1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2011:
Queridos amigos,
Continua a saga deste belo romance*, a primeira surpresa da colheita de 2011. Recomendo-o vivamente a todos. Tem nervo, os bons ingredientes de um prosa maturada, imagens eloquentes e impressivas.
Luis Naves está de parabéns e o nosso espaço luso-guineense também.
Um abraço do
Mário
Jardim Botânico (2):
Um belo romance português sobre o conflito guineense de 1998-1999
Beja Santos
Aquela guerra, no todo ou em parte incompreensível para os diferentes viajantes que viajam aglomerados até Bafatá, aproxima seres ziguezagueantes à atracção dos polos. Daniel quer à viva força voltar a Bissau, tem documentos escondidos em casa, é a sua esperança em refazer a vida numa mina na Serra Leoa. Ferreira Gomes, seu sócio e antigo combatente, anda desesperado à procura de Lila, a criança por quem se apaixonou. Ana, a médica russa, está completamente perdida entre pôr-se à disposição dos feridos ou enlear-se numa relação com Daniel. Em Bafatá, não há sinal de Lila, Ferreira Gomes está desnorteado, nem suspeita da infidelidade de Lila com Daniel. O doutor Fonseca, antigo secretário de Estado, parte, tal como Nelo Justino. Ana fica a ajudar um grupo de trabalhadores humanitários. Chega e junta-se ao grupo António Sequeira, um jornalista influente que trabalha num dos grandes diários de Lisboa. A expedição a caminho de Bissau irá recomeçar, Ana está presa por Daniel, conta-lhe episódios da sua vida íntima, mas sente uma indiferença do lado de Daniel. Com as estradas cortadas, em poder dos homens do Governo e da Junta, há que recorrer à imaginação, encontrar picadas que permitam chegar a Mansabá. Refeito o grupo, viaja-se na torreira do sol, cada um guarda no íntimo pensamentos intransmissíveis. Tem aqui lugar um esplendido diálogo sobre uma pseudo-organização humanitária especializada na troca. Alguém num país rico consegue comover a opinião pública mostrando imagens de um país em estado calamitoso. Faz-se um peditório e compram-se mantimentos, por exemplo 10 toneladas de comida e paga-se o transporte para o país afectado.
Instala-se um mecanismo altamente perverso: “Com esse dinheiro, podiam ter comprado 30 toneladas no destino, mas a comida vem de fora, é sempre comprada a produtores dos países ricos e a bom preço. Depois do transporte, os alimentos são oferecidos, mas a maior parte vai parar a comerciantes locais. Apenas uma pequena quantidade chega às pessoas pobres. Esses alimentos caídos do céu podem fazer mais mal que bem, porque só enchem as barrigas enquanto os países ricos estiverem comovidos. Muitos camponeses deixam de trabalhar nos campos, já que o alimento é gratuito”. O jornalista António Sequeira está perplexo e pergunta se essa organização humanitária não distribui comida. Não, está especializada na troca, trocam caju dos camponeses por sacas de arroz. É aqui que começa o negócio: “No mercado internacional, uma tonelada de arroz custa 100 dólares; uma de caju custa 700. Se trocar à razão de um por um, o seu lucro será de 600 dólares por tonelada. Se arroz for comprado com doações, então é um negócio que não pode falhar”. Já se saiu de Mansabá, espera-os o imprevisto, improvisam pontes, Ferreira Gomes aproveita para rememorar o tempo em que ali combateu durante a guerra colonial. Nisto, encontram homens da Junta, gente andrajosa, não dá para acreditar que os exércitos governamentais estejam a ser escorraçados por estes mendigos. Os viajantes acabam por chegar, já próximo de Bissau, a um clube de caça, gerido por Júlio de Sousa. Este empresário tem consciência de que o seu negócio chegou ao fim, aproveita a chegada do grupo para delapidar as últimas reservas, organiza-se uma festa, não vai ficar nada para a primeira força militar que se apoderar do clube de caça. Num relance, apercebemo-nos que todos estes homens e mulheres passaram uma esponja sobre o seu passado, teimam ferozmente em agarrar-se ao presente. Dão-se explicações banais para aquela guerra absurda. O jornalista Sequeira, que aqui chegou impreparado, dá um palpite: “O que está em causa é uma questão de personalidades. O chefe de um dos grupos está descontente com o que lhe calhou e o outro não quer dividir. Quando um deles morrer, o que sobrar prevalece”.
Luis Naves traça aqui o retrato de um jornalista presunçoso, fútil e pesporrente capaz de dizer com ar de grande conferencista. Júlio também quer dar uns palpites e acrescenta: “A África tem três lacunas principais: energia, comunicações e água. Cada um destes problemas está relacionado com os outros. Se houvesse mais água potável era preciso que existisse abundância de combustível para os motores dos poços e para a purificação dessa água. Como não há energia, os transportes ficam caros e, sem transportes, não há comércio e toda a gente é pobre. O que acontece aqui é indiferente para as potências mundiais”.
Continuando a peroração, Júlio considera que o drama da Guiné é estar rodeado por antigas colónias francesas, embriagado continua o seu discurso: “Este continente tem poucas saídas para o mar e poucos portos de águas profundas. Por isso, sempre esteve isolado. Era difícil entrar e sair. A partir de qualquer ponto de África, a 100 quilómetros da costa há zonas quase inacessíveis, planaltos de savana ou florestas tão densas como muros. A paisagem só depende da latitude e da abundância de chuvas”. Esboça, por último, um quadro da Guiné, dos seus recursos e procura uma justificação para a tirania política de Nino e da sua classe apoiante.
De manhã, feitas as despedidas, o grupo retoma a viagem. Chegou o momento do autor nos apresentar a Junta no seu cerco a Bissau: “Os rebeldes tinham instalado um posto de controlo a um quilómetro da aldeia de Nhacra. Passada a jangada de João Landim, depressa se alcançava a confluência das duas estradas que se dirigiam para o interior, uma para Norte e outra para Leste. Percorreram a boa velocidade o troço entre a jangada e a aldeia e, ao longo da estrada, não havia ninguém à vista. Foi assim que chegaram ao cruzamento, onde depararam com um ajuntamento de refugiados que enchia a praça e se prolongava pelas ruas de acesso. As pessoas pareciam petrificadas numa contemplação. Eram aos milhares, amontoados junto a vários edifícios coloniais de um piso… As pessoas olhavam para eles e afastavam-se, sem emoção, sem um sorriso, sem um lamento. Olhavam, apenas, como se já não olhassem, e abriam para os intrusos um caminho estreito.
Quando saíram de Nhacra, a caminho de Bissau, a estrada ficava outra vez vazia, até ao ponto de controlo da Junta. Ali, formava-se uma espécie de praça de portagem… Cinco negros ameaçadores estavam sentados num banco corrido, como estivessem na paragem de autocarros. As AK-47 eram brinquedos que eles mexiam à vontade, quase sem propósito, todas com aspecto de velhas armas tiradas do depósito, mas com dois carregadores presos por fita adesiva, à maneira guerrilheira”. E veio a ordem, não podiam passar.
Enceta-se uma conversa a roçar o surreal, ali perto, no aeroporto, ouvem-se estrondos, há quem conjecture que rebentou um paiol, a partir daquele momento os rebeldes estariam perdidos. Os viajantes regressam a Nhacra, a multidão de refugiados ali estava, numa ansiedade assustada. Nisto, para surpresa de todos, reaparece Maria Adília, a mulher do ramo de flores com quem tinham viajado de Dakar até Bafatá. Rebenta uma discussão, Ana é criticada por Ferreira Gomes, Daniel parece indiferente a tudo, Ana fica ainda mais magoada com tanta falta de companheirismo. Anoitece, os viajantes têm o futuro em suspenso. Neste momento, Luís Naves tem uma das descrições capitais do livro, Ana, na escuridão passeia-se naquela multidão que dormia ao relento: “Eram pedaços, curtos relances da desgraça terrível que se abatera. Milhares estendiam-se, e a amálgama de corpos quase parecia fazer parte da natureza, uma espécie de vegetação estranha, tão parada. Corpos deitados, sentados, corpos amontoados, em esculturas bizarras que a luz congelava. Novos relâmpagos iluminavam o céu e a sua luz efémera tombava tragicamente sobre a ausência de esperança. Até que restou apenas o ruído dos trovões, o vento a acelerar, numa zanga, o povo deitado, como que morto ou fundido com a selva, e os imensos castelos de nuvens, numa fúria”.
Na manhã seguinte irá recomeçar a tentativa de alcançar Bissau.
(Continua)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 5 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7902: Notas de leitura (213): Jardim Botânico, de Luís Naves (1) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 8 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7913: Notas de leitura (214): Jardim Botânico, de Luís Naves (Francisco Henriques da Silva)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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