(...) "Encontrou alguns dos seus colegas de seminário, desistidos anos antes e nunca mais vistos: O Vítor, um óptimo hoquista, de Espinho; o Luís Barros, o José Ramos Canito, de Vila do Conde. Outros mais haveriam de aparecer já nas quentes paradas do religioso convento, convertido em quartel e escola de guerra." (...) . Imagem: Origem desconhecida.
1. Texto do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins, (Como, Cachil, Catió, 1964/66)
Assunto: Futuro Palmeirim de Catió
Olá, Luís!
Como não podia ser doutra maneira, continuo a sr um assíduo e interessado leitor do teu/nosso monumental blog. Duma riqueza incalculável. Se não fosse a tua feliz ideia, mais umas dezenas de anos volvidos, um valiosíssimo tesouro patriótico ficaria, para sempre, sepultado no desconhecido e na ignorância das gerações futuras. Aquela guerra que nós vivemos, com bons e maus momentos, palpita com uma surpreendente e autêntica vivacidade nos milhares de posts que já foram escritos e irão seguir-se.
Mais uma vez e sempre a minha admiração e reconhecimento pelo teu empenho e o dos nossos co-editores.
O texto que segue sai da autobiografia que fiz para os meus netos lerem, um dia...sobre os verdes anos do seu avô...Dela sairam as crónicas dos Palmeirins de Catió (*). Agora, penso de algum interesse partilhar a minha vida, nos tempos preliminares da guerra que nos foi imposta e que cumprimos sem discutir...( absolutamente impensável nos tempos que correm...).
Fica à tua/vossa disposição para serem lançadas no Blogue.
Um grande abraço
Joaquim Mendes Gomes
2. Futuro Palmeirim de Catió (1) > No Convento de Mafra
por J.L. Mendes Gomes
Num dos primeiros dias de Agosto de 1962, munido da guia de marcha militar, tomou a carreira mais madrugadora do Cabanelas, às 6 da manhã, em Pedra Maria,( Felgueiras) para ir apresentar-se, nesse dia, na longínqua vila de Mafra, sua conhecida, só das páginas escolares da história portuguesa.
Naquela manhã, uma vez mais, acompanhado pelas badaladas da torre de Pedra Maria, agora, em jeito de adeus, um dos seus filhos partia para a tenebrosa e imposta aventura militar. O cortejo dos que tinham a mesma sorte foi engrossando, ao longo do caminho, longo, primeiro, na tão familiar estação de São Bento, no Porto. Depois, sempre no ronceiro comboio correio que parava em tudo quanto era sítio, até às paragens verdejantes da linha do Oeste, a partir da simpática estação de Alfarelos, com bela azuleijaria azul a revestir-lhe as paredes com cenas de vindimas e pomares da região.
O nervosismo que toldava todos os mancebos ficava mascarado pela irrequietude e pelas irreverentes gargalhadas que se desprendiam, permissivas e sem controle, dominando as carruagens do comboio, como se já fossem as, ainda só, imaginadas casernas que os esperavam.
Encontrou alguns dos seus colegas de seminário, desistidos anos antes e nunca mais vistos: O Vítor, um óptimo hoquista, de Espinho; o Luís Barros, o José Ramos Canito, de Vila do Conde. Outros mais haveriam de aparecer já nas quentes paradas do religioso convento, convertido em quartel e escola de guerra.
O famigerado Simão, por exemplo, lá apareceu, em fatídica surpresa, qual sombra sinistra e teimosa, escondido na larga farda cinzenta, onde lhe sobrava muita fazenda. Só a comprida pála do barrete lhe acompanhava, até à ponta, em sintonia perfeita, o seu característico nariz rubicundo. Tão furtivamente como apareceu, assim desandou, ao cabo de umas breves semanas da recruta, dura de roer…
Soube, através de outro ex-seminarista, o pachorrento, mas d`olho vivo, Bernardino Teixeira de Carvalho, que ele tinha dado baixa ao hospital e que, por artes mágicas, se livrou, definitivamente, da tropa, escassas semanas depois…Que inveja!…Era sobrinho dum abade influente. …Bênçãos que caem e sempre hão-de cair, apenas, sobre certos telhados, sabe-se lá porquê… Talvez o diabo saiba…
Pode dizer-se que uma grossa turma de ex- seminaristas portucalenses lá estava transferida, agora, espalhada e bem tresmalhada, pelas muitas companhias do regimento, de velha "mauser" ao ombro, e fato zuarte, em vez do terço e da cândida sobrepeliz branca…
A pouco e pouco, já de noite, a longa fila dos noviços soldados-cadetes desfilava por um dos muitos infindáveis corredores do convento colossal, para ir desnudar-se, pela derradeira vez, à vista de todos os olhos surpresos, só para que dúvidas não restassem sobre a masculinidade genital, perante os clínicos anfitriões…
Era a primeira cena, simiesca, das muitas que haveriam de suceder, durante os anos seguintes, perante a máxima e confortante hilariedade, em que todos eram participantes. Olhos surpresos? Sim. Se é certo que quem vê caras não vê corações, também se confirmou, ali e doravante, que quem vê grandes e másculas corpulências não pode garantir-lhes correspondentes intumescências…
Dir-se-ia até que a lei da natureza, sobre masculinidade, se rege pela razão inversa dos tamanhos…numa linha de equilibradas compensações. Ali se patenteava, aos olhos de todos, com toda a verdade, pelo menos, naqueles tempos, as grandes surpresas e os desencantos de tantas noites de núpcias…
O Sampaio, um castiço tripeiro, de cabelo alourado e espetado, numa cara sardenta e afilada, com olhos pequeninos e fundos, um inexcedível palrador e barraqueiro, desde a estação de S. Bento, bêbado de cerveja, que nem um cacho, ali estava a tentar pele 4ª ou 5ª vez, enfiar, perna a perna, nas largas calças da farda acabada de receber, com algumas idas ao chão, pelo meio, sem esboçar um sorriso.
Por acaso, foi parar ao mesmo pelotão da 2ª Companhia de Infantaria, comandada pelo mais garboso e convencido capitão, Óscar Gomes da Silva, de bivaque de altas proas na cabeça e de elegantes polainas pretas de couro preto, sempre a luzir, e à mesma caserna monacal.
Tal como o Mendonça, a quem a longa escola da boémia de Coimbra rapara todo os temores que nos enlaçam sempre, nestes primeiros contactos, em novos ambientes.
Totalmente ambientado, desde logo, se manifestou pronto a enfrentar e derreter, em gozo geral, os frequentes assomos da maluqueira militarice profissional.Parecia que estava ali para se divertir, à grande, com a requintada habilidade de um bobo na côrte.
Também quis a sorte que ele fosse parar ao mesmo pelotão, companhia e caserna. A prová-lo, relembra um dos muitos episódios, que teve a sorte de presenciar. Seguia o Mendonça, a seu lado, magricelas, dentro do fato zuarte cinzento, esbordante no tamanho, por um dos muitos corredores que percorrem o interior do convento-quartel, do tamanho de altas e largas avenidas, com o braço engessado ao peito. Uns metros após terem passado por aquele superior hierárquico, imediato, o zelozo capitão, comandante de companhia, parou, estacado e dirigiu-se ao subordinado rastejante:
- O nosso cadete não cumpriu o dever de saudação ao seu comandante!…
A resposta brotou, pronta, do Mendonça, já em sentido:
- Saiba Vossa Senhoria, que não foi feita a bem merecida continência, por impossibilidade física, (só os olhos baixaram para o braço desditoso) mas volvi, respeitosamente, ao flanco…
Desarmado e sem palavras, o comandante retomou, impertigado, a sua caminhada bem timbrada sobre o lajedo de mármore gasto pelo uso secular das multidões profanas que o convento continuava a albergar.
Só quando o vulto esguio do satisfeito superior se desvaneceu à distância, por entre outros militares, transeuntes, estoiraram, sem réplica, as gargalhadas, a muito custo retidas por ambos.
O seio hermético do mundo militar começava a revelar-se em catadupa, nas duras semanas que se seguiram, infindáveis. Era um autêntico internato, movido a sonoros toques de cornetim. Cada um tinha o seu significado e, aos recém-soldados cadetes era-lhes vedado alegar desconhecimento.
Às seis da manhã, de verão e de inverno, o toque da alvorada obrigava-os a descerem lestres dos beliches de três, para o escutarem, em sentido, junto aos ferros das camas, ainda em traje de dormir.
As luzes acendiam-se, à 1ª nota do cornetim, e dentro de 20 minutos toda a caserna deveria estar arrumada, camas feitas, com a higiene pessoal e as sagradas botas pretas a reluzir, para que na 1ª inspecção do formar da companhia, o olhar de lince do capitão Óscar, não desfechasse um doloroso corte de dispensa, no final do dia.
Hoje, é inimaginável como tudo se conseguia.
O castiço Mendonça era sempre o último a chegar à parada, com os três pelotões e respectivos comandantes instrutores, à frente, alferes de carreira, de cada uma das três companhias, já bem perfiladas, de capacete e espingarda ao ombro, em posição de descanso.
Vinham depois os três imponentes capitães postar-se à frente da sua companhia, recebendo a devida, continência, à voz de " Ombro, arma!", erguida por cada um dos alferes.
Logo a seguir, era a vez de os capitães renderem continência da sua unidade ao comandante, ainda mais imponente, do Batalhão que o toque de cornetim, anunciava uns instantes antes.
Fazia-se a chamada por companhia; o comandante de batalhão fazia as advertências patriótico-militares, da ordem, e toda a mística estudada nos anais das ciências militares ia sendo transmitida aos futuros comandantes de pelotão nos teatros de guerra colonial que os aguardavam.
Vinha a seguir o pequeno almoço, nos amplos refeitórios do convento, depois da ordem de dispersar.
O próximo toque obrigava à formatura das companhias, perante os seus comandantes e, a partir daí, era a partida em marcha cadenciada pelo alferes, para a mata de castanheiros frondosos, a uns dois km. dali, no seio da vastidão da cerca mítica do convento de Mafra.
Ensarilhadas as armas, segundo a norma tradicional, começavam, em cada manhã, os exercícios de ginástica, desenvolvida numa corrida em círculo. Ali, surgiu a 1ª experiência do esforço físico exigido, sem limites, pela imaginação e comando supremo do alferes do pelotão. As suas ordens eram indiscutíveis, até à exaustão. O cansaço das primeiras semanas fez ver quão doces eram uns escassos minutos de intervalo, entre cada sessão. Nunca as folhas caídas dos castanheiros, à mistura com ouriços espinhosos, foram tão apetecidos colchões, secos ou molhados pela chuva, para um saboroso restauro de forças.
Quando chegava a hora do almoço, era o regresso, até aos imensos refeitórios, de mesas de mármore branco, em salas imponentes. O feijão, o macarrão ou o arroz, acompanhado de gordurentos pedaços de carne de cabra, nunca foram tão saborosos…regados com um pequeno púcaro de vinho tinto carrascão, a granel, ou da água da caneca.
Ordem unida, instrução militar, e o esventrar das mil peças que formam a expedita e obsoleta espingarda Mauser, da bazooca e do morteiro, era o temas da 5 horas de aulas que preenchiam as tardes, sempre, algures, debaixo dos frondosos castanheiros, na mata de Mafra.
A religiosa manutenção da sua Mauser, os crosses semanais, de comprimento crescente, ao longo da estrada da Ericeira, até aos oito km, mais umas sessões de acção psico-pedagógica militar, ocupavam todo o período de recruta daqueles soldados-cadetes. Tratados abaixo de cão, pelas cadeias da hierarquia cinzentona, desde os simples cabos, sargentos ao distante e sisudo comandante do regimento, jamais seriam capazes de imaginar-se, volvidas umas breves semanas, como futuros oficiais milicianos.
O certo, porém, é que terminada a recruta, intensa na preparação física e mentalização militar, com uma semana de campo, nos montes escalvados das cercanias da Malveira, veio a chamada especialidade de atirarador de infantaria, que iria ser exercitada no fantasma da guerra de África. A preparação infindável, terminou nos rigorosos frios de inverno ventoso e chuvento de Mafra lamacenta. Quem por lá passou, bem o pode testemunhar. Mafra, nunca mais. Vê-la, nem de longe.
As guias de marcha para as férias de Natal, na casa de cada um, foram distribuidas em folgosa e frenética algazarra de caserna, companhia a companhia, depois da meticulosa entrega do material distribuido no início.
Nunca se roubou tanto, como nesses dias finais. Capacetes, bivaques, bornais, cinturões, tudo corria perigo ameaçador, numa desconfiança sem excepções, a começar no colega mais próximo. Com recurso a lojas especializadas, abastecidas sabe-se lá como, que prosperavam nas ruelas de Mafra, tudo acabava por dar certo, na hora final
J.L. Mendes Gomes
[Continua]
[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.;
(*) Vd. postes de:
24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5006: O segredo de... (8): Joaquim Luís Mendes Gomes: Podia ter-me saído caro aquele pontapé no...
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
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