quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3741: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Porra, meu alferes, sou cabrão, eu mato-a...



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça... duas facetas do quotidiano.

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Torcato Mendonça:

Caros Editores: Já estamos em 2009. Nunca mais enviei nada.
Comentário aqui ou acolá, vontade de outros fazer...por vezes é preferível ficarem no 'tinteiro'.

Andam por aqui uns escritos... coisas do passado e outras a merecerem revisão. Falta-me garra e, por outro lado, estava muito visível.

Posso vir a escrever sobre os macacos cães...posso..., pois: deram-me cabo de uma emboscada...Seguiam-nos, à devida distância, nas colunas. Berravam se fossem incomodados... Fui fazer uma operação na zona de Nova Lamego, caminhando pela rua tres ou quatro militares velhos e um macaco cão. Diz um Major: "Ora aí está. O militar mais apresentável é o macaco"... Sacana, o macaco, claro.

No Leste haviam muitos. Que me lembre nunca comi. Era e sou de boa boca. Comi javali, gazela, vaca de mato, etc. Cá já comi cobra, lagarto, rã (pernas). Ora com as fomes que por lá passei, nunca me faria rogado a um bom naco de macaco....até uns peixes (quatro címetross o máximo) os putos apanhavam-nos, esfregavam na areia para sair a viscosidade e eram fritos em azeite e piri-piri. Proteínas e deliciosos se engolidos com vinho e coca-cola....Era melhor que feijão frade ao pequeno almoço, almoço e jantar...Vida de mato...
Torcato Mendonça

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça e o seu grupo de combate, no regresso a casa...

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.


2. Estórias de Mansambo (14) > Frio de Inverno (*)

por Torcato Mendonaça


Quase chocaram ao dobrar a esquina. A culpa seria do vento frio, pois ambos iam de cabeça baixa. Fizeram rápido desvio. Nas suas caras, dois sorrisos foram um cumprimento.

Ele olhou-a, sorrindo ainda e desejou-lhe:
- Tudo de bom.

Ela agradeceu. Olhou-o a mostrar a felicidade que só uma mulher grávida de muitos meses consegue deixar transparecer.

Entrou na Praça, sentindo o ar gelado descendo da Estrela. Apressou o passo na direcção do Café logo ali e enrolou-se mais no cachecol.

Sentou-se junto à vidraça olhando o movimento da rua cá em baixo. Ao mesmo tempo, interrogava-se:
- Porque teriam as mulheres grávidas uma feminilidade tão grande e uma beleza infinita? Era a vida a vir… não … coisas de deusas…

- Aí está o café curto e quente - disse-lhe o dono do café. - Parece estar muito bem disposto hoje e não ter frio.

Mas tinha. O frio vai passando… e a disposição é da crise…

Sem querer, olhando através da vidraça, regrediu cerca de quarenta anos. A memória… a memória… tem razão o Professor, tem razão quando, logo no início O eco silencioso” diz:
- De todas as funções cognitivas, de todas as armas do intelecto, aquela cuja perda mais assusta a vítima... é sem dúvida a memória…
- Bolas, de facto a memória.

Quase instantaneamente regredia quarenta anos e lá voltava. Quase se sentia lá. O mesmo ambiente a envolvê-lo. Quase... e tão longe no tempo e no espaço. Recordava-se bem de tudo. Diacho, diacho, porque correlacionava certos acontecimentos do seu quotidiano com esse longínquo passado? Com vivências tão díspares? A case study ou uma parte dele teria lá ficado...louco.

Partilho, então, esta recordação. Se quiserem ouçam:

Estavam naquela tabanca enorme, talvez a servir de tampão ao avanço da guerrilha, aí pelo décimo sexto mês da comissão. Foram reabastecidos nesse dia logo a seguir ao almoço e, finalmente, veio correio. Veio também um envelope “oficial”.

Deu uma vista de olhos pelo correio pessoal e abriu a sua escrivaninha pessoal – uma velha caixa de granadas 60 – leu então o correio oficial, tirou uma velha carta e esticou-a no chão. Olhou-a demoradamente, escreveu meia dúzia de linhas no bloco e berrou cá para fora:
- Chamem os nossos furriéis…

Pouco depois aí estavam eles, um ainda a esfregar os olhos e olhavam-no com cara de caso. Devia vir aí borrasca.
- Vamos sair daqui amanhã. Mandaram-me apresentar no Batalhão. Os sacanas atacaram Candamã, Afiá e querem saber qualquer coisa… ou onde eles estão… Merda para isto. Leiam a mensagem e.. - não continuou.

Espavorido, olhar meio tresloucado, entrou um soldado e, de pronto, berrou apontando para um aerograma:
- Meu alferes, recebi carta da sujeita com quem vivia. Diz que está prenha…
- Pára com essa merda. Entras aqui, não pedes licença, berras e falas do quê?

O soldado começou a falar e ele, virando-se para um furriel fez-lhe um sinal. Este saiu e voltou logo.
- Não há ninguém.
- Conta lá então.
- Recebi o correio e agora, ao fim deste tempo todo, diz-me estar grávida? Desde que viemos que não a vejo. Quanto tempo está uma mulher grávida? O meu alferes sabe ou não? E os nossos furriéis?
- Sou solteiro. Somos solteiros. Mas é capaz de ser tempo demais. Não falas disto a ninguém. Como amanhã vamos embora, falo com o médico.
- Porra meu alferes, sou cabrão, eu mato-a…eu…
- Não és casado e pode ter havido qualquer problema. Não matas nada. Vamos tentar resolver o assunto. Não dizes a ninguém. A ninguém. Logo falamos depois os dois ou com os nossos furriéis.

Depois do soldado sair, acendeu um cigarro e esperou alguma palavra dos furriéis. Nada.
- Temos um problema. Além da saída de amanhã e o raio que parta. Qual a vossa opinião? - disse, cortando o silêncio.
- Ele mata-a… mas deixe-me ir falar com ele antes do jantar.
- Tirem informações e falamos depois. Aqui está longe mas olho nele. E agora? Esta agora…que chatice. Há cada uma…

Ia sabendo o que se passava pelo furriel e mais tarde por um soldado. Tratou-o sempre normalmente. Um dia, talvez quase um mês depois, falaram, sentados noutra tabanca com duas cervejas a balizarem terrenos.
- Então? Mais calmo, tudo está mais esclarecido e a vida …continua…

Nem o deixou acabar. Numa voz calma e grossa disse:
- Meu alferes, já a deixei. Mas mato-a. Isto não parece conversa do meu alferes. Esta conversa não é de si.

Calaram-se e foram bebendo em silêncio. Acendeu um cigarro, estendeu-lhe o maço e só depois falou.
- Não quero falar mais disto. Aqui há dois homens. Eu não quero que estragues a tua vida. Cada um é como cada qual e a vida por vezes é uma merda.

Calou-se. Que mais havia a dizer?

O outro abanou a cabeça, cuspiu para o chão, agarrou a garrafa. Num gesto fez o alferes agarrar na garrafa e, batendo uma na outra, beberam longos tragos. Esboçaram sorrisos. Por algum tempo foram bebendo e fumando em silêncio.

Passados meses, muitos meses, numa noite fria apertaram as mãos e com os olhos disseram tudo.

Palavras para quê... uma despedida.

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste desta série de 28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo... instrução, viagem... Adeus ao meu País

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