1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2010:
Queridos amigos,
Quem, como eu tantas vezes ouviu falar em Infali Soncó, fica desvanecido pelas recordações de Juvenal Cabral. O pai do mais renomado dos fundadores do PAIGC guardou um sem número de memórias dos seus tempos de Bafatá, ao tempo em que Amílcar Cabral aqui nasceu.
Como já observou o nosso confrade Leopoldo Amado, é indispensável ter em conta os valores por que se regiam homens como Juvenal Cabral, crédulos da sua civilização e até da sua superioridade cultural.
Um abraço do
Mário
Juvenal Cabral e as suas memórias de Bafatá (2)
Beja Santos
O pai de Amílcar Cabral é uma figura típica do intelectual cabo-verdiano que estudou em Portugal, que se motivou pelas letras pátrias e que se lançou, no espírito do tempo, na defesa pública dos interesses da população cabo-verdiana, entre os anos 30 e 50. O seu livro “Memórias e Reflexões” é um depoimento do maior interesse para conhecer a têmpera de um homem culto que enaltecia a pátria portuguesa como nação colonizadora e que simultaneamente assumia a sua identidade africana e denunciava, dentro dos limites que o salazarismo consentia, os infortúnios desses ilhéus açoitados pela fome.
Já se escreveu como ele apareceu na Guiné, um quase adolescente, se atirou ao trabalho no funcionalismo em Bolama e depois como professor primário, percorrendo Cacine, Buba, Bambadinca e Bafatá. É aqui que vai nascer Amílcar Cabral. Desse período, Juvenal Cabral oferece-nos alguns dos seus melhores textos antes de regressar à ilha de Santiago. Oiçamo-lo a descrever a vila de Bafatá: “Centro comercial de primeira ordem, ergue-se em anfiteatro, risonha e próspera, no ponto em que o pequeno rio Colufi junta as suas águas às do volumoso Geba, cujas sinuosas margens foram testemunhas de interessantes acontecimentos históricos. Foi nas margens do imponente rio Geba que Infali Soncó mandou colocar arame farpado, na tentativa de impedir a passagem de embarcações e cortar todas as comunicações comerciais entre Bissau e Bafatá. Foi nas pitorescas margens desse caudaloso rio que filhos de Geba se reuniram em 1852 para planearem a revolta por meio da qual manifestaram o seu descontentamento e o seu protesto contra os prejuízos resultantes do privilégio concedido a Nicolau Monteiro de Macedo de, em exclusivo, explorar todo o comércio e navegação do rio Corubal. Foi ainda naquelas aprazíveis margens, à sombra de frondosas árvores, que a Fidalga de Fá – negra biafada, sedenta de civilização e doidamente apaixonada – se lançou nos braços do cabo-verdiano José Valério com quem, num idílio verdadeiramente rústico, celebrou o seu romance de namoro, cujo interessante epílogo foi a cedência aos portugueses de todo o território de Fá!”
A admiração de Juvenal Cabral pelo administrador Calvet de Magalhães era quase ilimitada. Exalta-o nas suas memórias como trabalhador incasável, homem de sociedade e acção que sobrepunha o interesse do serviço público ao seu próprio bem-estar. Calvet lançou-se em obras de fomento como a construção da ponte sobre o rio Colufi, e depois o mercado em estilo árabe, ao gosto dos muçulmanos. Juvenal Cabral confessa que Bafatá foi uma verdadeira escola para ele. Era professor oficial e subdelegado do Procurador da República. Recorda ainda outros administradores como Alberto Pimentel e mesmo João Barreto, autor da primeira história de Guiné. Depois espraia-se em histórias da sua vivência. É o caso de um homem que teria sido assassinado para as bandas de Selho, hoje em território do Casamansa. O administrador Saavedra Temes dirigiu-se ao local acompanhado por Juvenal, o chefe de posto aduaneiro, um amanuense e um escrivão foram de cavalo e seguiu também a filha de um régulo que vivia com o administrador. Lá foram à frente numa grande comitiva, com muitos fulas a pé, passaram por Contubo-El até chegarem a Sama Irondim. Ele escreve: não me cansei de admirar a paradisíaca beleza de alguns pontos do território da Guiné, onde jamais entrou uma enxada de lavrador para explorar, pela agricultura, as riquezas que o seu solo abençoado promete. Se toda a Guiné fosse cultivada, produziria géneros alimentícios excedentes das necessidades da metrópole, com a óptima vantagem de que Cabo Verde não teria necessidade de recorrer a Angola, quando acossados pela crise”. A chegada a Sama Irondim foi uma verdadeira apoteose. O cozinheiro levado de Bafatá preparou uma canja deliciosa. Bebido o primeiro garrafão de cinco litros, a comitiva mostrou-se ruidosa e festiva, com algumas imprecações de permeio, com os fulas a escutar tudo em silêncio. Depois o régulo pediu licença para fazer a sua festa, começou um batuque infernal. Seguiram-se alguns episódios brejeiros, como o súbito desaparecimento do administrador na companhia da filha do régulo. No dia seguinte, procedeu-se à identificação do corpo e o administrador mandou enterrar o cadáver.
O relato de uma batucada é feito com todo o fulgor: “Chegam os homens do tambor e, atrás deles, o dançarino, rapaz negro mas de formas correctas e gentis. Vem quase completamente nu mas no pescoço e nos braços ostenta argolas de metal; nos tornozelos, além de argolas, qualquer coisa de madeira cujo som, semelhando castanholas, nitidamente sobressai, a cada passo da dança, a cada passada do dançarino. Centenas de raparigas formam uma espécie de circunferência, cujo centro é o palco, onde o esbelto mancebo, num ritmo que seduz, numa agilidade que assombra, vai conquistar ovações estrondosas da plateia… ao matraquear ensurdecedor do tambor, das tábuas e das palmas, o dançarino, sobre quem incidem todos os olhares, salta de um lado para o outro, dá voltas ao recinto e baila sapateando com rapidez e perfeição… entretanto, um grupo de raparigas, num gesto que não pode dizer-se selvagem, porque foi realmente sublime e encantador, aproximam-se do seu Adónis, rodeiam-no como a um ídolo e ao mesmo tempo que dão palmas entoam uma canção, um hino de mística harmonia. Arte indígena? – Arte primitiva? Arte oriunda dos primeiros habitantes do Egipto? – Da Arábia? – Do Industão? Eu não sei…”. Esta colectânea de memórias termina com uma exaltação dos heróis da Guiné, onde aparecem nomes como Teixeira Pinto e Júdice Bicker.
As recordações cabo-verdianas são igualmente palpitantes, fazem hoje o deleite de qualquer etnógrafo ou etnólogo. Como nos parecem igualmente tocantes todos os seus textos sobre as crises e as fomes e os seus apelos para que o povo flagelado visse mitigado todo o sofrimento.
Também por isso se compreende o orgulho dos cabo-verdianos que reeditaram Juvenal Cabral para o mostrar como exemplo às gerações mais jovens, exibindo textos com importantes informações socioculturais e políticas que têm de ser lidas à luz do contexto em que foram formuladas.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7064: Notas de leitura (152): Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
9 comentários:
Do alto do nosso "conhecimento das coisas", acabamos por não saber nada, afinal.
Um abraço.
Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro
Caro Mário Beja Santos
Interessante esta abordagem. Não conhecia a existência deste 'personagem' nesta faceta aqui revelada, nem fazia, obviamente, ideia da profundidade e interesse do seu trabalho.
Retenho essencialmente esta frase :
"Se toda a Guiné fosse cultivada, produziria géneros alimentícios excedentes das necessidades da metrópole, com a óptima vantagem de que Cabo Verde não teria necessidade de recorrer a Angola, quando acossados pela crise”.
Será que era assim?
Será que ele via isto, realmente?
E será que isto ainda tem possibilidades de 'voltar a ser'?
Será que as experiências levadas a cabo pelos nossos amigos da AD no Cantanhez e noutros locais podem ser o embrião desta 'vaga de fundo'?
Oxalá que sim!
Um abraço
Hélder S.
Caro Helder
Antes de mais os meus parabens...pela passagem de mais um aniversario... que venham mais e com saude sobretudo...
"E será que isto ainda tem possibilidades de 'voltar a ser'?"
Ate 1964..o inicio da guerra, a Guine teve excendentes na producao do arroz, por sinal a base da alimentacao dos guineenses...Exportou para as demais colonias portuguesas em Africa... Hoje, importa praticamente todo o arroz que consome !
Mantenhas
Nelson Herbert
onde jamais entrou uma enxada de lavrador para explorar, pela agricultura...
Se toda a Guiné fosse cultivada, produziria géneros alimentícios excedentes das necessidades da metrópole, com a óptima vantagem de que Cabo Verde não teria necessidade de recorrer a Angola, quando acossados pela crise.
Semelhante ao que diz Juvenal Cabral, diziam os velhos caboverdeanos e angolanos que sempre houve muita fome em Caboverde e na Metrópole. principalmente durante as duas guerras e muitos anos depois.
Mas que Angola , Guiné e Moçambique, sempre tiveram fartura e que não se aproveitava.
Era uma crítica que se ouvia nos anos 50 em Luanda.
Antº Rosinha
Nelson
Segundo informação que recebi, a cultura de arroz terá ficado suspensa de um contrato de fornecimento de caju à China, cuja produção terá sido incrementada e, inicialmente era bem paga em arroz. Com o tempo, o arroz perdeu interesse económico e deixaram de o produzir. Depois, conforme a lei da oferta e da procura, o arroz tornou-se o produto desejado,mas, por qualquer razão, não se fizeram culturas, caindo na dependência.
Isto contém alguma verdade?
Um abraço
JD
Há vários factores que estão a contribuir para o abandono gradual da produção do arroz na Guiné:
A partir dos anos 80, com a liberalização do comercio e das importações, aliado a descida de preços do amendoim no mercado internacional, o cajú transformou-se no principal produto de exportação da Guiné contribuindo, neste momento, com mais de 90% do PIB e ocupando mais de 80% da população activa.
A partir do momento em que há uma grande procura deste produto no mercado internacional, sobretudo indiano, e na condição de uma troca directa cajú/arroz, prevaleceu a lógica do mais fácil, ou seja, as familias/populações preferiram aumentar os campos de plantação de caju em detrimento da produção do arroz que, como sabem, é muito exigente em água, técnicas de cultivo e mão de obra intensiva.
Pouco a pouco o cajú transformou-se no concorrente e substituto directo do arroz numa altura em que se verifica uma certa diminuição e irregularidade das chuvas assim como um crescente exódo da mão-de-obra mais jovem para as cidades.
As nossas autoridades estão confrontadas com o dilema do preço do arroz. Não podem perfilar pela subida do arroz importado para não prejudicar as populações (real politique exige)mas, também, não o podem diminuir muito porque o estado não é actor comercial directo.
Cherno AB.
Em 2008, salvo erro, o padre Lino Bicari publicou um interessante artigo num jornal local, sobre o que seria uma faceta escondida do Juvenal Cabral ou do Amilcar.
Segundo este Padre Franciscano que hoje vive em Portugal e que durante muito tempo colaborou com o PAIGC, a mãe de Amilcar não seria a D. Iva como se pretende e está registado oficialmente mas uma mulher Fula de Geba com a qual o Sr. Juvenal teria mantido relações de amizade (casa 2?).
Cherno AB
Juvenal Cabral viu tanta fome em Caboverde e em Portugal, que teve aquela reação para observar que ali, naquelas lindas bolanhas (e com aquele clima, implicitamente)podiam matar a fome a toda a gente.
A melhor sensação que tinha quem chegava a esses territórios ido de Portugal, era não ver ninguem a pedir esmola para matar a fome.
Nos anos de Juvenal Cabral, até à II grande guerra, havia tantos pedintes numa feira no norte e interior de Portugal, como feirantes.
Nas procissões e romarias no norte de Portugal, havia tantos pedintes à beira da rua como fieis.
O que Juvenal sentiu ao chegar à Guiné era a reação de todos os que iam daqui.
Cherno, só falatava agora requerer exame de ADN
Cumprimentos
JD
Nao me espantaria essa versao dos factos... Angola,de produtor africano de acucar, passou a importador...e sabe de onde ? De Cuba...a cujos conselheiros tecnicos se entregou a gestao das duas entao fabricas do pais. So recentemente os angolanos despertaram-se para a cilada...e nao eh que as fabricas e as plantacoes de cana de acucar de Benguela e do Bengo vao ser reabilitadas !
Nessa "estoria" da reducao da producao do arroz na Guine terao contribuido decerto varios factores...alguns ja evocados pelo meu compatriota Cherno...mas de forma alguma de se perder de vista o impacto que eventualmente a guerra teve na reducao das areas/ bolanhas ...araveis ...e na propria desarticulacao de todo o sistema da producao rizicola...
Mas quem sou para abordar semelhante questao tecnica, tendo o blogue a disposicao..um bloguista ...de competencia tecnica reconhecida na materia.
Refiro-me pois ao engenheiro Carlos Schwarz ( Pepito) , uma voz guineense autorizada nessa materia!
Relativamente a versao - "progenitora"- de Amilcar Cabral, avancada pelo Cherno..Devo sublinhar aqui que a primeira abordagem aberta desta controversa questao-surgiu pela boca de um conhecido historiador guineense ( nao interessa aqui o nome) e coincidentemente no periodo que se seguiu ao 14 de Novembro 1980-o golpe que derrubou o presidente Luis Cabral e que pos fim ao sonho supranacional ...da Unidade Guine Cabo Verde...
Coincidencias a parte, la dizia o mais velho Rosinha..so um teste de DNA ...para salvaguardar a "candida inocencia" dessa versao retomada pelo Padre Lino Bicari !
Mantenhas
Nelson Herbert
USA
Enviar um comentário