Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Guiné 63/74 - P5747: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (2): Da Guerra do Turu-Ban ao Tubabo Tiló, passando pelo deslumbrante Corubal
"Era conhecida a separação entre fulas e mandingas. Estes pouco simpatizavam com as nossas tropas, eu tive essa ideia, os fulas, na generalidade, estavam do nosso lado. Esta rivalidade, e o não querer estar com os fulas, têm razões históricas: os mandingas tiveram um grande império no sudeste africano e foram senhores do reino do Gabú. Mas dum e doutro foram usupados pelos fulas...
"Nesta brochura, editada pela Editorial Cosmos (sem data) na sua colecção "Cadernos Coloniais" (é o N.º 13), António Carreira faz uma resenha histórica da islamização daquela zona de África e da lutas entre fulas e mandingas pelo seu domínio. São dados importantes para a história dos povos da Guiné e para a nossa commpreensão deles". [António Barbosa Carreira nasceu em 1904, em São Filipe, Ilha do Figo, Cabo Verde. Morreu em 1988, em Lisboa].
Imagem e legenda: © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados
1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da segunda parte do Capº III (*):
Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos
[III.2] Décimo primeiro solilóquio
Durante o almoço falámos largamente sobre “O Rosário”, o romance de Florence Barclay que tanto impressionara a Benedita quando o pai estava a cegar de 1940 para 1941. Fiz uma consulta ao Google, vejo que o livro foi o mais vendido nos Estados Unidos em 1910. Não é difícil perceber porquê, trata-se de um melodrama bastante convincente, para os cânones da época. Jane Champion, a sobrinha da Duquesa de Meldrum, é uma trintona pouco bonita, muito sociável e com alma sensível. Tem pouco amigos seguros, um deles é Derick Brand, um médico filho do reitor da paróquia onde ela cresceu. Jane vai visitar a tia, aí conhece Garth Dalmain, um artista mais novo do que ela, brincalhão, cosmopolita, superficial. Encontram-se numa tertúlia cultural, onde Garth, ao piano, acompanha Jane que canta O Rosário. Inicia-se um idílio que culmina com a recusa de Jane em aprofundar a relação afectiva, lembrando a Garth a diferença de idades. Jane parte para o Egipto onde virá a saber que Garth perdeu a vista num acidente de caça. Graças a Derick Brand, disfarça-se de enfermeira e começa uma relação sublime em que Garth, após o sofrimento pela perda da visão retoma o gosto pela vida, aprendendo estratégias de autonomia, até se chegar à revelação da paixão mútua.
Vou explicando à Benedita (**) como tudo se tornou simples na compreensão desta narrativa que tanto a ajudou a apoiar o Estevinha, diminuído pela cegueira e pelo tumor no cérebro.
Conversámos igualmente sobre dois grandes ausentes nos nossos encontros: a Estrelinha e o Toninho. A Benedita confessou ser pouco expansiva: não era dada à escrita, telefone era impensável, as férias eram de 3 ou de 4 em 4 anos, havia que juntar dinheiro, era o preço de ser a mulher de um administrador sério, que não entrava em negociatas com ninguém, nada de expedientes ou subornos. Limitava-se a acumular saudades, mas estava bem informada do que se passava.
A Estrelinha continuava na Avenida da República, repartia a casa com o Toninho e com a Maria Inocência. Percebendo a minha surpresa, a Benedita esclareceu que o Toninho, já com duas especialidades, mas continuando a preferir a ortopedia, casara com a Maria Inocência, professora de Românicas, tinham já dois filhos, um rapaz e uma rapariga, conhecera a nova família nestas férias.
Voltei a insistir quanto à curiosidade pelas culturas guineenses. Continuava a não partilhar o gosto do Albano pelas culturas dos Felupes e Banhuns, mas a passagem pelo Gabu despertara-lhe o interesse pelos Fulas e Mandingas, as duas principais etnias da região. Perguntou-me se eu conhecia as castas entre os Mandingas, aproveitei a deixa para falarmos da nobreza Mandinga, os ferreiros e os sapateiros, os Sani e os Mané, os mais nobres (os Nhantchó), os ferreiros, onde se incluíam os Soncó, os Cassamá e os Biai, e os sapateiros com as famílias Fati, os Turé, os Dahaba, os Danfá.
E, de repente, falámos em Tubabo Tiló, uma expressão paradoxal, pois refere simultaneamente a nostalgia pela partida do branco mas também o desejo de o ver partir, para ser livre do tutor. Expliquei à Benedita que só depois da independência da Guiné é que a expressão me despertou curiosidade, vi muita gente saudosa, mas vi também muita gente a viver miseravelmente dizendo-me que tinha sido bom ver os brancos partir e tomar o destino com as suas próprias mãos. É admirável como aquela guerra não produziu qualquer hostilidade entre o guineense e o português.
Não escondo à Benedita que estou ansioso por ouvir as suas histórias de Bambadinca. Ela dá uma gargalhada: “Eu também estava à espera deste momento. Andámos desencontrados, mas passámos os dois por ali! Francamente, quando comecei a ler o seu livro e descobri que você se enamorara por Bambadinca, achei que estava a delirar”.
[III. 3] Mais recordações da Benedita (décimo primeiro trabalho de casa)
O que eu disse sobre o Gabu é completa verdade, nunca me afeiçoei ao lugar. Gostei de algumas experiências, é certo, pela primeira vez convivia com muçulmanos naquele território inóspito.
Quando, mais tarde, estávamos nós já a viver no Porto, soubemos que a luta armada pendia para o PAIGC naquela região, não me surpreendi. Tudo aquilo era pobre e mal povoado. A presença do branco praticamente inexistente. Já no meu tempo a fronteira com a Guiné pouco representava, não estava praticamente definida qualquer autoridade do lado português. Quando fui com o Albano assistir ao referendo na Guiné-Conacri apercebi-me que os portugueses não eram apreciados e que aquela independência iria ter consequências, como teve, foi nesta Guiné que o Amílcar Cabral encontrou mais apoios, toda a vegetação, sobretudo no Sul, favorecia a guerrilha.
Pela primeira vez, comecei a ler obras sobre os povos com quem convivia. O António Carreira ofereceu-me uns livrinhos sobre costumes, vida e religião dos Mandingas, que muito apreciei. Os Mandingas praticamente não fazem mutilações, em épocas recuadas faziam cortes nas extremidades dos incisivos superiores, era um sinal de luxo. Não percebo a importância que o Mário atribui à expressão Tubabo Tiló, a expressão é bonita, mas o significado até pode ser triste.
Ao almoço falámos nos cemitérios Mandingas, lembro-me agora que me surpreendeu a primeira vez que os visitei, tal a sua simplicidade e que me tocou muito. Enquanto eu lia estas obras, o Albano chamou-me a atenção para o momento, em que no século XIX, os Fulas esmagaram os Mandingas. O António Carreira descreve muito bem esse episódio.
Tudo se passou a 19 de Maio de 1864, os Fulas do Futa, ao som de um grande tambor de guerra, avançaram para Cam-Salá, a infantaria acometeu a paliçada da povoação dos Mandingas Soninqués, com tiros de espingarda e azagaias, os Mandingas resistiram com bravura. Quando se viram perdidos, decidiram-se pelo suicídio em massa.
A batalha ficou conhecida por Guerra do Turu-Ban, expressão que significa “a sementeira acabou”. Foram exterminados muitos Mandingas. Iniciou-se nesse dia a dominação dos Mandingas pelos Fulas. Foi nessa altura que percebi o significado da presença de Mandingas na região de Farim, foi gente que nessa altura fugiu, não aceitou ficar no jugo dos Fulas.
Dou comigo a pensar se o Albano não estava a ser menosprezado por Bissau, por terem havido todos aqueles ataques do aldrabão que ele susteve e denunciou em Teixeira Pinto. Interrogo-me porque é que nos lançaram no Leste, ainda passámos por Bambadinca e Pirada e depois é que fomos para S. Domingos.
A experiência em Bambadinca não foi desagradável. Percorri com Albano a região, cheguei ao Xitole, via pela primeira e última vez os rápidos de Cusselinta, que grande beleza!
O que mais me impressionou foi de a partir do Xime ter subido o Corubal, que tem uma vegetação diferente do Mansoa e do Cacheu. Visitámos várias pontas. Lembro-me de um dia, já perto dos anos 70, o Albano me ter dito no Porto: “Não pode imaginar, Benedita, que os sítios por onde andou no Corubal estão agora todos em guerra. Num comunicado que vem neste jornal fala em Ponta do Inglês, Ponta Luís Dias, Mina e Galo Corubal, fomos lá várias vezes, hoje estão a ferro e fogo”.
Vou pedir ao Mário para acabarmos este purgatório das localidades que mal recordo. Se alguma vez vivi a história em directo, uma história que estranhamente não vejo referida em nenhum livro, foi em S. Domingos.
(Continua)
[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
____________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações
(**) Excertos do Cap I: (...) Vim ao mundo ao nascer do dia 24 de Novembro de 1920, em Lisboa. Nasci na Avenida da República, 70, no rés-do-chão de uma moradia que também tinha 1º andar e mansarda. (...)
(...) A casa fora alugada pela minha avó brasileira, a vovó Januária ou vovó Xanoca. No dia em que vim ao mundo, bateu à porta da nossa casa o capitão Edmundo Barreto, um dos fiéis de Sidónio Pais, e que era muito amigo do meu pai, vinha almoçar, isto era muito comum assim, recebíamos informalmente todos os amigos, eram poucos os que se anunciavam. Sabiam que o meu pai acabava as consultas no Curry Cabral pelas 13 horas, e que vinha imediatamente para casa, quem batia à porta almoçava. O meu pai contou-me que o foi receber à entrada, eufórico, estava todo desalinhado, sem plastrão, e lhe dissera: “Olha, desculpa, hoje não pode ser, nasceu-me uma filha, sou pai pela primeira vez, estou radiante, isto está tudo uma desordem mas estamos felizes. A Estrelinha está de boa saúde!”. A Estrelinha era a minha mãe. (...)
(...) Nasci num meio burguês, filha de um clínico geral que trabalhava no Curry Cabral e no banco de S. José e tinha consultório na Praça José Fontana, e de uma brasileira de Santos, menina prendada. Era um casal que se amava muito. À distância destes anos todos, reconheço que tive o privilégio de nascer num meio excepcional, rodeada de pessoas excepcionais. O pai, a quem meio mundo chamava o Catarinho (Catarino Palma d’Abreu Dantas) viera estropiado da Flandres, era um homem de uma curiosidade insaciável, uma grande alma, um grande carácter. (...)
(...) O Catarinho era monárquico por tradição e convicção, mas era um homem verdadeiramente popular, não aceitava injustiças, falava com toda a gente com a mesma elegância de modos. Uma vez, era eu pequena, ele foi abordado nos Restauradores por alguém, eu, a minha mãe e o meu irmão, não percebíamos o entusiasmo daquela conversa. Despediu-se do senhor e depois disse-nos: ”Era um dos meus doentes lá da Penitenciária, creio que era um grande criminoso que se regenerou. Ainda bem que o voltei a ver”. (...)
(...) O meu pai vivia politicamente na oposição à balbúrdia republicana, veio a aderir à Liga 28 de Maio, admirava profundamente Salazar e a sua obra. Fez sempre campanha a seu favor, tudo à sua custa, nunca quis cargos, o que ele queria era ser médico, viver com a família, estudar genealogia, história de arte, até mineralogia, tudo lhe interessava. Não passava uma semana que não fosse investigar na Torre do Tombo. A minha mãe era adorável, acabou por ser a minha filha. Isto é difícil de compreender até se conhecer a relação que estabelecemos, sobretudo nos últimos anos da sua vida, morreu já nos anos 80. Sempre que falo da minha mãe emprego o termo que usei sempre: a Estrelinha (Maria Augusta dos Santos Pimenta), ela era de facto uma estrela reluzente ao pé de nós, delicada no trato e sempre delicada na sua saúde. (...)
(...) A abundância em que nasci começou a desaparecer quando eu tinha 10 anos. Com a crise de 29, o meu pai perdeu as economias amealhadas que pusera no Banco do Minho e a Estrelinha perdeu muito do que tinha nos negócios de Santos, tudo herança do avô Valentim, que não conheci, ele morreu quando a avó Januária veio com duas filhas até à Europa. É verdade que ele era um nome na medicina mas não era suficiente, houve que cortar nas despesas, desapareceu o chofer e desapareceram criadas. E desapareceram muitas das visitas lá em casa. (...)
(...) Com o desaparecimento do meu pai, tudo mudou, eu ia fazer 21 anos. (...)
(...) Em 1950, soube que havia uma vaga na Embaixada dos Estados Unidos da América, na Duque de Loulé, fiz provas, no Verão, fui aceite. O meu emprego não era propriamente na Embaixada mas sim junto do serviço do adido militar, eu depois explico o que fazia. Por essa altura, o Raimundo pediu à minha tia para ir ter com ele ao Norte. A Ada pediu-me para a acompanhar. E foi assim que fomos para a Póvoa, de 15 a 30 de Agosto. Na primeira noite, fiquei em casa da Luísa Palma. Fui com ela ao Casino (...).
(...) Nisto chegou o meu primo Manuel Dantas Amorim que vinha a falar com um outro senhor e apresentou-me o Albano da Graça Toscano. Pouco depois, fui dançar com este senhor que era funcionário colonial, tinha ido quase adolescente para a Guiné, vivia lá há muitos anos, mais de 16, estava agora de férias. Ia começar o meu romance. No Casino da Póvoa, mal sabia eu, tinha o meu destino traçado para ir para a Guiné, onde vivi momentos tão belos mas também tão dramáticos. Ao longo destes anos, digo-lhe agora sem ironia, eu achava que era exótico falar da Guiné, quando eu falava os outros ouviam com atenção, ninguém sabia onde é que era a Guiné e como é que lá se vivia. Dou comigo agora a pensar que ir contar tudo quanto eu vivi tem aspectos melindrosos, ainda há algumas pessoas vivas, nem sei se vou contar tudo.
(...) E foi assim que ficámos noivos. Mas o Albano tinha que partir em Setembro, tinham acabado as férias, só poderia voltar dentro de 4 anos, encarou-se logo a hipótese de casarmos por procuração. É bom não esquecer que eu ia trabalhar para a Embaixada, em Outubro assinei contrato como operadora telefonista. Eu vivia uma situação de grande dilema, nem ele nem eu tínhamos idade para perdermos mais tempo, naquela época só havia cartas uma vez por semana, não me estava a ver num namoro como se fosse uma adolescente.
Era um dilema: pela primeira vez na vida eu estava a ter um emprego que me interessava, que me entusiasmava verdadeiramente, mas também a Guiné estava no horizonte, eu queria casar com o Albano. (...)
Casei na Igreja do Campo Grande, fui de braço dado com o maninho, fizemos a festa em nossa casa. E naquele mês de Setembro, com a Estrelinha e a Ada a chorar, emocionadas, parti da Portela, de madrugada. Eu saía pela primeira vez de Portugal. (...).
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Há uma "Belle Époque" do Colonialismo ? Será esta mulher uma personagem dessa "Belle Époque" que trazia já consigo as sementes da decadência, da violência e da guerra ?
Já deu para perceber que estamos perante uma poderosa narrativa que nada tem a ver a romântica "Out of Africa" (que todos viram e reviram no cinema, o "África Minha"...).
Já li, por dever de ofício, o Cap I e agora salto para o III, que vou lendo aos "bocadinhos", em função das necessidades de edição... Não tenho o II, nem o restante manuscrito...
Mas o que já li, deixa-me entusiasmado com mais este projecto literário do nosso Mário que afogou, neste livro, a grande mágoa da perda da sua querida Locas!
Oh!! posso ler o resto? Onde?....Sinto que esta senhora vai fakar da "minha Guiné" da que eu conheci e de quem tenho tantas saudades ......
Enviar um comentário