Caro Vinhal
Eis mais uma pequena história para integrar as "Memórias boas da minha guerra".
Esta do "Cabo Velho", passou-se em Espinho no Verão de 1966, no Quartel GACA 3.
Espero que contribua para a malta reviver histórias idênticas.
Um abraço do
Silva
13.º Pelotão/3.ª Incorporação de 1966 > Com esta alegria ainda não se pensa ir para a guerra
Memórias boas da minha guerra (17)
O Cabo velho
O GACA 3 (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3) de Espinho, também conhecido pelo nome de “Grande Asilo de Crianças Abandonadas”, funcionava como Centro de Instrução e, também, de Recrutamento dos novos mancebos. Ali, recebíamos os jovens provenientes do norte do País, cada um com a sua personalidade bem vincada, também pelos receios bem evidentes. Porém, também uma grande parte deles trazia uma pontinha de manha, normalmente transmitida pelos seus amigos ex-militares. Nós, os “recepcionistas”, fartávamo-nos de nos divertir com as situações que se iam criando. Aliás, a conversa fora do serviço versava exactamente sobre as situações que cada graduado tinha vivido e que trazia para o nosso grupo de Milicianos.
Entre a Torre de Comando (que servia também para o controlo do movimento na pista de aviação) e a messe, havia um pequeno pavilhão pré-fabricado, onde funcionava o Posto Médico. Apenas me lembro que secretária do médico estava virada para a porta, aberta, por onde entravam os mancebos um a um, a fim de ser injectados com a “vacina de cavalo”. Cá fora, em fila, estendia-se o resto do grupo.
Eram mais de 11h30. Estávamos em finais de Junho (1966), na força do calor. Os mancebos, a partir das 8h00, andam de um lado para outro, em grupos, a “oficializar” a sua entrada no serviço militar. Arrastavam consigo as malas e os sacos com os seus haveres. De entre eles, havia um que não largava um embrulho de papel gorduroso, através do qual já se viam umas iscas de bacalhau frito. Estavam todos em tronco nu à espera da “injecção” do maqueiro Carneiro, conhecido também por Carniceiro. Este parecendo querer mostrar a sua “coragem” e desamor ao próximo, tinha prazer em aplicar, em cada ombro esquerdo, uma agulha das grandes, que, com a sua coroa metálica a brilhar ao sol, fornecia um espectáculo digno de um filme de terror. E como era diligente no seu serviço, logo que tinha uma agulha livre, corria para a próxima vítima. Digamos que fazia tudo para esmorecer os mancebos, desde a aplicação da agulha (tipo cavadela de enxada), até ao acompanhamento gutural-sonoro do seu esforço. Conseguia “apunhalar” cerca de 15 em lista de espera (não havia mais agulhas…).
- Que se passa? – perguntou o Comandante, Major Calejo, que passava junto ao Betinho da Foz, sentado à sombra, aparentando desfalecimento.
O Betinho limitou-se a apontar na direcção daquele espectáculo de ombros nus, com as agulhas espetadas e alinhadas, parecendo postes de alta tensão com ninhos de Cegonha, a atravessar o vale do Baixo Vouga.
O Carniceiro, digo, o Carneiro, logo informou-o que aquele já era o terceiro que tinha desmaiado.
O Major foi-se aproximando e ao verificar que o Fernandes, de Paredes do Coura, tinha sobre o regaço o embrulho gorduroso das iscas de bacalhau, já carregado de moscas, virou-se para ele e investiu:
- Ó rapaz larga lá essa merda, que até incomodas os teus camaradas.
Ao mesmo tempo que lhe estendia as mãos, acrescentou:
- Dá cá isso que eu guardo ali.
O Fernandes, que estava de “pé-atrás”, respondeu:
- Vai-te foder, morcão. Não querias mais nada, cabo velho? O meu irmão bem me avisou: tem cuidado com os mais velhos, que eles roubam tudo.
Silva da Cart 1689
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8199: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (16): Galinha? Cá tem
4 comentários:
Caro Ferreira da Silva
Estive em 2 GACA's e não sabia que eram Grandes Asilos.
No 3 e no pouco tempo que lá dormi, "ofereceram-me" um quarto individual mas, para não ficar sózinho, fiquei na companhai de mais uns 400 camaradas e, do outro lado da rede, mais outros tantos.
Eramos, assim, em números redondos, 8oo asilados-
Caro José Martins
A ideia que tínhamos era de que aquilo era um quartel provisório e muito abandonado. A vedação à vota não passava de uns arames já desalinhados e os desenfianços eram uma constante. Raramente os graduados de serviço cumpriam as 24 horas. Era um "vê se te desenrascas que eu vou fazer o mesmo". Rondas à Cidade, nem pensar; rondas aos sentinelas, terminavam com a chegada do serão de Espinho; Treino militar à sombra e na Carreira de Tiro ao sol. Foi uma agradável peluda, os seis meses que lá passei
Abraço do Silva
Caro Silva
Passei por lá de Setembro de 1967 a Fevereiro de 1968. Com a ordem da mobilização em véspera dos meus lindos 22 anos, em Dezembro.
Era um grande quartel, sem dúvida. Uma excepção, no meu tempo. O meu cmdt de companhia, a 2ª - de quem não me lembro o nome e era, além de cagarola, muito pouco querido pela rapaziada - que me pregou uma porrada porque, estando de sargento de dia, adormeci e não fui ao hastear da Bandeira. ra ele o oficial de dia. Enfim, com as diversas cunhas, só apanhei um fim de semana cortado. Mas acabou por ser benéfico, pois um dos alentejanos - O Canhão ou o Leonardo - poderam ir a casa,em Borba, pois matei-lhe o serviço.
Caro Portojo
É curioso que poucos dias antes de nos encontrarmos em Catió, eu, vindo de férias, tinha passado por lá, junto Quartel e verifiquei exteriormente que já estava diferente. Um dia destes te contarei algumas situações anormais (e engraçadas) que lá passei.
Um abraço
Enviar um comentário