sábado, 9 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7105: Notas de leitura (157): O P.A.I.G.C. e o futuro: um olhar transversal, de Ricardo Godinho Gomes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Aproveito para dar a notícia que no dia 17 de Novembro, pela noitinha, parto para a Guiné, onde estarei duas semanas. É uma viagem para abraçar todos os amigos do Cuor e arredores, para rever os meus inesquecíveis soldados e para fazer uso, o mais abusivo possível, dos meus apontamentos para encontrar o final do livro que estou a escrever intitulado “A Viagem do Tangomau”.
Fico em Santa Helena, ao pé de Fá, o meu amigo Fodé Dahaba cede-me viatura e condutor para todas as minhas peregrinações aos locais que conheci e até aos santuários da guerrilha, por onde passei de raspão.
Se alguém precisar de mensagens para a região de Bambadinca , Xime, Ponta do Inglês ou Ponta Varela, ou mesmo o Burontoni, onde nunca entrámos, é só pedir, estou disponível nesta romagem de camaradagem.

Um abraço do
Mário


O PAIGC e o futuro:

Uma proposta, uma utopia


Beja Santos

Ricardo Godinho Gomes, descendente de guineenses, finda a guerra civil e as eleições subsequentes que deram a vitória ao PRS – Partido para a Renovação Social e colocaram Cumba Yalá, na presidência, resolveu escrever um ensaio sobre o estado do PAIGC e avançar com propostas de regeneração, partidária e nacional. Pela força das coisas, é um manifesto datado; lido hoje, sente-se a generosidade e inocência das crenças; enxutos os argumentos usados, fica a utopia. Um documento de reflexão, ao fim e ao cabo, para ler com melancolia, já que (quase) tudo se agravou e a esperança não desfraldou (“O PAIGC e o futuro: um olhar transversal”, por Ricardo Godinho Gomes, AfroExpressão – Publicações, Lda, 2001).

O autor escreve consciente que a realidade ficou muito aquém do sonho “e as gerações que nos sucederam arriscam-se a ser as gerações do desespero”. Há que dar a voz àqueles a quem pertence o futuro, ajudá-los a analisar o passado recente, identificar os erros e dar nova vida aos sonhos.

Primeiro, a Guiné-Bissau que emergiu do conflito é um país ainda mais pobre. Se em 1997 a esperança de vida à nascença era de 45 anos, a taxa de mortalidade infantil de 132 por 1000, com uma taxa de escolarização em permanente regressão e com 90 por cento da população a viver com menos de um dólar, tudo piorou e a dependência da ajuda internacional intensificou-se. É a comunidade de doadores que ajuda ao acesso à água potável, à maioria dos programas de aceleração do desenvolvimento, do ensino, da investigação, da melhoria das infra-estruturas. Depender da cooperação internacional é insuficiente, é preciso despontar do estado debilitado e encontrar mensagens para revigorar a nação e refundar o Estado.

Segundo, compete ao PAIGC perceber o que aconteceu no acto eleitoral que atirou um partido prestigiado e confundido com a luta armada de libertação nacional para a terceira força política do país. Na óptica do autor, com este acto eleitoral corre-se o risco de surgirem partidos vincadamente étnicos ou tribais, sem substância política, totalmente dependentes do chauvinismo. O PAIGC tem de reflectir quais as escolhas ao populismo e demagogia que se anunciam com estas eleições que apostaram nas propostas tribais. Compete ao PAIGC repensar as teses de Amílcar Cabral em torno da unidade da nação num contexto multipartidário e apreciar que neste novo século nada se passa como no contexto histórico em que nasceu e vitoriou a luta de libertação.

Terceiro, é a reflexão sobre o pensamento de Cabral que pode dar novo fôlego aos militantes dos PAIGC, aos seus eleitores e um objectivo ao povo guineense. Reflectir sobre as vitórias do PAIGC e os seus desaires. Vitórias que assentam na conquista da libertação, na formação de quadros nacionais, na riqueza da vida participativa durante a luta com eloquentes resultados como foi a emancipação da mulher e novo sistema educativo, as práticas de justiça e a criação de um sistema sanitário bem como o reconhecimento do crioulo como língua veicular. Desaires como foram a derrota da unidade Guiné-Cabo Verde, o erro teórico do suicídio da burguesia, a supressão das chefias tradicionais e a calamitosa gestão do Estado. Tudo conjugado, o PAIGC foi incapaz de se enquadrar num verdadeiro Estado moderno, não soube adaptar-se a uma orientação do Estado numa atmosfera de todo o território, o que é bem diferente do sucesso maior ou menor alcançado durante a luta nos chamados territórios libertados. Tornou a linha do centralismo democrático uma pura arbitrariedade que serviu para aterrorizar populações e intimidar todos aqueles que mostravam a desgovernação do país, entregue a arrivistas dentro de um partido dividido por facções e coligações de interesses.

Quarto, encetada esta reflexão com desassombro, haverá que trabalhar em duas vertentes, a ideológica e a estrutural. Quanto a esta última, o autor propõe que é indispensável encontrar uma solução digna para os problemas dos antigos combatentes, eles são o símbolo das nacionalidades bissau-guineense e cabo-verdiana. É indispensável aprofundar a ideia de unidade e discutir o que passou a ser (ou deverá passar a ser) a “irmandade” com Cabo Verde. Do mesmo modo, haverá que reformular o quadro de actuação da juventude, das mulheres e do sindicalismo apoiados pelo PAIGC. Tendo chegado a hora de alternância política, perceber como é que o PAIGC descambou num quase total silêncio durante a campanha eleitoral que o atirou para a terceira força política. E saber tirar as devidas lições de como deixou para um novo Governo o aparelho de Estado desmembrado, a administração eficaz, a saúde ao seu mais baixo nível possível, a qualidade do ensino abaixo de qualquer objectivo depreciativo.

Quinto, encontrada uma linha de rumo para a acção, pôr em prática vários desafios mobilizadores de toda a população: à procura de auto-suficiência, de uma maior eficácia da exploração dos recursos marítimos, do saber encontrar os melhores traços de união para reabilitar a esperança junto de todos os guineenses.
Ricardo Godinho Gomes, insista-se, escreveu seguramente bem-intencionado; mas não soube pesar a carga dos erros praticados entre a independência e a guerra civil. Não vale a pena especular o que teria sido a Guiné-Bissau se mantivesse à sua frente um líder com o gabarito de Amílcar Cabral. O que interessa é que não aprofundou a matriz nacional, delapidou recursos, não criou imagem de seriedade perante os doadores, não deu força à esperança da jovem nação. Aceita-se que tenha escrito um manifesto para acordar um partido que se desmotivara e se entregara às rotinas do mando absoluto. Falhado o plano de unidade com Cabo Verde, havia de se saber sarar as feridas e entrar na tal “irmandade” sem complexos, o que não aconteceu. Continuou a faltar cultura política para fazer passar a própria mensagem de unidade, indispensável para o levantamento do Estado. O manifesto não foi ouvido, o que agora importa é registá-lo, como peça construtiva, a Guiné-Bissau precisa cada vez mais de peças construtivas para se levantar e consolidar a autonomia e auto-suficiência possíveis.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7100: Notas de leitura (156): O Ultramar secreto e confidencial, por José Filipe Pinto (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Caro Mário
Depois da leitura da mensagem e, antes de ler o resto, passo á escrita.

- Tem cuidado contigo. Sabes o que eu quero dizer. Tem muito cuidado.

-Se encontrares nas tabancas de Fá, Amedalai, Bambadinca (depois há o telegrafo entre eles)gente do meu tempo- o Lali, Suckel, Madiá ou o Régulo Antº Bonco Baldé (Corubal),
abraça-os por mim. Por favor toma nota. O resto é comigo, depois.
- Fomos ao Burontoni, repito fomos ao Burontoni. Até na Lança Afiada. Fomos.
Pergunta aos teus homens mais velhos pelo 91 e pela metralhadora pesada e ficou tudo partido...e Baio. Fomos. Porra íamos a qualquer lado.

Boa viagem e óptima estadia.

Um abração do Torcato de Mansambo e Lenço azul.
-Vou ler o "olhar transversal"...

Unknown disse...

Beja Santos, antes de perdêr a oportunidade de o fazer, desejo uma boa estada na Guiné Bissau, e que tenha todo o tempo do mundo para continuar a compreender e a desenvolver o seu estudo empenhado e exemplar sobre a Guiné Bissau e seu povo.
E depois nos transmita as constatações possiveis.

O mêdo é a irmã mais velha da ignorância, regeitada por qualquer livre pensador.

Já agora, na grande Lisboa, quem costuma a vender esta editora do livro em causa neste seu post ??

Cumprimentos e tambem para todos outros.

Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro

Torcato Mendonca disse...

Olhe Filipe: para o caso de se estar a referir ao que eu disse, você parece não ter sido operacional. O medo não é sinónimo de ignorância. Eu tive os meus medos como o Beja Santos. Ele e poucos mais sabem o que eu quero dizer.
Não tem que ver com medo(s), tem a ver com algo fruto, isso sim, da ignorância, de não se saber o terreno que "pisamos" ou as pessoas que, em certos momentos, nos rodeiam etc.

Não sei sem edita ou vende o livro. Teria gosto em dizer-lhe.
Um abraço do Torcato

Unknown disse...

Torcato, está tudo apanhado pelo clima português.!!!...
Quando escrevi aquela frase, não pensei em guerra, nem em você.
Pensei sómente na associação: viagem de B.Santos e lugares em Guiné Bissau. Influenciado pelo que tinha imediatamente acabado de lêr acima.
Nem sei se reproduzi subconsciente algo que eu tenha lido algures.
Assim não dá. Não dá para estabelecer qualquer nível de amizades livre de preconceitos.
Eu quando quero dizer alguma coisa digo-a claramente. Bastará o amigo Torcato, procurar nos Posts os meus comentários para verificar. Posso-lhe facultar uma lista dos mesmos.
Já aqui escrevi, enquanto me for permitido não me escusarei a dizer o que penso respeitando ao máximo as linhas orientativas deste Blog e as pessoas que constituem esta enorme tertúlia.
Queira receber os meus cumprimentos.

Torcato Mendonca disse...

Caro Filipe

Eu disse #para o caso de...#
Referia-me á operacionalidade do Mário ou á minha. Fomos contemporâneos na Guiné e fizemos trabalhos juntos.Somos Amigos e os Amigos sempre me preocupam.
Só isso.
O tratamento por você é desnecessário.
O Mário B.Santos já esteve na Guiné e sabe cuidar-se. Contudo...pode haver certas dúvidas ainda não debeladas...

Por e-mail, se assim entenderes, poderemos falar.

Não te aborreças amigo estou velho demais para que comigo, ex-camaradas, se aborreçam. Dizer o que se pensa tem um custo. Vidas.
Abraço fraterno do Torcato

Unknown disse...

Ok. Tudo bem, já passou.
Também eu já estou velho, para isto e às vezes tenho dúvidas se vale a pena gastar o resto do tempo nestas merds.

Um abraço.

Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro

Beja Santos disse...

Torcatal Figura, conta comigo. Mal chegue a Bambadinca e farei anúncio das suas ordens. A todos abraçarei, está prometido. Garanto-te que nem todo o cuidado será possível. Guardarei silêncio até ao limite. Mas o que os olhos vêem às vezes não se sustêm as emoções, aquela malta deu o coirão, acreditou profundamente em nós. Até ao limite, seguirei o teu aviso. Vou concentrar-me no Cuor. Se tudo correr bem, o final da viagem do Tangomau irá acontecer em Mato de Cão, e não é por simbolismo. A confiança criada entre os guineenses e este seu alferes deu-se ali. Eu seguia à frente, de manhã, à tarde e à noite, consoante a tabela das marés. O que vai ficar é exactamente isto: confiamos quase ao ilimite uns nos outros. É isso que a narrativa oral deles e a nossa escrita vai catapultar para o futuro.
Meu caro Filipe, consola-me saber-me útil as suas leituras. Vou procurar honrar essa estima que em mim deposita.
Aos dois, que entraram numa bulha inacreditável, abraço-vos sem medo e cheio de estima, Mário