quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7555: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (9): Piteira - O Rânger do Alentejo

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 5 de Janeiro de 2011, com mais uma das suas boas memórias da guerra.


Memórias boas da minha guerra (9)

Piteira – o Ranger do Alentejo

O António Piteira, natural de Bencatel, próximo de Borba, era uma força da natureza. Conheci-o em Vendas Novas, durante o Curso de Artilharia. Irrequieto e provocador, vivia sempre em competição, parecendo querer afirmar-se em tudo.
Dizia-se que nas Caldas da Rainha, estando doente, não aceitou o resultado da prova de potência. Foi repeti-la, para baixar mais de 30 segundos.
Como era bom jogador de futebol, foi aproveitado para jogar como ponta de lança no Estrelas de Vendas Novas. Ainda como jogador do Lusitano de Évora, foi treinar ao Sporting e, segundo ele, como não lhe passavam a bola, abandonou o treino chamando-lhes Filhos da…

Exercício do Rapel (era com as roldanas dos trolhas içarem a massa)

Foi com ele que comecei a gostar do Alentejo e da sua gente. Enquanto no norte dificilmente nos manifestávamos politicamente, com medo de represálias, ali, com ele e alguns amigos, participei em algumas sessões, marcadamente revolucionárias.

Piteira já rema em seco (primeiros exercícios para a canoagem)

Mais de meio ano depois, em Setembro de 1966, encontrámo-nos em Lamego para prestar provas para o curso de Ranger. Curioso que nem ele nem eu desejávamos lá ficar. Por isso, durante as provas de selecção, tudo fizemos para ficarmos em último lugar. Porém, de nada nos valeu essa artimanha e obrigaram-nos a ficar lá. Foi logo decidido que seríamos “parelhas”. A organização por parelhas significava que todos os instruendos estavam obrigatoriamente ligados em grupos de dois e que teriam que fazer tudo em conjunto, numa missão de entreajuda total. E, além disso, que qualquer falta cometida por um deles teria que ser “paga” pelos dois, presumindo-se que a “culpa” era de ambos.

Inicialmente, o nosso relacionamento foi muito bom, Todavia, devido às suas aventuras e provocações, passávamos muito do tempo a discutir.
Uma das coisas que ele gostava era de exibir as calças da farda de trabalho nº 3, abertas/descosidas entre as pernas.

Num dia muito frio de finais de Novembro, estava anunciada a descida nocturna em Rapel, desde a torre da Sé para a parada. Pois o amigo Piteira descobriu logo ali mais uma forma de se exibir. Disse-me que deveria ser engraçado, descer com o cigarro aceso, que, com o movimento da descida, pareceria um cometa. E decidiu que ia fazer isso. Claro que, mais uma vez, discutimos, mas ele não me ligou. E, já a subir as escadas para a torre pelo interior da igreja, comecei a afastar-me dele, como forma de protesto.
Procurei logo ser dos primeiros a descer, ficando ele a fazer os preparativos da apresentação do tal cometa.

Antes de irmos para o Douro sem barragens, já vencíamos no Varosa.

Entretanto, o Comandante chegou, acompanhado, como habitualmente, da sua mulher, ambos garbosamente vestidos de camuflados, cuidadosamente passados a ferro. Ela vinha já preparada, como sempre, para exemplificar como se devia fazer a descida em “rapel” a qualquer maricas que acusasse falta de coragem. E o Comandante, sempre de mangas arregaçadas, mostrava a sua valentia, ainda que exibindo pêlos encrespados na evidente “pele de galinha” provocada pelo frio e, por vezes, através da voz entrecortada, devido ao “congelamento” dos maxilares.

Mal vi o Piteira pendurado no cabo do “rapel”, de pernas abertas, calças rotas denunciando o “aparelho recreativo” e o cigarro aceso na boca, larguei a fugir para a mata, escondendo-me na escuridão e jurando que desta vez, não iria aparecer para “pagar” juntamente com ele a pena que lhe iria ser aplicada. Ele descia pelo cabo devagar, possivelmente para prolongar o espectáculo. Porém, o Comandante, de megafone na mão, logo exclamou: “- Quem é aquele melro?” E mandou apontar o holofote para cima.

Piteira com as calças abertas - no campo do Lamego, preparados para o futebol

- Ohhhh!!! – soaram, em espanto, as vozes da assistência, seguidas de algumas gargalhas. O Comandante perguntou logo de seguida: “- Onde está a parelha, quem é a parelha?” E foi acrescentando: “- Desce meu melrinho, que já te vamos tratar da saúde.”

A sessão do “rapel” acabou, e eu silenciosamente, fui-me introduzindo no quartel e meti-me na cama de baixo do beliche (a de cima era dele, porque fumava). Não sei onde ele esteve. O que sei é que, quando todos já dormiam, ele surgiu, apoiando-se aos armários, até chegar junto da cama. Não se aguentava de pé. Aninhou-se e caiu sobre a cama, ao meu lado, sem dizer uma palavra. Fui para a cama de cima.

Sempre que vejo o filme “Voando sobre um ninho de cucos” http://www.dvdpt.com/v/voando_sobre_um_ninho_de_cucos.php (um dos meus preferidos) identifico com o Piteira a personagem irreverente interpretada pelo Jack Nicholson. E quando ele vem para o dormitório, a regressar da sua última dose de tratamento de choque, eu penso: - Lá vem o Piteira, “recosido” pela tareia que levou em Lamego, depois da descida nocturna em “rapel”.

Silva da Cart 1689
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7376: Agenda Cultural (93): A Sociedade Filarmónica de Crestuma (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp, CART 1689, 1967/69)

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7315: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (8): Canquelifá e o desporto - Provas de Periquitos

11 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Ferreira da Silva

Por vezes a irreverência é arte, que só os ousados e corajosos têm o condão de a patentear!
Poderá ser o caso do Piteira…?

Um abraço

José Corceiro

Luís Graça disse...

Tive o grato prazer de conhecer, em carne e osso, o José Ferreira da Silva, autor desta história, há dias na Tabanca de Matosinhos, no nosso convívio de 29/12/2010...

As circunstâncias não foram as melhores para mim, devido a uma maldita ciática que me atormentou na última quinzena do ano de 2010...

Reencontrei, entre muitos outros camarigos (uma meia centena, tudo gente fixe), o Portojo, um verdadeiro cavalheiro, tripeiro, como deve ser, de fino humor e verbo fácil...

O Zé Ferreira e o Portojo estiveram em Catió e "reconheceram-se" (!) ao fim destes anos todos... na Tabanca de Matosinhos que costumam frequentar (O Zé não sei com frequência...).

Ficámos, no fim, eles, eu, o Joaquim Peixoto e mais um ou outro camarada, a contar algumas histórias... Eles, eu a ouvir, claro, e um bocado à rasca...

Qualquer deles, são dois grandes contadores de histórias e camaradas divertidos... O Portojo mais expansivo, o Ferreira da Silva mais discreto...

Esta história do Piteira foi-me contada por alto por ele mesmo, Zé Ferreira da Silva... Achei-lhe um piadão. E fez-me muito bem à ciática, ou melhor, esqueci por uns minutos a maldita cialgia... Mas hoje é que me ri que me fartei, sozinho, ri com gosto, a bandeiras despregadas, ao lê-la com calma e com todos os detalhes...

Um momento alto do nosso "humor de caserna", que é bipolar (dizem os psiquiatras de fora)... Parabéns, Zé, e foi um gosto conhecer-te ao vivo!... Escreve mais e não te chateies se os "c... dos editores" (sci), uma vez por outra, põem o "pi-pi", as reticências, ou a "bolinha vermelha" a funcionar no palavrão de caserna... É que isto é um blogue de meninos de coro...

Agora a verdade é que tu tens cumprido a tua palavra de "ranger" (à força, ficámos agora a saber...), palavra essa que foi a de escrever as tuas "memórias boas" (!) da "tua guerra"... E já lá vais em nove postes... Um dia vamos pôr isso tudo num livrinho... porque saber contar e escrever com graça, é contigo!

O humor é uma arte... Regista, desde já, o título, na Sociedade Portuguesa de Autores, porque um título desses, "Memórias Boas da Minha Guerra", é um achado, à boa maneira do saudoso Solnado... D´+a um um bom título para um "best-seller"... E o mais espantoso, é que ainda ninguém te insultou por reivindicares o direito a teres "memórias boas da tua guerra"... de Lamego a Catió.

PS - Simples curiosidade: o que é feito do pândego do Piteira ? Será que a vida foi lhe madrasta ? Foi mobilizado ? Nunca mais o viste ?

Silva da Cart 1689 disse...

Camarada Luis Graça
Antes do mais, obrigado pelas boas palavras. Acho que são demasiado elogiosas mas não vou ficar mal agradecido.
Depois, quero que saibas que gostei muito daquela tarde passada na Tabanca Pequena, em convívio aberto com os ex-combatentes e, para mais, tendo ali presente o Homem que deu vida a esta excelente obra que é o nosso blogue. Para ti a minha simpatia e a minha grande admiração.
Sobre o Piteira, apenas direi que o procurei em Bencatel algumas vezes e acabei por obter o seu nº de telefone de Lisboa, onde vivia. Esteve em Angola. Falámos, recordámos os velhos tempos e chegámos a marcar encontro em Alhandra, há cerca de 20 anos, quando eu era Presidente da Fed.Port.Canoagem, durante a realização de uma prova. Ele não me apareceu.
Penso que ele já tinha problemas de saúde. Como eu andava muito ocupado, fui adiando o desejável encontro que, infelizmente nunca se concretizou.
Perdi o seu contacto e ficaria muito contente se ele reagisse a este artigo.

JOSE CASIMIRO CARVALHO disse...

Os Rangers são "Diaboliques"...

Ze de Lamego. disse...

Amigo e camarada!Adorei o documentário e espero que continues a escrever essas estórias da tua passagem pela guerra.Forte abraço


Ze Pereira

Ze de Lamego. disse...

Amigo e camarada!Adorei o documentário e espero que continues a escrever essas estórias da tua passagem pela guerra.Forte abraço


Ze Pereira

Ze de Lamego. disse...

Amigo e camarada!Adorei o documentário e espero que continues a escrever essas estórias da tua passagem pela guerra.Forte abraço


Ze Pereira

Ze de Lamego. disse...

Adorei os teus escritos.Abraço

Sandra Piteira disse...

Li com atenção e muitos sorrisos à mistura a história do Piteira - O ranger do Alentejo - meu pai. Tal reflete o espírito ousado, impertinente, divertido e livre que ainda hoje ele partilha com quem com ele convive.

Anónimo disse...

Antonio Piteira (O Ranger do Alentejo) conforme me classifica o meu amigo e irmão eterno, Zé Ferreira da Silva, o Bonasceirão do Grupo de Rangers (Aonde só os Homens de Fibra e Raça Indómita podem alcandorar-se) afirma-te que está Bem e de Boa Saúde, mantendo a mesma vivacidade cultural de outrora mas, choroso, pelas mortes de Guevara e Fidel-El Comandante. Camarada e amigo Zé Ferreira da Silva, convido-te a adquirir o Best-Seller « O PROCESSO HISTÓRICO » por Juan Clemente Zamora, editado pela LIVRARIA RENASCENÇA de LISBOA.
Ocasião houve em que, a teu pedido, citei a seguinte frase ( ABAIXO A GUERRA E VIVA A PAZ ).
Que, julgo, não interpretaste como era meu objetivo.
Manter a nossa Identidade e Essência é fundamental para o resto da nossa caminhada neste planeta em que nascemos, evitando Agruras Disfuncionais contrárias ao Processo Histórico que ora decorre e até à Concretização Geral no Planeta Terra. Até SEMPRE. UM FORTE ABRAÇO

José Ferreira disse...

Amigo Piteira
Só hoje, dia 06.09.2021, vi o teu comentário. Como te pretendo visitar amanhã, resolvi vir dar uma espreitadela ao Blogue Luís Graça e reler a história do Ranger do Alentejo, já publicada em livro.
Foi uma agradável surpresa saber que o que escreveste. Obrigado.
Amanhã teremos a oportunidade de recordarmos juntos as nossas vidas, os seus caminhos e, também juntos, augurarmos de felicidade o futuro que nos resta.
Forte abraço, que amanhã será renovado rebeldemente, contra a Covid
José Ferreira
(Silva da Cart 1689)