sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 11 de Dezembro de 2011:

Caro amigo Carlos Vinhal, camaradas, amigos,
No dia 24 de Dezembro de 1972, num presépio chamado Guiné, eu marquei encontro com o Pai Natal. Aqui fica a história desse encontro, que também seria o último que teria com Ele em terras africanas.

Por muitas razões da vida que vivi, eu acredito que há um velhote simpático de barbas brancas, chamado Santa Claus, que faz os possíveis para me acompanhar todos os dias. Ele também vos tem no coração, disso tenho a certeza.

Quando ele bater à vossa porta, deixem-no entrar e descansar um pouco no seio da vossa família. Ele, depois de passar por aqui e de atravessar este Atlântico imenso que nos une, apenas quer desejar-vos um Feliz e Santo Natal.

Um grande abraço do
José Câmara


Guiné, um presépio de Natal

Na linda ilha das Flores, terra que me viu nascer e crescer, as celebrações do Natal tinham como atenção o nascimento do Menino Jesus em Belém e as prendas que Ele, no seu infinito amor, distribuía pela pequenada.
Como criança que era não percebia porque é que o Menino gostava tanto dos meninos mais ricos e, muitas vezes, se esquecia de mim, dos meus irmãos e de outros meninos tão pobres como eu. Levei alguns anos para me aperceber que o Menino também me amava como aos outros. A verdade era que a minha pequenina casa não tinha chaminé por onde Ele pudesse entrar e, mesmo que arranjasse outra forma de se infiltrar, nunca poderia encontrar os meus sapatinhos porque eu não os tinha. Apesar de todos esses problemas, na sua infinita bondade, às vezes arranjava maneira de deixar debaixo do travesseiro um saquinho com figos passados. Quando isso acontecia, o Natal era enorme no meu coração de criança.

No Faial, para onde fui com a idade dos 10 anos, talvez por influência das companhias estrangeiras de cabos submarinos (americana, inglesa e alemã), de algum consumismo já evidente na pequena cidade da Horta e mesmo dos emigrantes resultantes da erupção vulcânica dos Capelinhos, o Menino era mais rico e, por isso mesmo, costumava contratar um ajudante, o Pai Natal, por altura dos festejos natalícios. Era este Ajudante que trazia as boas novas do Menino.

O meu alfinete de gravata, homenagem ao meu Menino Jesus
De nós para vós, um Santo Natal
©Foto de J. Câmara

O Pai Natal, o Santa Claus como alguns lhe chamavam, viajava por entre estrelas, vindo das zonas frias da Lapónia. Talvez porque o trenó, puxado por renas de nariz vermelho, tinha mais espaço para sacos de prendas o Natal, na minha casa passámos a contar com algumas alegrias extras, entre as quais, há um alfinete de gravata que ainda hoje é o único que uso em homenagem ao grande amor e sacrifício do meu Menino Jesus.

Todavia, para compreender o Natal em toda a sua beleza humanística faltava, de facto, ter um encontro com o Menino Jesus, com o Pai Natal. A oportunidade aconteceu a meia tarde do dia 24 de Dezembro de 1972.

Ao tempo eu era, com muita honra, militar no Exército de Portugal, em fim de comissão de serviço na Guiné.
O presépio, devidamente preparado para essa efeméride, era completamente diferente daqueles a que estava acostumado na minha meninice. Este fora desenhado e construído com belas bolanhas e matas esplendorosas de palmeirais, cajueiros, capim, às quais não faltavam javalis, veados, pombos verdes, cobras, lagartos, sapos, mosquitos, formigas e os demais requintes da flora e fauna tropicais. A completar todo esse quadro maravilhoso que extasiava os corações mais sensíveis, as cascatas das ribeiras da freguesia deram lugar a um espelho imenso de um rio calmo que reflectia o sorriso quente do astro-rei. Era na verdade um presépio que deixaria imensas recordações, alegres umas, bem tristes outras, porque não saudades das boas, vida fora!

O Pai Natal da CCaç 3327 fazendo a aproximação à margem do Enxudé, Zona de Tite
© Foto de J. Câmara - Dezembro 24, 1972

Foi nesse ambiente que o Pai Natal, ansiosamente esperado, apareceu por detrás de um pequeno ilhéu colocado no meio do rio. Era diferente de tudo o quando imaginara até então. Vinha vestido de cinzento. Conduzia, com mestria, as renas que mais pareciam peixinhos vestidos de muitas cores que, alegremente, puxavam nas águas mansas do rio um trenó em forma de barquinho. Graciosamente, com lentidão cautelosa, aproximou-se da terra e aos poucos foi abrindo os seus braços até descansá-los na margem do rio. De peito bem aberto, deixou ver o seu imenso coração onde caberiam todos aqueles que o esperavam e que não se fizeram rogados em entrar nele.

Descansou o suficiente para receber a sua preciosa e alegre carga. Depois, talvez imitando Santo António, segredou algo aos peixinhos que, por ali, se mantinham em alegres brincadeiras. Fechou os seus enormes braços num amplexo imenso àqueles que acabara de receber junto do seu coração. E partiu. Tal como chegara, sem alaridos, havia que cumprir o final da sua nobre missão. Havia que levar a bom porto todos aqueles que confiaram no seu convite.

Aos poucos as margens do Enxudé foram-se perdendo no entardecer do dia para dar lugar à noite que se aproximava. Tite, Bissássema e as suas gentes passavam a ser nomes guardados na neblina da memória. Bissau foi o porto de acolhimento.

Encostado ao cais, exausto pelo cansaço, aquele Pai Natal ainda teve forças para um último aceno. Foi a última vez que o vi em terras da Guiné. A CCaç 3327 regressava à casa e às barracas que a receberam vinte e três meses antes, o Depósito de Adidos, em Brá.

A partir da esquerda: 1.º Sarg. Baltazar Lopes e Fur. Mil. Fernando Silva (ambos já falecidos), Fur. Mil. Pinto. A foto não oferece condições para identificar os outros com segurança. De costas, a ser servido, o Fur. Mil. Câmara
© Foto cedida pelo Fur. Mil. João Cruz, Natal de 1972

Nessa noite de Natal, alguns de nós ainda conseguiram desenfiar-se para a cidade. O Coelho à Caçador andou às correrias pelas mesas que juntámos no restaurante que nos acolheu. Uma noite diferente e alegre para nós. Só possível pelo amor e amizade de um Santa Claus que quis que, nesse ano de 1972, tivéssemos um Feliz e Santo Natal.

Porque ainda acredito na existência do Pai Natal, hoje, tal como ontem, que a Amizade e o Amor, a Paz e a Esperança do espírito do Natal, sejam companheiras diárias das vossas vidas e da dos vossos familiares.

Deste lado do oceano, um abraço enorme, quente e amigo do
José Câmara
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9213: O meu Natal no mato (34): Empada, 24 de Dezembro de 1969, em tempo de guerra (José Teixeira)

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Câmara

Foi com uma certa emoção, que acabei de ler este seu relato no Poste 9214.

Emocionou-me a forma como descreve o princípio da sua existência, tão comum à maioria dos Portugueses do nosso tempo, que por incrível, lembramos saudosos.

Emocionou-me também, a alegria manifesta hoje, que viveu à quarenta anos, quando "um barquinho"o (os) trouxe de volta à terra mãe, à família, à Paz, apesar da descrição poética, das cores da Paisagem, que ficava para trás.

Aproveito, para reforçar os votos de Feliz-Natal para si e sua família, cheio de Paz, valorizada, por quem viveu a guerra.

Aceite um abraço, deste lado de cá do Atlântico, onde lutamos contra
as dificuldades económicas, que nos levam ainda mais aos tempos passados, só que não nos trazem os entes que os povoam.

Felismina

José Marcelino Martins disse...

Deste lado do oceano tambem te envio um abraço quente, querido amigo.

rui esteves disse...

Olá José Câmara,
Mais um bom post. Lembro-me muito bem da chegada da lancha que nos levou de Tite para Bissau. No cais, muitos dos soldados milícias que nos acompanharam.
Lembro-me de 2 dos meus maqueiros balantas -- o Rui Tunha e o Zé da Costa -- a despedir-se com muita saudade por nos ver partir.
À noite, em Bissau, andámos à procura de um restaurante onde nos servissem um jantar digno da noite de Natal.
Foi difícil, estava tudo fechado. Por fim, lá descobrimos um restaurante duma família portuguesa que teve pena de nós e nos acolheu.
Deve ser este restaurante que aparece na foto. Reconheço o furriel Luís Pinto e, ao fundo, o furriel Caseiro. Isto para além do furriel Fernando Silva e de ti, furriel José Câmara.
Sentíamo-nos nas núvens, a guerra para nós tinha acabado, estávamos vivos e com saúde.
Fazíamos planos para o futuro, ansiosos por retomar a nossa vida à civil.
Soubemos depois que na CCaç 3326 (ou na CCac 3328, já não me lembro bem) um furriel de minas e armadilhas tinha perdido um pé ao desmontar o campo de minas que circundava o aquartelamento.
Um azar monumental -- passar 24 meses em guerra e no último dia, no aquartelamento, ficar inválido para toda a vida.
Ficámos em Bissau, a aguardar o navio que nos traria de volta. Embarcamos a 13 de Janeiro e chegámos a Lisboa no dia 21.
Enquanto não embarcámos, fazíamos as nossas compras de fim de comissão. Lembro-me de ir com o furriel André comprar uma máquina reflex da marca Miranda (eu fui no papel de conselheiro, "entendido" em fotografia). Para mim, comprei uma aparelhagem japonesa (sintonizador + 2 colunas) com um som ótimo.
Bom, já recordei umas coisas desse tempo. Desejo-te um bom Notal e um ótimo 2012. Votos extensivos a todos os camaradas que leram este meu comentário.
Grande abraço do Rui Esteves, furriel enfermeiro da CCaç 3327.

Fátima Câmara Vargas disse...

endylogOlá mano!
Gostei muito de ler este teu relato, cheio de sentimento e de ternura!
Como me lembro dos Natais da nossa infância! É verdade, não tínhamos presentes como os "meninos ricos", tínhamos sim a alegria e os valores que, apesar de todas as dificuldades, os nossos pais sempre souberam transmitir.Como gostaria de voltar a esses tempos e, mesmo que só por uns minutos, estivéssemos todos juntinhos!
Lá do céu, os nossos pais e os nossos irmãos estão a olhar para nós e a dizer "tenham um Feliz Natal". Este desejo, tenho a certeza, ser extensivo a toda a humanidade. Desejo também aos teus camaradas e suas famílias um Feliz e Santo Natal e que 2012 seja pleno das MAIORES VENTURAS.
Deste cantinho da ilha do Faial, vai um abraço fraterno para todos.
A mana,
Fátima

Anónimo disse...

Por ser lido por mais gente, desta vez comecei a comentar o teu actual Post, no Facebook, no meu moral, que por acaso vi Postado.Foi com grande emoção que o fiz. Aconcelho-te a visitar o meu moral no Facebook, a veres o que escrevi. Um Santo Natal para ti e para os teus.

JORGE FONTINHA

Anónimo disse...

Sr. José Câmara

Muito obrigado por ter partilhado comigo a publicação da sua linda história de Natal.

Também eu me revi no Natal da minha infância em que tudo era bem diferente do que é hoje.

Os presentes eram poucos ou nenhuns mas havia muito amor e carinho para dar...e receber.

Hoje o Natal é uma quadra onde predomina o consumismo.

Fiquei muito comovida ao ver na sua história do Natal de 1972, a foto do meu querido e saudoso marido e saber que os antigos camaradas ainda o recordam com saudade.

Esta época é muito triste para mim, porque ele partiu vai fazer 9 anos no dia 01 de Janeiro.

Do fundo do coração desejo um Feliz e Santo Natal para si e toda a família e que o Novo Ano vos traga tudo de bom.

Celeste Silva