sexta-feira, 30 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6285: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (27): Diário da ida à Guiné - 07/03/2010 - Dia quatro

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2010:

Caro Carlos:
Envio o relato do Quarto Dia, da minha viagem à Guiné. Quanto à estória NA KONTRA KA KONTRA surgiu-me um problema deontológico, que espero vir a discutir com o Luís Graça e se se resolver, de imediato mando o 1.º capítulo.

Um abraço.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ - 27

Diário da ida à Guiné – Dia quatro (07-03-2010):


Bafatá estava a ficar cada vez “mais distante”. Estava a ficar preocupado, embora o Chico me fosse sempre dizendo que ir a Bafatá era uma certeza. Tudo porque neste dia o grupo resolveu que se ia a Varela. Comecei a olhar mais para os toca-toca.

Um toca-toca (em andamento) que como todos tem um nome, neste caso “Enterramento” (foto de autor desconhecido).

Outro toca-toca nas mesmas condições.

Foram-me dizendo que os havia que paravam em todas as tabancas mas que outros iam directos de Bula a Bafatá. Ia reparando que o cobrador ia invariavelmente pendurado na traseira da carrinha com a porta aberta, penso que será para ventilar melhor o interior e também para caber “mais um”. Sim porque nas carrinhas de nove lugares, substituem os bancos normais por dois corridos laterais e a lotação passa a ser o dobro. Portanto lá dentro devia ser um calor insuportável.

O meu pensamento não deixava Bafatá.

Varela era também um dos meus objectivos embora me preocupasse a tensão latente entre o Casamansa e a Guiné-Bissau. De facto, na viagem, quando no Ingoré inflectimos para Poente ao longo da fronteira com o Senegal, íamos vendo sucessivos grupos de militares armados. Até ouvi dizer que os tipos do Casamansa tinham mudado alguns marcos fronteiriços (dos que Portugal tinha posto) para, no caso de vir a aparecer petróleo na zona, lhes caber mais uma longa fatia, principalmente de zona marítima.

Mas com aquele clima, que realmente apanha uma pessoa, esqueci tudo isso. Em Ingoré parámos e no mercado de rua comprei uns saquinhos de caju torrado para trazer para Portugal. Também estive a ver fazer uns esquisitos bolinhos muito brancos de sêmola de arroz, “cuscus de arroz” enformados, que uma mulher ia fazendo, cozendo-os num também esquisito apetrecho em cima de um fogareiro, julgo que a vapor (em relato futuro falarei de uns outros fogareiros, verdadeiras obras de arte artesanal, disseminados por toda a Guiné). Comprei um saquinho (agora quase todas as coisas deste género são vendidas em saquinhos plásticos). Embora a senhora me dissesse que tinham açúcar, achei-os desenxabidos. Só sabiam a arroz seco.

O fogareiro, o desenformar dos bolinhos e os saquinhos com três bolos cada.

Passámos por Sedengal, S. Domingos, Susana, sempre com manga de tropa omnipresente. Chegados a Varela, uma povoação (não propriamente uma tabanca) de tal forma com pouca gente, que a contra gosto tivemos que perguntar a um militar onde se podia comer, pois não se via nada com aspecto de restaurante. A “tabanca” era muito dispersa e o principal restaurante era logo à entrada.

Queríamos, como é natural, ir à praia, até porque julgo ser a única praia na parte continental da Guiné. Antes porém tínhamos que tratar de encomendar o almoço. O restaurante era da D. Fátima, ou apenas Fá, ou ainda, como se auto denominava, Mãe de Varela. Senhora cabo-verdiana, de sessenta e tantos parecia ser não a mãe de Varela mas a própria dona. Pessoa de trato algo difícil. O Chico Allen ao encomendar a refeição mostrou algum desagrado por não se arranjar uma mesa só para o nosso grupo e a D. Fá começou a disparatar. Eu próprio passei a mão pelo pêlo à senhora, que acabava de conhecer, e disse-lhe que aceitávamos ficar numa mesa grande onde já estava um casal a “aperitivar”. Adiante se verá a sorte que tivemos em ficar nessa mesa.

A D. Fá deu-nos uma hora para irmos à praia, até a galinha à cafreal estar pronta. Seria uma praia normal só que parecia que estávamos na Índia. Passeavam-se por lá vacas que pareciam sagradas. Como já referi anteriormente a água não me pareceu salgada e comentando isso, os colegas de grupo é que me lembraram o meu anterior apetite pelo caju verde.

A praia de Varela

Fomos almoçar. O referido casal já estava à mesa a começar a almoçar, a senhora uma cabo-verdiana de uns cinquenta e tais e ele de setenta e muitos com ar nórdico. Estávamos em África, e com um misto de simpatia e de à vontade africana da senhora, rapidamente estávamos todos à conversa. Ela era a Guida (D. Margarida), ele era o Sr. John Blacken, norte americano, e nada mais nada menos que o Coordenador geral da HUMAID, organismo encarregado da desminagem da Guiné-Bissau. Primeiro em inglês, por alguma deferência, quiçá, subserviência portuguesa, mas depois em português pois Mr. John já estava há muito tempo na Guiné, entabulámos uma conversa, que se tivéssemos almoçado noutra mesa não tinha acontecido o que teria sido uma perda.

Ao fundo a D. Margarida e Mr. John Blacken. (foto não minha).

O Sr. Blacken, entre muitas outras coisas, disse-nos que só na zona leste do Ingoré foram levantados cerca de 26.000 engenhos explosivos e à volta do Saltinho cerca de 3.500. Que começaram os trabalhos de desminagem na zona de Bissau, depois na de Buruntuma, Ingoré e por aí fora.

Aproveitei para lhe perguntar se na zona de Galomaro e concretamente em Madina Xaquili (a minha “guerra”) ainda haveria minas, tendo-me respondido que sim. Foi no entanto adiantando que não tem havido desastres, que só de vez em quando uma vaca vai pelos ares…

O casal disse muita coisa digna de se tomar nota. (foto não minha).

Ainda apareceu a D. Fá a perguntar se estava tudo bem, como é costume. Despedimo-nos e comigo a conduzir, regressámos ao que também chamávamos acampamento.

Antes de anoitecer ainda fui, na companhia do Mesquita, ver se recolhia mais frutos da árvore de conta que o balanta José me tinha ensinado no dia anterior. No regresso, já noite, perdemo-nos duas vezes mas voltando atrás lá encarreirámos. Não estávamos muito preocupados pois tínhamos um telemóvel connosco (ah se no tempo da guerra houvesse telemóveis… desde que o IN os não tivesse, claro!!!).

Começou-se a pensar no que se poderia comer. Refira-se que não havia nada a não ser umas sobras de camarão tigre que não davam para todos. É então que “alguém” prepara a melhor “paella”, que todos nós, inclusive eu, alguma vez comemos (esperam-se comentários discordantes).

A preparar a “paella”. (foto não minha).

A degustação da dita (o Pimentel estava a tirar a foto).

Noticiário com as bacoradas do costume, conversa e cama.

Até amanhã camaradas.
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

Vd.último poste da série de 27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6262: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (26): Diário da ida à Guiné - 06/03/2010 - Dia três

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Fernando Gouveia

É com prazer imenso, que leio os teus relatos da ida à Guiné.

Aprecio o modo como "vês", aquela terra e aquelas "gentes".

Um abraço,

Jorge Rosales