soviético: estavam já formados os utilizadores dos mísseis Strela, estavam em formação os pilotos que iriam trabalhar com os MIG, o dispositivo de combate naval, previa-se, ia ser temível.

O desaparecimento de Cabral, por conseguinte, em nada iria diminuir o esforço de guerra do PAIGC, altamente moralizado pelo apoio internacional e pelos sucessos militares. Passando em revista os potenciais responsáveis, Castanheira detém-se numa figura espantosa digna de um grande romance de John Le Carré: Rafael Barbosa. Porque Barbosa ultrapassa o extraordinário: fundador do Movimento de Libertação da Guiné, dinamizador de greves, colaborador de Amílcar Cabral, agitador em Bissau, preso, eleito presidente do PAIGC durante a prisão, continua a receber e a orientar agitadores na prisão, liberto por Spínola a quem promete publicamente que será tão bom português quanto o comandante-chefe das Forças Armadas.

Depois, após a independência, escapa a todos os processos, a todas as ameaças de execução. Igualmente nunca se comprovou qualquer ligação entre Barbosa e os matadores de Cabral.

Fora inúmeros os agentes e os intermediários que o PAIGC e Spínola utilizaram, foi graças a eles que trocaram correspondência e chegaram a preparar encontros. Alpoim Calvão dirá sempre que teve um intermediário em Londres que levava e trazia o correio de Luís Cabral. De toda a investigação, Castanheira não encontra um só papel que comprove a existência de uma conspiração para matar Cabral.

Estamos a acabar, Castanheira refere as dissensões profundas entre guineenses e cabo-verdianos. Foram tão marcantes e evidentes, que todos os dirigentes do PAIGC fugiram à frontalidade dos factos. Sabe-se hoje que não havia sustentação histórica e cultural para ficcionar uma vida comum entre a Guiné e Cabo Verde. Tudo quanto aconteceu na Guiné a partir de 1974 tem a ver com o pesadelo dessa arquitectura ficcionada: perseguições, maquinação de complôs, afastamento dos cabo-verdianos, a tragédia tribalista, novos complôs, incapacidade de governação, dirigentes pirómanos, guerra civil, formação de grupos passadores de droga.

Perderam-se as provas do processo do assassínio de Cabral, eram seguramente incómodas para as diferentes partes. Como nas tragédias de Shakespeare, Cabral sonhou uma pátria impossível, de acordo com o seu código genético. Como sempre, a história e cultura revoltaram-se. Foram e são demónios à solta. E a Guiné continua a carecer de apaziguamento, reconciliação, desígnio. Corre-se ainda o risco de haver uma segunda morte de Cabral.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5337: Notas de leitura (36): Os Movimentos Independentistas, o Islão e o Poder Português de Francisco Proença Garcia (Beja Santos)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11001: Notas de leitura (452): Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2013:

Queridos amigos,
Os artigos de Fernando Baginha são necessários como peças do incomensurável puzzle das motivações profundas sobre o assassinato de Cabral. 40 anos depois, a penumbra continua densa, apesar da muita especulação gratuita em que sem provas se continua a apontar o dedo para a PIDE em Bissau, Rafael Barbosa, Spínola.
Ninguém acredita que numa conspiração em que estiveram envolvidas centenas de pessoas não se encontrasse um só documento, um conjunto de depoimentos articulados da ligação dos executores de Cabral com Spínola. Há uma carta nos arquivos da PIDE em que Fragoso Allas, diretor da delegação de Bissau, dá uma versão para Lisboa em que é impensável que estivesse a fingir nada saber ou a haver conivência com os altos dirigentes guineenses.
Deve doer muito ter que reconhecer que os guineenses não queriam ser dirigidos por cabo-verdianos.

Um abraço do
Mário


Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral

Beja Santos

Fernando Baginha viveu na Suécia, onde trabalhou, durante alguns anos, com o PAIGC. Em 1972 e 1973, foi professor da Escola-Piloto do Partido, na República da Guiné-Conacri, de que chegou a ser diretor. Foi, também, o autor e responsável pelos programas de propaganda dirigidos aos militares portugueses, através das emissões da Rádio Libertação do PAIGC.

Em 4 e 18 de Dezembro de 1980, Baginha escreve no jornal O Ponto acerca do assassinato de Cabral e as repercussões que este teatro teve na vida do PAIGC, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Diz ter assistido à morte de Cabral e a todo o processo que lhe seguiu, resolveu então tornar públicos factos que calou durante aqueles anos. Em 19 de Janeiro de 1973, os serviços de segurança checos em Conacri avisaram Cabral de que teriam sido detetados indícios de conspiração dentro do PAIGC. Cabral avisou o então responsável pela sua segurança para que tomasse precauções. Tratava-se de Mamadu N’Djai, herói nacional, comandante da frente Norte, três vezes ferido em combate e naquele momento em Conacri em convalescença do seu último ferimento. N’Djai teria feito saber diretamente aos outros conspiradores que o golpe era conhecido. Assim, tudo foi antecipado e a ação decorreu em plena visita oficial a Conacri de Samora Machel e a Joaquim Chissano.

Nessa noite, decorria na Escola Piloto do PAIGC, em Retoma, arredores de Conacri, uma reunião de informações sobre o desenrolar da guerra em Moçambique, presidia Chissano. Cabral e Machel estavam ausentes. À hora em que terminou a reunião, cerca das 23 horas, Cabral já estava morto. O grupo de viaturas que voltava para Conacri ou para outros campos do PAIGC, foi intercetado pelo grupo de revoltosos, sendo presos todos os elementos cabo-verdianos ou com ele conotados. Pela meia-noite, toda a direção política do PAIGC, de momento em Conacri, estava presa. Segue-se a reviravolta, o exército de Sékou Touré intervém em força e prende todos os elementos do PAIGC, revoltosos e vítimas, o golpe parou.

O que se passara, entretanto? O grupo diretamente encarregue de prender Cabral, comandado por Inocêncio Kani, acaba por abater o líder do PAIGC enquanto outro grupo, comandado por Mamadu N’Djai, prende e rapta Aristides Pereira que é levado para um barco de guerra do PAIGC, fortemente amarrado e com ele é levado Buscardini, um dos carrascos dos comandos africanos e morto em 14 de Novembro de 1980.

O grupo que abatera Cabral apresentou-se no Palácio de Sékou Touré, informando que acabara de matar o secretário-geral do PAIGC. Sékou Touré dá-lhes ordem de prisão. Para Baginha, o envolvimento da Guiné-Conacri na tentativa de afastamento da direção cabo-verdiana era por de mais evidente: toda a conspiração ocorreu em Conacri e foi detetada pela segurança checa que obviamente terá avisado Sékou Touré; os executores de Cabral, cumprida a sua nefanda missão, dirigiram-se ao palácio da Presidência para que houvesse reconhecimento do golpe; os revoltosos atravessaram toda a Conacri e saíram do porto, apesar das rigorosas medidas de segurança que existiam. Numa reunião que teve lugar no palácio da Presidência, Sékou Touré informou todos os quadros do PAIGC dos resultados provisórios do inquérito à morte de Cabral: no momento da morte de Cabral encontravam-se em Conacri 429 elementos do PAIGC e 336 estavam a par da conspiração.

Baginha refere os desentendimentos profundos entre Cabral e Osvaldo Vieira, prendiam-se sobretudo com a condução militar das operações. Cabral permitia-se, por vezes depois de longas ausências no estrangeiro alterar completamente planos já estabelecidos. Para mais, Cabral já não entrava nas zonas libertadas da Guiné havia cerca de 3 anos. No dia do assassinato, Osvaldo Vieira estava em Conacri, a tudo assistiu, todos o viram, ele viu tudo e não teve um gesto para evitar o que se passou (recorde-se o que Bobo Keitá escreve no seu livro, já aqui referenciado: foi visto Osvaldo Vieira durante todo o dia na companhia de Inocêncio Kani). Continua Baginha a referir que tendo ficado preso na companhia de guineenses, estes não disfarçavam a sua preocupação e falavam abertamente: Osvaldo era o nome mais citado. Nos interrogatórios perguntaram a todos os inquiridos se teriam ouvido algo sobre o envolvimento de Osvaldo Vieira e em consequência dos inquéritos ele foi suspenso de todas as funções diretivas no partido. Osvaldo Vieira foi conduzido para a zona de Madina de Boé sob prisão. Depois disse-se que teria morrido de doença do estômago. Mas Baginha não tem dúvidas, ele foi executado. No primeiro dia de execuções, foram executados nas três frentes de guerra 69 homens. Sékou Turé não autorizou fuzilamentos em território da República da Guiné. E Baginha diz sem rebuço que o golpe de 14 de Novembro de 1980 não é mais do que a continuação do golpe de 20 de Janeiro de 1973. Com este golpe não restava qualquer dúvida: pretendia-se levar Nino Vieira ao poder.

No segundo artigo, Baginha volta-se para Rafael Barbosa, uma das figuras mais assombrosas e enigmáticas de todo o processo: peça fundamental da subversão dos anos 50 até 1962, foi preso, foi visto como um herói durante uma boa parte da luta armada, classificado como traidor depois da sua confissão pública ao lado de Spínola, preso com a independência, condenado à morte, pena comutada, libertado, de novo herói e logo desmentido. Cabral sempre o considerou o pilar da primeira fase da luta de libertação, tratou-o, até à sua confissão pública, como o presidente do PAIGC. Para Baginha, é com a libertação de Rafael Barbosa, autorizada por Spínola, que irá começar a clivagem entre guineenses e cabo-verdianos. Segundo Baginha a direção política do PAIGC não insistiu muito na condenação de Barbosa devido a dois factos importantes: primeiro, a adesão de cabo-verdianos ao PAIGC ter estagnado; segundo as adesões cresciam exponencialmente a partir de fugas da Guiné, quem chegava a Conacri não escondia a sua admiração por Rafael Barbosa.

Baginha nunca acreditou nas implicações da PIDE no assassinato de Cabral, diz saber que a PIDE não tinha, diretamente, nada a ver com o assassinato, considera que Spínola terá jogado na agudização da contradição que ele sabia existir: quantos mais guineenses do PAIGC e mais rápida seria a desagregação do partido. Spínola, com a sua “Guiné melhor”, conseguiu insinuar a ideia, ao nível dos quadros de guerra, de que sem a unidade Guiné-Cabo Verde algo seria possível. E inúmera alguns “atrasos de percurso” até à chegada definitiva de Nino ao poder: o falhanço do golpe de 1973; o 25 de Abril, que obrigou todos os intervenientes a estarem de acordo; a confirmação do poder de Luís Cabral, beneficiando do processo de descolonização e do apoio dos outros países saídos das ex-colónias; o apoio que Luís Cabral sempre teve de Francisco Mendes (Chico Té) primeiro-ministro até ao acidente que o vitimou.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10977: Notas de leitura (451): Guiné-Bissau: A Destruição de um País, por Julião Soares da Silva (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21130: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - II (e última) Parte


Foto 4 – Cutia (Região do Óio) - "Ronco" da CART 564 [Out63-Out65]. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/


Foto 5 – Cutia (Região do Óio) - Estrada principal para Cutia. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564, 1963/65), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/


Foto 6 – Mansoa (Região do Óio) - Dois elementos da CCAÇ 413 (1963/65), junto à placa toponímica que indicavam algumas das localidades mais próximas para Oeste (Nhacra, a 28 km e Bissau, a 49 km. Para Leste: Enxalé, a 50 km; Bambadinca, a 65 km e Bafatá, a 93 km. – Foto do livro «Nos celeiros da Guiné», de Albano Dias Costa e José Sá-Chaves, com a devida vénia – P3066.



O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, indigitado régulo da Tabanca de Almada e da Tabanca dos Emiratos; tem 256 registos no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963-1964
- O CASO DE ENCHEIA -

II (e última) PARTE


Mapa da região do Óio, com indicação de alguns dos locais de "memórias cruzadas".
Em todos eles, e em todas as gerações de combatentes, com início em 1963, ocorreram factos marcantes para o resto da vida… (de todas as vidas)… em que alguns não tiveram direito a "viagem" de regresso... Lamentavelmente!

► Continuação do P21095 (21.06.20) (*)

3.   - AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS COMANDANTES DE BASES

Os objectivos da missão realizada por Bebiano Cabral d'Almada, dirigente do Bureau de Dakar, entre 12 de Janeiro e 05 de Fevereiro de 1964, incluía contactos com as estruturas partidárias organizadas em território da República do Senegal, na região de Casamansa, e um melhor conhecimento sobre o desenvolvimento da luta no interior da Guiné, através da visita a algumas das bases existentes na região do Óio-Morés.

No entanto, um outro propósito intrínseco aos objectivos supra, passava pela avaliação do desempenho versus comportamento dos diferentes comandantes das bases visitadas, que o relatório dá conta. A justificação para esse desiderato é explicada pelo autor do documento nos seguintes termos:

"Sem qualquer ideia de crítica ou espírito de maldade, mas na obrigação estrita do cumprimento do dever, cumpre-me deixar aqui escrito, certas informações sobre alguns responsáveis, colhidas nas bases visitadas." (Op. Cit., p. 16)

3.1         - INFORMAÇÕES SOBRE DIVERSOS CAMARADAS

● Camarada Mamadu Indjai – responsável da base de Fajonquito [Óio] e da recente base criada em Maqué [viria a morrer em 1973, na região do Boé, fuzilado pelos seus camaradas, por estar envolvido, em Conacri, na conspiração que levou ao assassinato de Amílcar Cabral (1924-1973)].

Não só na organização dos grupos de rapazes e raparigas existentes nas suas bases, como ainda pela muita coragem que tem sempre demonstrado em constantes combates travados contra os colonialistas portugueses, não parando além disso inactivo na sua base, sempre à procura de entrar em acção, quer em terra, como ainda procurando inutilizar as vedetas inimigas em fiscalização no rio, tendo ainda agora, permanecido durante cinco dias vigiando o rio Cacheu, perto de Iador, para ver se conseguia neutralizar a acção duma vedeta que ultimamente tem rondado aquelas paragens, não tendo infelizmente de satisfazer o seu desejo.

Camarada Leandro Vaz – responsável da base de Dando

Tem uma boa organização na sua base, mas isso não é suficiente, em virtude de não se deslocar da base para procurar entrar em acção contra o inimigo e nem sequer em serviço de rotina de ronda.

Camarada Augusto Pique

Encarregado duma base nova a poucos quilómetros de Dando, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz, tem demonstrado sempre muita coragem e a melhor vontade no desempenho do seu cargo.

Camarada Paulo Santi I (1º)

Encarregado duma base recentemente formada, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz e situada entre Mansoa e Dando, tem desempenhado as suas funções a contento do seu responsável.

Camarada Corca Só – responsável da base de Sansabato

Demonstrou a sua coragem no ataque no dia 01 do corrente mês (Fev'64), contra os colonialistas, forças terrestres e aéreas que tentaram atacar a sua base, tendo mesmo defendido corajosamente, somente com seis camaradas na ocasião na base, em virtude dos dois pelotões armados terem saído de ronda, tendo-se valentemente aguentado, dando assim tempo à chegada de reforços saídos da base Central. Merece as melhores referências [morreu em combate, na base Guerra Mendes (Óio-Morés), em 08Out72].

Camarada Inocêncio Kani – responsável da base de Mansodé [, futuro assassino de Amílcar Cabral, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973]

É um incansável e corajoso combatente, tendo ainda há dias, depois de bombardeada a central eléctrica de Farim, assaltado de surpresa uma povoação de fulas, ligados aos colonialistas e dali retirou mais de quarenta cabeças de gado bovino e milho, que servirá para a alimentação das bases.

Camaradas João da Silva e Quintino Robalo – encarregados da base Central, na ausência do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira)

Durante a minha estadia na base Central, nunca se deslocaram da base para qualquer acção ou simples serviço de ronda, a não ser o camarada Quintino Robalo, quando me acompanhou de visita às bases a cargo dos camaradas Inocêncio Kani e Corca Só.

Camarada Agostinho da Silva "Gazela" – responsável da base de Biambe

Não visitei esta base, não só pela longa distância, como me encontrei com o respectivo responsável na base Central, quando ali fora pedir reforço de material para enfrentar os constantes ataques aéreos e terrestres de tropas colonialistas portuguesas, vindas de Bula, Bissorã, Mansoa e Canchungo. 

Informou-me não ter raparigas na sua base mas que está em vias de as ter dentro em breve, e que a organização da massa se encontra normal. Desse camarada tive a informação que o camarada Marcelino da Mata, é muito cobarde, procurando fugir sempre a qualquer contacto com as tropas inimigas.

Camarada Caetano Semedo – responsável da base de Cubajal (Porto Gole)

Também não visitei esta base, pela sua longa distância, mas fui informado pelos camaradas Maximiano Gama e Irénio Lopes, que por lá passaram, que nessa base existem grande número de raparigas e rapazes bem organizados, apesar também de sofrer constantes ataques terrestres, aéreos e navais. Este camarada, por informações obtidas na base Central tem desempenhado corajosamente as funções do seu cargo, mostrando muito brio e competência.

Camarada Hilário Rodrigues "Lolo"

Segundo informações colhidas na base Central, tem-se desviado de constantes ataques, tanto assim que o camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira) resolveu destacar-lhe em serviço de mobilização e propaganda, o que demonstra não ter o mesmo condições militares. 

Foi depois colocado, como Cmdt da "Zona 3" (Canquelifá - Buruntuma - Piche e Nova Lamego), onde o vamos encontrar em Abril de 1965. Passados cinco meses (Set'65), Amílcar Cabral toma a decisão de o transferir para a Frente Sul, como prisioneiro do Partido, ficando à guarda de "Nino" Vieira, com a seguinte justificação:



Citação: (1965), Sem título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35336, com a devida vénia.

Camarada António Embaná

Encontra-se na base de Fajonquito a trabalhar com o camarada Mamadu Indjai, tendo este realçado as suas qualidades, dizendo ser o seu braço direito e que tem desempenhado as suas funções com competência e coragem, tendo no seu regresso, deixado o camarada António Embaná, incumbindo pelo camarada Mamadu Indjai, em Iador a escolher um local seguro, para uma nova base que pretendem criar, tendo nesse mesmo dia reunido o camarada Embaná, numerosas pessoas para explicar-lhes a necessidade da criação daquela base, em virtude da povoação estar agora livre do traidor Braima Cutô, que servindo de Pide, vinha extorquindo a população, e que foi pessoalmente preso por ele Embaná e executado na base Central por ordem do camarada Mamadu Djassi.

Camarada Julião Lopes
O parecer sobre o Cmdt Julião Lopes será analisado no contexto do ponto seguinte.

Foto 7 – Citação: (1963-1973), "Reunião de combatentes do PAIGC e população em Morés", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43456, com a devida vénia.

4.   - A SITUAÇÃO MILITAR EM ENCHEIA

4.1 - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE ARTILHARIA 564 =
NHACRA - QUINHAMEL - BINAR - TEIXEIRA PINTO - ENCHEIA - MANSOA E CUTIA (1963-1965)

4.1.1 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG
Mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada 2 [RAP 2], de Vila Nova de Gaia, para servir na província ultramarina da Guiné, a Companhia de Artilharia 564 [CART 564] embarcou em Lisboa, no Cais da Rocha, em 08 de Outubro de 1963, 3.ª feira, sob o comando do Cap Mil Art Rodrigo Claro de Albuquerque Menezes de Vasconcelos, seguindo viagem a bordo do N/M «ANA MAFALDA», tendo chegado a Bissau em 14 do mesmo mês, 2.ª feira.

4.1.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL

Após a sua chegada ao CTIG, a CART 564 [14Out63-27Out65] rendeu a CART 240 [30Jul61-19Out63, do Cap Art Manuel Fernando Ribeiro da Silva], ficando colocada no sector de Bissau, com Grs Comb destacados em Nhacra e Quinhamel, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 600 [18Out63-20Ago65, do TCor Inf Manuel Maria Castel Branco Vieira], com vista a garantir a segurança das instalações e das populações da área. 

A partir de 24 de Dezembro de 1963, um Gr Comb foi destacado para Binar e seguidamente para Teixeira Pinto, a fim de reforçar a actividade do BCAÇ 507 [20Jul63-29Abr65, do TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas], enquanto outro Gr Comb se instalou em Encheia, na zona de acção do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], a fim de ocupar aquela povoação. 

Em 12Mai64, assumiu a responsabilidade do subsector de Nhacra, então criado, na zona de acção do BCAÇ 600, continuando, no entanto, a manter o pelotão destacado em Encheia até 01Jul64.

Nesta data, por rotação com a CCAÇ 413 [09Abr63-29Abr65, do Cap Inf Júlio Eugénio Augusto Viegas de Almeida Pires], assumiu a responsabilidade do subsector de Mansoa, ficando integrada no dispositivo do BCAÇ 512 e depois do BART 645 [10Mar64-09Fev66, do TCor Art António Braamcamp Sobral], sendo utilizada, cumulativamente, na função de força de intervenção do sector, de 12Set64 a Fev65, actuando nas regiões de Santambato, Cubonge e Mantefa, em 13Abr65, voltou a ter um Gr Comb em Encheia, tendo ainda mantido efectivos em Cutia, por períodos variáveis. 

Em 27Out65, foi substituída no subsector de Mansoa pela CART 644 [10Mar64-27Jan66, do Cap Art Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques (1.º), Cap Art Nuno José Varela Rubim (2.º) e Cap Art José Júlio Galamba de Castro (3.º), tendo seguido para Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso. p 440.

4.1.3 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL EM ENCHEIA

A chegada de um Gr Comb da CART 564 a Encheia, verificada em 24 de Dezembro de 1963, 3.ª feira, é a resposta do comando militar do Sector C, da responsabilidade do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], ao crescendo das hostilidades na região do Óio iniciadas no mês de Junho de 1963, a partir da base central do Morés, "santuário" dos guerrilheiros do PAIGC.

Em relação a Encheia, merecem destaque, como fonte de informação privilegiada, as referidas pelo Chefe Administrativo do Posto local, José Cerqueira Leiras, ex-militar da CCAÇ 153 (1961-1963), retiradas do seu livro «Memórias de um esquecido», edição de 2003, já referenciado na Parte I deste trabalho – P21095 –, onde o camarada Beja Santos faz a apreciação crítica da narrativa do autor, a quem agradecemos, e que aproveitamos para citar algumas ocorrências – P16503.

São exemplos: 

"Numa coluna para Bissau [provavelmente em Outubro'63], entre Encheia e Binar há uma emboscada, um camião civil carregado de arroz e mancarra saltou pelos ares com o rebentamento de uma mina".

 Passado algum tempo, regressa a Encheia, "e pela estrada de Bissorã, via Mansoa, depara-se um camião civil a arder. Dez quilómetros à frente, duas árvores atravessadas e mais adiante uma grande vala cortando por completo a estrada". (…) 

Este quadro adverso e de terror, onde diariamente assiste à fuga da população para o mato, leva José Leiras a deslocar-se a Bissorã para falar com o Administrador local e pedir reforços, mas tudo lhe é recusado. "No regresso, escapa por um triz a uma saraivada de balas".

A este conceito de "sorte", juntou-se um outro algum tempo depois, provavelmente em meados de Outubro de 1963, durante um ataque à povoação de Encheia.

O ataque teve como consequências a destruição, pelo fogo, de muitas moranças, o comércio saqueado, todo o gado roubado e pessoas levadas para o mato. O comerciante Francisco Beira Mar é assassinado. José Leiras consegue chegar ao Posto Administrativo e resiste ao fogo dos guerrilheiros, apesar de ferido, pois no jipe onde se fazia transportar foi atingido por várias balas numa perna. José Leiras arranja um voluntário para ir a Bissorã avisar a tropa. Esta levou cinco horas para fazer 24 kms, pois na estrada havia dezenas de árvores atravessadas para além das valas.

Ferido, José Leiras é levado para o hospital (?), nessa altura as cuidadoras são religiosas. São-lhe extraídas as balas e algum tempo depois vai de avioneta até Bissorã. Aí passará a noite de Natal de 1963, e no dia seguinte segue para Encheia, onde vai encontrar o Gr Comb da CART 564.

O responsável por este primeiro ataque a Encheia foi o Cmdt Julião Lopes, vindo da base Central do Morés. Quem o afirma é Bebiano Cabral d'Almada no seu relatório, no ponto reservado às informações sobre diversos camaradas (ponto 3.1 desta narrativa).

=> Diz o relatório (p. 18):

"Por informações colhidas na base Central sobre este camarada [Julião Lopes], soube que num ataque [realizado em Outubro de 1963] do grupo por ele dirigido, em Encheia, contra o Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras] e não contra a tropa colonial, que numa rajada da sua metralhadora matou três camaradas, a saber: Luís Mendes "Mambará", João Balimbote e Joãozinho Amona, ficando ele, Julião, ferido com uma bala de um dos camaradas daqueles que morreram, que o atingiu propositadamente com a intenção de o matar, procurando assim vingar-se por si e seus companheiros, tendo nesta altura também ficado ferido, e ainda pelo camarada Julião Lopes, o camarada Paulo Santi

Depois de arrebentada a porta da residência do Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras], para ser liquidado, o respectivo chefe, o camarada Julião Lopes, impediu os seus companheiros de o fazerem, alegando bastar já o mesmo ter uma perna quebrada [balas nas pernas].

O Cmdt deste ataque, Julião Lopes, foi depois transportado para o Hospital de Ziguinchor, a fim de ser intervencionado, onde se manteve até ao dia 09 de Janeiro de 1964, 5.ª feira, data em que deu início ao seu regresso à base Central do Morés.


4.2 - ANTECEDENTE DESTE ASSASSINATO COLECTIVO

Segundo os factos narrados no ponto anterior, procedemos ao seu aprofundamento realizando nova pesquisa onde encontrámos um registo datado de 25 de Setembro de 1962. Trata-se de uma carta escrita em Zinguinchor, em "linguagem codificada", dirigida a Amílcar Cabral, onde constam alguns nomes dos que foram assassinados pelo Cmdt Julião Lopes, em Encheia, e que seguidamente se transcreve o conteúdo e se reproduz o documento original.

=> Ziguinchor, 25 de Setembro de 1962 (3.ª feira).

Camarada Cabral,

Esta tem por fim pedir-lhe o envio urgente, caso seja possível, de 4 bonecas daquelas que trazem sapatos e roupa sobressalente pois que tenho que ir presentear pessoas da minha estima.

Seria conveniente enviar-me também o mapa e croquis do número 10 [Zona 10? - Bula a Teixeira Pinto] porque faz muita falta na conclusão do trabalho que tenho entre mãos.

Não se esqueça também de algumas caixas de supositórios para levar aos meus doentes bem como os respectivos suportes suplementares.

Cito-lhe o nome de alguns doentes: - Augusto da Costa, William Tubman, Luís Mendes e João.

O amigo Brauner [Braima Camará?] pediu-me um pé suplente para a boneca da sua filha porque só veio com um pé. É das bonecas maiores, conforme ficha de recebimento.

Receba cumprimentos do camarada sempre ao dispor,
Julião Lopes.

Citação: (1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37368, com a devida vénia.
Concluído.
► Fontes consultadas:

Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.011. Título: Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné. Assunto: Relatório enviado a Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por Bebiano Cabral de Almada, Membro do Bureau de Dakar, sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné Bissau. Data: Sábado, 15 de Fevereiro de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).

Ø  Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde… sem ajuntamentos.

Jorge Araújo.
21JUN2020
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21095: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - Parte I