terça-feira, 8 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7913: Notas de leitura (214): Jardim Botânico, de Luís Naves (Francisco Henriques da Silva)


1. O nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviou-nos a seguinte mensagem em 6 de Março de 2011:

Queridos Amigos,

Li a recensão crítica ao livro "Jardim Botânico" de Luís Naves elaborada pelo meu amigo de longa data e camarada de armas, Mário Beja Santos no poste (Guiné 63/74 - P7902: Notas de leitura (213): Jardim Botânico, de Luís Naves (1) (Mário Beja Santos))

Escusado será de dizer que devorei, com acrescido apetite, o romance em apreço de uma única assentada.
Concordo genericamente com os comentários do Mário e com a classificação dada. Trata-se com efeito de um belo romance, os dramas humanos da guerra civil estão bem retratados, as personagens ganham forma, dimensão e consistência ao longo das páginas, Luís Naves, como sublinha o nosso camarada Beja Santos, "ficciona superiormente um tempo de dilúvio que ainda hoje mantém um povo traumatizado".
Tenho, porém, quatro pontos críticos importantes a relevar:
- em primeiro lugar - e aqui há um erro de alguma gravidade por parte do autor - a guerra civil começou a 7 de Junho de 1998 e não a 9. Estes dois dias são importantes para se entender o encadear dos eventos. Muito embora assista ao romancista uma ampla margem de liberdade para relatar os acontecimentos e dar largas à sua criatividade, esta imprecisão histórica basilar reveste-se de enorme relevância, na medida em que os acontecimentos cruciais que desencadeiam a insurreição ocorrem a 7, com dois pontos focais: Brá (onde são inicialmente emboscados os carros do protocolo e da segurança do Estado) e nas imediações de Santa Luzia (onde se encontrava a residência do brigadeiro Ansumane Mané, líder da revolta, que "Nino" mandara deter). A situação político-militar acabaria por fixar-se, com dois campos definidos e com posições no terreno relativamente demarcadas, a 8 ou 9 de Junho. O pedido para a intervenção estrangeira (senegalesa e da Guiné-Conakry) é, oficialmente, feito a 8 (se é que não estava já na forja desde há muito). Na mesma data, uma tentativa de assalto a Brá por parte das forças governamentais falha rotundamente, sendo esta ofensiva rechaçada com grande número de baixas pelos insurrectos. É a 8 que se sabe que o cargueiro "Ponta de Sagres" poderá eventualmente deslocar-se a Bissau. Os combates, designadamente os duelos de artilharia prosseguiram com intensidade durante todo este tempo. A 9 desembarcaram os primeiros contingentes senegaleses. A fuga da população para o interior do país tem lugar logo nos primeiros dias. A evacuação dos portugueses e estrangeiros no navio referenciado só tem lugar a 11.
- em segundo lugar, Luís Naves não menciona um acontecimento fundamental do conflito de 98-99, de que o autor foi uma das raras testemunhas presenciais (que eu me lembre foi talvez o único jornalista português que assistiu a esses sucessos) e que determinou tangivelmente a sorte da guerra. É claro que o romancista é livre para o fazer, mas o episódio merecia ser relatado. Refiro-me à batalha de Mansoa que teve lugar a 22 de Julho de 1998 e que permitiu à Junta Militar de Ansumane Mané o controlo de Mansoa e do cruzamento estratégico de Jugudul garantindo-lhe o acesso irrestrito ao Leste (Bafatá, Gabu, Bambadinca) e ao Norte (Bula, Bissorã, Mansabá, Farim). Nesta batalha uma das mais importantes da guerra civil, as forças senegalesas e ninistas sofreram uma pesada derrota, tendo sido feitos prisioneiros muitos soldados bissau-guineenses, que combatiam do lado do Presidente da República, para logo em seguida mudarem de campo e se juntarem aos efectivos da Junta. Esta com a batalha de Mansoa obtém o controlo quase total do país, reduzindo-se as forças governamentais e “aliadas” ao “Bissauzinho” (a parte central da Bissau colonial). O avanço só foi sustido pela assinatura de um Memorando de Entendimento entre o Executivo de João Bernardo Vieira e a Junta Militar, a bordo da fragata “Corte Real”, mediado pelo Grupo de contacto da CPLP, em 26 de Julho. Por outras palavras, a alteração das posições no terreno teve implicações certas nas negociações de paz e na evolução da situação.
- Em terceiro lugar, tanto quanto sei e encontrava-me em Bissau, na altura, Luís Naves jamais entrou na capital ou se o fez tê-lo-á feito da forma clandestina que relata no livro, o que, a meu ver, é pouco crível dada a insegurança então reinante, correndo em permanência risco de vida. se acaso tentasse.
- Finalmente, como é relatado no romance, o regresso de 4 pessoas a Bissau, poucos dias depois de terem sido evacuadas no “Ponta de Sagres”, designadamente da médica russa (Ana), não faz muito sentido. É claro que o jornalista estava incumbido de uma missão específica, Daniel buscava os papéis da mina e o Dr. Fonseca por lá tinha os seus negócios. Há, obviamente, sempre gente para tudo e quem goste de aventuras arriscadas, mas prevalece aqui uma boa dose de exagero. Quem é que vai fazer turismo às profundezas do inferno, a não ser que a tal seja, de algum modo, obrigado?
Posto isto, li com prazer o “Jardim Botânico”, que muito me tem ajudado a meditar sobre a guerra absurda que então vivi e como o Mário Beja Santos sublinha marcou indelevelmente a Guiné-Bissau. Tenho pena que exista tão escassa literatura sobre o conflito armado. Assim, esta obra é uma referência obrigatória.
E por aqui me fico.

Como se diz na Guiné-Bissau,
Mantenhas
Francisco Henriques da Silva
(Alf. Mil da C.Caç 2402 - Có, Mansabá e Olossato, 1968-1970; ex-embaixador na Guiné-Bissau, 1997 a 1999)
____________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

5 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7902: Notas de leitura (213): Jardim Botânico, de Luís Naves (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Mário Beja Santos disse...

Meu querido amigo, Confesso que ainda estou perplexo com as tuas observações de rigor histórico numa obra que se apresenta como um romance. Até já estou com medo se acaso em "Mulher Grande" existe algum casal que eventualmente tenha vivido nalgumas daquelas povoações guineenses que eu refiro, com datas entre 1952 e 1962. Romance é romance. Robert Harris forjou uma novela em que Hitler tinha ganho a guerra e dominava a Europa (Vaterland), romance soberbo, aposto que ninguém se sentiu equivocado. Também detectei imprecisões no romance (Luis Naves escreve Babandinca quando é Bambadinca). Compreendo, com a tua vivência dos acontecimentos e o trabalho de memorial que tens entre mãos, que estas imprecisões te pareçam escaldantes para o vigor da ficção, na óptica do leitor. Perdoa, não afecta coisa nenhuma, o que o leitor quer é ser dominado pela riqueza da prosa, pelo fogo-de-artifício da história. Nenhum leitor deste romance irá enfatizar a data de 7 de Junho de 1998 e não 9 de Junho. O leitor vai ficar preso por uma trama em que os mandantes não podem sair da península de Bissau. O mesmo com as datas do embarque no cargueiro "Ponta de Sagres". Igualmente irrelevante que o Luis Naves tenha entrado ou não em Bissau. Que 4 pessoas poucos dias depois de terem sido evacuadas no Ponta de Sagres terem voltado a Bissau não faz sentido para ti porque tu sabes que não faz sentido. Para o leitor é mais um acicate para acompanhar aqueles náufragos ou trânsfugas. Luis Naves não engana ninguém, está a escrever um romance, não um relato histórico. Aposto dobrado contra singelo que ninguém se vai preocupar com as discrepâncias que ambos encontramos. Digo-te mais, estou muito feliz por mais esta obra constituir mais um degrau na escada da moderna literatura luso-guineense. Um abraço do Mário