Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Guiné 63/74 - P6994: Recortes de imprensa (28): A fraternidade na guerra, segundo Mário Fitas (Correio da Manhã, 6 de Junho de 2010)
Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Uma enfermeira pára-quedista no meio dos Lassas... Muito oportunamente o nosso camarada Jorge Félix, ex-Alf Mil Pil Heli AL III (1968/70), identificou-a como sendo a Maria Ivone Reis (Em 1968, tem o posto de tenente)... (LG)
Foto: © Mário Fitas (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
1. O nosso camarada Mário Fitas já está connosco, na Tabanca Grande, desde Junho de 2007 (*), portanto há mais de 3 anos... O nosso blogue já lhe publicou algumas dezenas de postes, incluindo os 11 relativos à notável série Pami Na Dondo, a guerrilheira (título, de resto, do seu 2º livro, publicado em 2005, em edição de autor) (**).
Há tempos ele prometeu-me enviar outras histórias, retiradas do seu primeiro livro, autobiográfico, Putos, Gandulos e Guerra (2000). O que na realidade ainda não chegou a acontecer, porquanto, segundo sei, ele terá tido a oportunidade de fazer uma 2ª edição, corrigida e melhorada... (A confirmar-se, é óptimo, já que a 1ª edição foi pouco cuidada).
De qualquer modo, estamos com saudades das suas histórias dos Lassas. O Mário é um excelente contador de histórias, ou não fora um alentejano dos quatro costados... A prová-lo está a auto-apresentação da história da sua vida militar que li ainda recentemente no Correio da Manhã, no suplemento dominical, na conhecida série A Minha Guerra, e que de resto está disponível na Net, no sítio do jornal. Com a devida vénia, reproduzimos aqui o essencial do texto:
Correio da Manhã, 6 de Junho de 2010 > A minha guerra: “É aqui que os homens se tornam irmãos” (Mário Fitas)
(...) Assentei praça no CISMI, em Tavira, no dia 8 de Agosto de 1963 e fui colocado no BCAÇ 8 em Elvas, em Janeiro de 1964, e em Lamego, em Junho de 1964, no CIOE onde tirei o curso de Operações Especiais, vulgo ‘rangers’.
A 11 de Fevereiro de 1965 embarquei, no navio ‘Timor’, com destino ao CTI da Guiné, como furriel miliciano de operações especiais. Chegámos a Cufar, no Sul da Guiné, a 2 de Março de 1965, ficando a CCAÇ 763 em quadrícula.
Vivi a Guerra no sul da Guiné tendo como adversário e comandante do PAIGC na então Zona 11, no Cantanhez, o ex-presidente da Guiné-Bissau, já falecido, 'Nino' Vieira. Para falar de uma guerra de guerrilha como a que foi a da Guiné, há que ter a noção do que é uma guerra de guerrilha e as suas componentes. Para o guerrilheiro é essencial o conhecimento do terreno com o apoio da população. Para quem faz a antiguerrilha, é lutar contra o desconhecimento do terreno e utilizar todos os meios para captar a simpatia e dar apoio às populações.
Havia apenas oito dias que tínhamos destruído o acampamento do PAIGC em Cabolol. Eis que o meu grupo de combate tem de partir para Catió, levar o pelotão de Artilharia. Nessa noite, um grupo da milícia do João Bacar Jaló, estacionado em Príame, detecta que a estrada foi minada, pelo que temos de utilizar o sistema de picagem da mesma.
(…) Mesmo ao cimo da leve subida, quando a estrada entra no túnel da mata após o vale de capim que separa aquela do cruzamento do Cabaceira, foram detectadas duas ‘meninas simpáticas, blenorrágicas prostitutas Anti/Carro’ que por nós esperavam, para nos ‘fornicarem’ o corpo.
Havia que deitar mãos à obra e rebentar as minas. Deixaram uma cratera que cabia lá um Unimog. Toca a tapar o buraco para as viaturas passarem. Trabalho efectuado, viaturas passadas, pessoal em segurança, vai um minutinho para fumar um cigarrito.
Verificámos então como funciona a guerrilha. Altamente organizada e eficiente contra a nossa ingenuidade. Fumando o cigarro, juntaram-se em amena cavaqueira de guerra três alferes, três furriéis milicianos e um milícia, de nome Zé Libanês. Conversa animada no grupo quando um clarão aflorou da terra, secundado de um grande estrondo e o grupo foi atirado cada um para seu lado. O Zé, de gatas, dizia:
- Estou ferido!…
Ouvimos um gemido. Também o alferes Abrantes, de Artilharia, estava estendido na berma. Perna direita levantada. O pé tinha desaparecido. O artilheiro ali estava a receber os primeiros-socorros. Outro inválido e aos 24 anos!
O cabo de transmissões entra em contacto com o aquartelamento que, de imediato, pede evacuação a Bissau que será depois feita de avião. Há que fazer o transporte para Cufar. O José Pedrosa, cara toda chamuscada, camuflado cheio de terra, oferece-se.
(…) Conhecia a perícia do Zé Pedrosa, autêntico condutor de ralis, mas era perigoso voltar só. O Artur Teles, comandante do grupo de combate, decide rapidamente. Acede e manda subir para o Unimog o enfermeiro, entregando-lhe uma G3, e nomeia outro soldado, que também salta para a viatura. O Zé entrega a sua G3 ao condutor que cede o lugar e salta para o lugar deste e, com o ferido esticado na caixa, o enfermeiro e soldado segurando o infeliz, arrancam direito a Cufar. É assim a guerra: ou ficamos todos, ou salvamos um.
Chegados a Catió não dá para mais nada: é largar os obuses e correr para o cais, pois há que embarcar para o Cachil na ilha do Como. Temos de fazer a segurança àquele desterro.
É na dor que os homens se tornam irmãos sem consanguinidade. Ao todo foram 34 operações de grande envergadura, 15 emboscadas sofridas, 444 patrulhas apeadas e 135 auto, 36 escoltas diversas, 48 emboscadas e 10 golpes de mão realizados. Operações de limpeza batidas e nomadizações na totalidade de 45.
Quase nove mil quilómetros percorridos a pé, seis mil de viatura e perto de mil de lancha de desembarque. Fui evacuado para o Hospital Militar e operado de urgência a duas hérnias inguinais, devido ao esforço de atravessamento de pântanos, bolanhas e rios de maré.
Em 26 de Novembro de 1966, a CCAÇ 763 desembarca em Lisboa. Mortos em combate: 1 sargento, 1 furriel miliciano e 5 praças. Feridos em combate: 2 alferes milicianos, 3 furriéis milicianos e 35 praças. Evacuados por doença: 1 sargento, 1 fur mil e 3 praças. (...).
[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
2. Comentário de L.G.:
No perfil do autor, indicava-se que ele, Mário, era casado, pai de duas filhas, avô de um neto, e reformado da TAP. Não era referido que uma das suas filhas é a conhecida Sofia Fitas, coreógrafa e dançarina, que está a participar, em 2010, no espectáculo Solos com convicção, Danças para coretos e jardins, integrado na programação das comemorações do Centenário da República, 1910-2010 ...
O jornal também não diz(ia) que o Mário, qara além de um bom cristão, é um talentoso artesão, dominando técnicas como a pirogravura... E sobretudo um amigão e um camaradão, que não perde a oportunidade de um animado convívio, seja da sua CCAÇ 763, seja da Tabanca da Linha, seja da Tabanca Grande.
______________
Notas de L.G.
(*) Vd. poste de 26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1884: Tabanca Grande (16): Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)
(**) Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)
(**) Último poste desta série > 23 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6887: Recortes de imprensa (27): Repressão da PIDE/DGS, em Cabo Verde, na sequência do assalto, feito por militantes do PAIGC, ao barco de cabotagem Pérola do Oceano, Ilha de Santiago, 19 de Agosto de 1970 (Nelson Herbert)
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2 comentários:
Ao camarigo Mário o meu camarigo abraço!
Sob o título A MINHA GUERRA, tem o Correio da Manhã editado, todos os Domingos, um texto baseado nos escritos enviados por combatentes.
Esta, que considero a 2ª série, aparece mais cuidada, mas, como o espaço é pouco, é bastante reduzida, deixando de fora algumas passagens que o/os autores consideravam mais significativas.
Sugiro, pois, aos editores que, em simultâneo com os resumos apresentados (e disponíveis na página do CM)sejam também publicados os textos que serviram de base ao trabalho da Maria Inês Almeida, e que os autores queiram disponibilizar.
Nestes textos, poder-se-á observar diversas formas de "encarar" os mesmos acontecimentos e, no caso de unidades de recrutamento local (p.e. CCAÇ 5 - 6 participações) a sequência dos factos que foram ocorrendo.
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