1. Ainda a propósito do poste 6481*, recebemos do nosso camarada José Marcelino Martins** (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), esta mensagem datada de 28 de Maio de 2010:
Já vi que este assunto é, ou poderá ser no mínimo, fracturante!
Nós sabemos que muitos de nós, e com maior relevância no meio campestre, suporte ao magro orçamento familiar que, em muitos casos, vivia da agricultura quase de sobrevivência.
* Quantos operários fabris, que lutaram ao nosso lado, eram também agro-pecuários?
* Quantos deles, antes de entrarem na fábrica, às 8 horas, já tinham ordenhado as vacas, que o pai iria entregar na cooperativa?
* Quantos deles, na ida para a fábrica, não encaminhavam o rebanho para o cercado, a fim de pastarem e, no regresso, cansado, lá traziam o gado de volta ao estábulo?
* Quantos deles eram o único suporte da mãe viúva?
Não podemos esquecer que a revolta da Maria da Fonte teve, entre outras causas, a retirada dos enterros das Igrejas, acabando por os cemitérios ficarem na cerca da igreja ou num local muito próximo. É aqui que aparecem os jazigos de família para que, nem na morte, haver mistura de classes, e os mais abastados continuassem a ficar, não na igreja mas num local que bebeu o estilo das mesmas, senão até, mais elaborado.
Este fenómeno, muito português, é o culto dos mortos.
Nas guerras tudo mudou a partir das Invasões Francesas e Guerras Liberais.
Os militares que não fossem resgatados pelas famílias, entenda-se soldados, eram deixados ao abandono no campo de batalha, à pilhagem dos seus bens ou ao dispor das aves de rapina. Depois passaram a ter sepultura no local de combate e em vala comum, mas tinham enterro.
Na I Grande Guerra os mortos foram sendo enterrados no local em que caíam e, com o avanço e recuo das frentes, muitas vezes eram “exumados ” pelas explosões das granadas de artilharia ou morteiro. No final foram recolhidos e sepultados no Cemitério Militar Português de Richebourg.
No início da Guerra do Ultramar, a legislação que havia era do tempo da 1.ª Republica. Portugal preparou-se para uma guerra em África, que se avizinhava, mas pensava que esse guerra não teria mortos. Pensou, mas no meu entender, pensou mal!
Voltando aos caso que se comenta, o suporte e/ou ajuda económica ao orçamento das famílias, com a partida dos filhos para a tropa, era interrompido temporariamente. Com a morte eram definitivamente excluídos.
Quem entrega um filho à Pátria, e este entrega a própria vida à mesma, tem direito a uma compensação: é a PENSÃO DE SANGUE.
Mas, para haver Morte, é preciso um corpo. Para haver Pensão de Sangue é preciso uma morte.
Aqui reside, no meu entender, a "necessidade" de haver "corpo".
Será justo? Será cruel?
Creio que esta será a questão, cuja resposta, nunca ninguém dará a alguém.
Há "desaparecidos em combate/prisioneiros" que foram dados como mortos e mais tarde apareceram?
É claro que sim. As razões? Quem sabe se não se enquadram nas questões acima.
Duma coisa quero estar convencido: os nossos mortos sempre tiveram o tratamento de respeito que, cada um, teve em vida ou ainda mais, porque se tratava de alguém que se sublimou com a própria morte.
A acontecer o que a notícia nos transmite, não será um acto de catarse para os próprios camaradas, com a perda de um deles?
Os relatórios transmitiam a verdade dos acontecimentos que levaram esses camaradas a "partirem na flor da idade"?
Conviria ao Estado, no seu todo, transmitir os factos reais que só se comentavam em surdina, para a opinião publica não fosse alertada?
No caso presente, o de Peniche, a família "sabia" que o Tertuliano Rosário Henriques, soldado condutor do Pelotão de Canhões sem Recuo n.º 1197 / Regimento de Infantaria 2 de Abrantes, tinha sofrido um acidente/despiste de viação com um jipe no dia 28 de Junho de 1967, no Hospital Militar de Luanda. No caixão, segundo o Correio da Manhã, estava uma bota, uma meia e resto das calças.
Não terá sido uma mentira piedosa? Terá havido troca de urnas?
Perdoem-me os camaradas pelo extenso texto, em comentário, sobre este facto.
Não é agora que, passados 40 anos que eu próprio iniciei a minha retirada da guerra com a saída de Canjadude, a análise destes casos venha trazer algo de novo.
Interessa sim, que duma vez por todas os nossos mortos não sejam esquecidos, mas, de igual forma, é muito mais premente que os "sobreviventes" possam ainda ter um resto de vida calma e digna.
Faço aqui referência a uma frase do José Perestrelo, Furriel Amunuense que, ao comentar que há cerca de 10 anos que vou pesquisando a história da CCaç 5, me disse: "Vê se não levas outros 10 anos e revelá-la. Eu quero ler esse livro, mas já tenho 63 anos".
José Martins
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (60): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)
(**) Vd. poste de15 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6398: Convívios (154): 1º Encontro/Convívio das 3ª CCAÇ e CCAÇ 5 “Gatos Pretos” (José M. Martins)
Vd. último poste da série de 1 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6514: (Ex)citações (63): Como fui colocado no jornal Voz da Guiné (Benvindo Gonçalves, ex-Fur Mil Trms, CART 6250, Mampatá, 1974)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Amigo José Martins
Parabéns.
Lucidez e rigor.
Um abraço
José Corceiro
Meu caro José Martins
O Corceiro disse tudo o em três linhas sobre a qualidade do teu belo texto.
Estou plenamente de acordo com os considerados, bem como o historial de suporte.
Um abraço
Juvenal Amado
José Martins,
Muito bom, análise perfeita.
Somos assim! Que fazer?
Gostei imenso.
O velho abraço, já a caminho dos 68.
Mário Fitas
Caro Amigo Martins,
Texto claro, esclarecedor e compreensível, mas não justificativo.
Em 1974, no dia 25 de Abril, celebrou-se o início de um novo período na história de Portugal, será que já acabou também esse ciclo?
Um abraço,
BSardinha
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