terça-feira, 27 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6260: A Guiné aos olhos das actuais gerações (3): Estou feliz e estou grata por esta oportunidade (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

1. Mensagem de Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 29 de Março de 2010:

Caros amigos Editor e Co-Editores
Em anexo envio o terceiro documento da série que me propus colocar com a experiência da Marta Ceitil em terras guineenses.

Depois de Bissau, agora foram duas semanas de formação em Mansoa.

Acho interessante o relato com os locais e a 'população-alvo' das acções de formação.
É igualmente comovente a forma como conseguiram criar-lhe um ambiente envolvente para o seu primeiro aniversário passado afastado da família.

É curiosa a forma como a aprendizagem e o progressivo (re)conhecimento da Guiné e dos guineenses vai moldando o sentir desta jovem.

Calculo que muitos dos nossos camaradas 'atabancados' tenham igualmente passado por um processo semelhante, em termos de aproximação à terra e às suas gentes, e se revejam agora nestes relatos, com 'histórias em tempos de paz' (relativa, é certo!).

Um abraço
Hélder Sousa


A GUINÉ AOS OLHOS DAS ACTUAIS GERAÇÕES (III)

Estou feliz e estou grata por esta oportunidade


Hélder Sousa / Marta Ceitil

No seu anterior mail, datado de 9 de Agosto, a Marta já tinha tido oportunidade de revelar os avanços da sua aprendizagem, de como eles funcionaram em género de ‘terapia de choque’ e como isso a estava a ajudar a crescer.

Agora vamos tomar conhecimento como correu a acção seguinte, em Mansoa. Chamo a atenção para o tipo de acções de formação, para os temas e para o ineditismo de envolver militares, com sessões no quartel-general e na discoteca. Imaginem isso cá!

Acresce ainda o facto do aniversário da nossa narradora ter ocorrido durante esse período, o que também a marcou de forma indelével, como poderemos constactar.

Esse mail, datado de 25 de Agosto, foi o que se segue:

Subject: Já lá vai quase 1 mês: saudades!!!

Date: Tue, 25 Aug 2009 19:49:07 +0000

Olá :)

Kuma ki bo mansi?? Esta é a minha preferida, significa: como é que amanheceste?

Chegámos hoje a Bissau, estivemos estas duas semanas em Mansoa, que fica no interior a 1 hora de caminho. Mansoa é conhecida também pelo seu quartel militar que é o segundo maior do País. Sempre que acontece alguma coisa na Guiné foi arquitectado em Mansoa.

Políticas e guerras à parte, amei Mansoa. Foi quase uma colónia de férias "à lá Guiné". Estivemos na Escola Nacional de Voluntariado, com 250 jovens de todo o país. Ficámos a dormir com eles em camaratas.

A adaptação aqui custou um bocadinho mais, andávamos a queixar da nossa residencial em Bissau, aqui... bem passámos de um Hotel de 5 estrelas para a tabanka. Não há casas de banho com sanita, é um buraco. Para tomarmos banho, tínhamos de ir buscar água ao poço todos os dias e tomar banho à caneca. A minha adaptação demorou um dia, assim que entrei no ritmo adorei. Gostava do ritual de ir buscar a água com as mulheres e colocar o balde na cabeça (esta parte não me correu bem, não me consigo equilibrar com aquilo), tomar banho ao ar livre é brutal, principalmente à noite sem electricidade. Lavamos a nossa roupa com a água do poço, no primeiro dia em decidimos lavar, foi um acontecimento social: 4 brancas a lavarem a sua roupa, até tiraram-nos fotos e tudo!

Outra parte interessante, é ver a minha evolução em relação aos bichos: todas as noites era eu que inspeccionava o nosso colchão, e rede mosquiteira. Qual baratas voadoras, sapos, ratos, minhocas, qual quê, nada disto me faz impressão. Também ainda não tive nenhum encontro com uma iguana, a ver vamos se mantenho a mesma postura.

Entretanto apanhei outro ‘estaladão’ invisível. Eu tinha um preconceito enorme em relação aos militares, andava na rua e cada vez que via um mudava para o outro lado da estrada e nem sequer olhava ou cumprimentava (na Guiné toda a gente se fala, diz bom dia e kuma?). Pois bem, uma das áreas de actuação da RENAJ (a entidade parceira com a qual o ISU trabalha), é precisamente ‘desconstruir’ esta ideia à volta dos jovens militares e aproximá-los da juventude civil. Neste campo de férias, estiveram presentes 5 mulheres e 10 homens militares. 5 deles foram meus formandos (3 mulheres e 2 homens) e foi brutal ver a minha reacção inicial, desconfiada de tudo, e depois ver como me deixei ir. São pessoas como eu, e como qualquer outro Guineense, pelo menos ali naquele contexto. São mais inteligentes do que alguma vez eu pensei que fossem, e esta nova geração está mesmo empenhada nesta aproximação entre militares e civis, o que para mim faz todo o sentido, e querem ter uma participação activa na sociedade através do movimento associativo.

Em relação à formação, correu bem. Foi dada pelo Evaldo que é um animador em Saúde Sexual Reprodutiva dos Médicos do Mundo. O meu papel aqui foi orientá-lo ao nível pedagógico, trabalhar e preparar as sessões com ele, pensar nos métodos que ele iria utilizar para que os formandos assimilassem bem os conteúdos da formação. No entanto, dado o tema da formação e visto eu ser mulher, acabei por intervir mais do que ao que devia na formação, pois todos queriam que eu falasse da minha experiencia e trouxesse exemplos e comparasse a realidade da Guiné com a de Portugal. Adorei falar sobre este tema, não me senti nada incomodada, no fim de cada sessão ficavam todos à conversa comigo para tirar dúvidas ou simplesmente falar sem tabus. Tivemos uma componente prática: os formandos tiveram de fazer uma campanha de sensibilização para as doenças sexualmente transmissíveis, com especial enfoque no HIV/SIDA, na discoteca de Mansoa junto dos jovens e no Quartel-General junto dos militares. Ambas correram muito bem e mais uma vez ficou o sentimento de: "Missão Cumprida"

Quanto ao meu dia de anos, não quero ferir susceptibilidades, mas este foi sem sombra de dúvida o melhor aniversário de sempre. Os meus formandos e não só, os restantes jovens das outras turmas passaram o dia inteiro a preparar-me uma festa, pois queriam que eu me sentisse em casa, e não ficasse triste por não ter a minha família e amigos ali. Só para contextualizar, nós estávamos numa escola, não há cozinha, a comida era-nos chegada pela Missão católica, pelo que preparar o que quer que seja envolve ir à tabanka e arranjar lá tudo o que for necessário. A minha formanda Emília, passou a tarde toda a fazer bolos para os 250 jovens. À noite preparam-me uma festa que tinha um apresentador, e eu era a convidada de honra. Fizeram-me uma peça de teatro que representa o meu percurso de vida até chegar ali, escreveram-me cartas, dançaram para mim, fizeram um discurso brutal... Claro está que não consegui reter as lágrimas chorei baba e ranho.

Em anexo seguem algumas fotos, estou quase uma preta da Guiné;)

Hoje foi o último dia e foi uma choradeira pegada. Nem quero imaginar como vai ser o dia em que me for embora para Portugal. Mas... uma coisa de cada vez, agora estou aqui.

Bem por agora, é tudo. Até sexta-feira vou estar em Bissau, depois vou para Bubaque, e segunda Catió. Estou sem telemóvel agora, não conseguimos carregá-lo, mas como dizem os guineenses: "Parece que vamos conseguir arranjar uma solução"

Beijinhos grandes com muitas saudades.

P.S - Caso o meu mail não tenho sido claro nesse sentido, deixo aqui o meu testemunho: Estou feliz, nunca, mas nunca tinha experimentado este tipo de realização e estou grata por ter esta oportunidade.

Marta Ceitil



2. Volto a perguntar, o que se pode dizer quanto a isto?

Acompanhando estes relatos podemos lembrar as nossas próprias experiências: o contacto com a fauna (mosquitos, baratas voadoras, sapos, ratos, minhocas, etc.), a aprendizagem do ‘banho à fula’, os sanitários ‘arejados’, enfim, ainda se lembram?

Depois não tenho palavras pare exprimir o que penso que ela deve ter sentido com a situação de passar o seu aniversário longe da família, pela primeira vez, e do que as colegas e alunos fizeram para suprir essa falta, contribuindo com o carinho e o envolvimento de todo o grupo de tal modo que afinal esse aniversário foi tornado inesquecível.

No texto a Marta faz referência ao ISU, entidade de que darei mais indicações proximamente.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF

Mansoa > Escola Nacional de Voluntariado

Mansoa

Mansoa > Aniversário

Mansoa > Aniversário

Mansoa > Aniversário

Mansoa > ENV > Cantando o hino da Guiné

Mansoa > ENV > Turma de saúde sexual reprodutiva

Mansoa > Escola Nacional de Voluntariado

Mansoa > lavando a roupa

Mansoa > Escola Nacional Voluntariado
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6219: O 6º aniversário do nosso blogue (15): Seis anos de vida! É Obra! Vamos reflectir (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 3 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6099: A Guiné aos olhos das actuais gerações (2): Sinto que estou a aprender e a crescer na Guiné-Bissau (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

5 comentários:

Anónimo disse...

Camarigo Hélder

Obrigado por nos dares conhecimento do que se vai passando na Guiné, nem que seja apenas e só uma visão sectorial, mas que ajuda sempre quem quer aprender alguma coisa.
Estranhei, vá-se lá saber porquê, que várias dezenas de camaradas nossos se tenham deslocado á nossa Guiné e que nem um pequeno apontamento de viagem, de evolução,de retrocesso...sobre aquela gente nos tenha sido transmitido no nosso Blogue.
Sempre a condiderar-te,

Vasco A.R. da Gama

Juvenal Amado disse...

Caro Hélder

A Marta é especial.
Tendo em conta o que fui lendo sobre o trabalho dela, resta-me acrescentar que a Marta é bonita por fora e de certo linda por dentro, tal é a luz que dela irradia.

Um abraço para ti, que nos trazes a Marta e muitas felicidades para ela.

Juvenal Amado

Abranco disse...

Extraordinário testemunho da experiência vivida pela Marta.
Estive nessa bela terra entre 1972 e 1974 e partilho complectamente a forma como descreve esse magnífico povo.
Tenho a certeza que esta sua experiência a marcará de forma muito positiva para o resto da vida e pena é que não sejam divulgadas mais acções do género de forma a que a nossa juventude pudesse participar activamente em acções que não só engrandece quem toma parte nelas como é o minimo que podemos fazer por esse povo que continua a ter os portugueses no coração
Bem Haja
António Branco

Marta Ceitil disse...

Não sei bem o que dizer, apenas posso agradecer estas mensagens.

Este projecto em que estive no verão passado foi mesmo uma experiência incrível. Sem sombra de dúvida recebi mais do que dei. Foi um grande presente…uma aprendizagem constante que me permitiu reflectir um pouco sobre a minha vida.

Actualmente estou a viver em Bissau e a trabalhar nos Médicos del Mundo. Adoro o que faço e nunca foi tão feliz, nem a minha vida nunca me fez tanto sentido como aqui.

A Guiné é especial.

Mais uma vez obrigada.

Anónimo disse...

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