segunda-feira, 3 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6308: Histórias do Eduardo Campos (12): CCAÇ 4540, 1972/74 - Sadjo Seidi – O homem do Jerrican

1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, enviou-nos a 1ª estória da sua ainda fresquiha viagem à Guiné:

CCAÇ 4540 – 72/74
"SOMOS UM CASO SÉRIO"

SADJO SEIDI – O HOMEM DO JERRICAN
TESTEMUNHO VIVO
Regressei recentemente da Guiné, onde, na companhia de alguns camaradas, andei a visitar os locais onde estivemos instalados durante a guerra.

Confesso que apesar de o meu diário estar recheado de histórias bonitas e outras nem por isso, decidi ainda não enviar nada para publicar no blogue, pelo menos por agora.

No entanto um acontecimento surgido em Buba, quer pela sua originalidade, quer pela minha vontade férrea em encontrar alguém conhecido e, porque não dizê-lo, pelas emoções que me causou (algumas lágrimas nos cantos dos olhos), não poderia continuar a ocultá-lo.

O motorista de uma das viaturas que nos acompanhou durante a nossa estadia, parou junto a uma esquadra da polícia em Buba, dizendo-nos que iria falar com o Comandante (seu chefe) já que o mesmo também era policia.

Nós aproveitado a referida paragem para sairmos da viatura.

Sentados num banco estavam três polícias, um dos quais me pareceu ter uma cara familiar e, sem hesitações, logo lhe perguntei: “Por onde andaste durante a guerra?”.
Ao que ele me respondeu: “Bigene!”.
“E Cadique?” – perguntei-lhe eu.
Ele disse: “Nhacra!”.
Foi o percurso que a minha Companhia, a C CAÇ 4540, fez durante a sua permanência na Guiné, pelo que fiquei quase que paralisado.

Afinal tinha motivos para que aquela cara me fosse familiar e de novo ele “ataca”: “E tu és o Campos das transmissões.”
“Mas que brincadeira é esta?” – pensei eu.
E logo o José Carvalho me tocou nas costas e apontou-me um jerrican que estava atrás de mim com a seguinte inscrição: CCAÇ 4540.
Foi o sinal que eu precisava para lhe dizer: “E tu, és o menino da Companhia.”

Estava na presença do SADJO SEIDI, o miúdo que nos acompanhou durante os dois anos de permanência da companhia na Guiné e deixamos em Nhacra, no final da comissão, com 15 anos de idade.

Fui agora encontrá-lo em Buba, 36 anos depois, como polícia e com 51 anos de idade.

Dizia ele entusiasmado: “Eu sabia que um dia havia de encontrar alguém da Companhia. Ando há muitos anos com o jerrican atrás de mim, sempre com a esperança que isto viesse a acontecer.”
E aconteceu.
Ele disse ao meu cunhado (José Carvalho), que, inteligentemente, antes de ter a ideia do jerrican com a inscrição da CCAÇ 4540, tinha um bidon de 200 litros, mas como era difícil mudá-lo de local, para poder ser mais facilmente visível, optou então pelo jerrican.

“Manga de esperto nos cabeça!” - digo eu, claro.

Comentando com os meus companheiros de “aventura”, com a tal lágrima no canto do olho, dizia eu repetidamente que já tinha ganho a viagem.

Eu, entretanto, continuei a ser surpreendido pela memória do Sadjo, perguntando-me por elementos da companhia e, mais me perguntava, se ainda sei como se chamava em termos de código Cufar e Cadique, ao que eu naturalmente respondi que não.

Para ele não foi qualquer problema: “Ébano e Cação.” – respondeu-me.

Como perguntou também pelo Vasco Ferreira, de imediato lhe liguei para Portugal passando-lhe o telefone, para que o Sadjo falasse com ele (mais uma lágrima).

Os deuses estiveram comigo nesse dia e não nos queríamos separar. Falamos, falamos… e não é que uma das viaturas que nos transportava avariou, permitindo-nos ficar mais umas horas na conversa.

O miúdo que ficou em Nhacra não teve vida fácil depois da NT entregarem as instalações ao PAIGC, esteve inclusivamente preso e só a idade dele e o bom senso do Comandante, o livraram de… aquilo que todos sabemos que aconteceu aos que “colaboraram” connosco.

Mas, finalmente, tivemos que nos separar, comum “até sempre”, que durou apenas uns dias porque o Sadjo me telefonou a perguntar se eu tinha chegado bem.

Acreditem, já sinto saudades do SADJO SEIDI.

Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCAÇ 4540

Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
___________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

26 de Fevereiro de 2010 >
Guiné 63/74 – P5886: Histórias do Eduardo Campos (11): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 11): Nhacra 6/Final

7 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Eduardo

Grandes emoções! Enchem o peito de um homem e são um conforto para a alma...
Na legenda da foto foi escrito "mística ou predestinação". Pois está visto que ambas funcionaram...
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Camarada. Sao reencontros como este,que,felizmente,nos fazem compreender que tanto sacrifício passado nao foi só inútil! Um abraco.

Unknown disse...

Quando nos contaste esta tua estória, vi ainda nos teus olhos o resto daquela lágrima ao canto do olho.
Lembro muito bem de um dito teu, já antigo. Que aqui se aplica.
Fizeram-me perder 3 anos de juventude. Mas fizeram-me ganhar muitos amigos.
Um abraço.

Luís Graça disse...

Eduardo:

É, no mínimo, uma história surpreendente!... Como esses "meninos" ficaram marcados pelo nosso convívio, pela nossa presença de menos de dois anos!... Como é que alguém pode estar à espera mais de metade de uma vida (37 anos na Guiné é mais ou menos a esperança média de vida de um homem ao nasccer!)... E andar com o jericã atrás, com a marca "CCAÇ 4540" na esperança(!) de vir a encontrar algum "tuga", um fantasma, do século passado, dessa companhia ?!...

Para muitos guineenses, que pouco têm a esperar do futuro, este tipo de (re)encontros deve ter um significado muito especial. Como teve para ti, Eduardo...

Parabéns, além de sortudo, és um homem de grande sensibilidade e talento para a escrito... Acho que todos os camaradas que estiveram na Guiné deveriam ter a oportunidade de lá voltar, como tu e o teu cunhado, J. Casimiro Carvalho...

Devíamos incentivar e acarinhar este tipo de "turismo de saudade"... Infelizmente, a Guiné-Bissau (mas também a TAP...) ainda está longe de poder oferecer as condições razoáveis para essa viagem que faz bem a alma de todos nós mas também à economia dos guineenses... Por é que a TAP não faz uma tarifa especial para ex-combatentes ?...

Eduardo, deixa no blogue, além das tuas histórias, algumas dicas para a malta que quer viajar até lá...

Manuel Reis disse...

Eduardo:

Interessante a tua história, onde revelas a forte e saudável relação que nos uniu àquela boa gente africana.
São estas demonstrações de amizade que nos amenizam a dor dos momentos maus que passámos e nos acicatam o desejo de lá regressar, como romagem de saudade, como diz o Luis, e como uma "mézinha" que nos permitisse libertar alguns fantasmas do passado.

Um abraço

Manuel Reis

Carlos Vinhal disse...

Gostava que alguém me dissesse se há caso semelhante ao nosso, de sermos recebidos numa antiga possessão, com quem andámos em guerra, tão bem como somos, pricipalmente na Guiné-Bissau. Parece que estão à espera da nossa visita.

Se a história do Eduardo fosse ficção de um qualquer autor, não podia ser mais extraordinária. Quase nem dá para acreditar que, volvidos tantos anos, miúdos e graúdos de então, ainda se lembrem dos nossos nomes e das nossas Unidades.

Mesmo da parte de antigos combatentes do PAIGC há uma admiração enorme pelos brancos contra quem lutaram demasiados anos.

Um abraço
Vinhal

Anónimo disse...

É lindo! E impressionante.
Como um objecto, destinado a ser um recipiente de água, foi guardado durante tanto tempo e conseguiu fazer a "ponte" entre dois homens, por cima do tempo e das vicssitudes da vida.

Também impressionante a recordação das palavras código das localidades! (Sinal que transpiraram para fora,afectando,assim, "segurança das Transmissões...").
Um abraço
Alberto Branquinho