domingo, 11 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9179: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (1): Saída para o mato em noite de tempestade

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Rios* (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66), com data de 25 de Novembro de 2011:

Caros ex-camaradas de Armas
GRATIDÃO; é a palavra que a emotividade, condicionante de expressar o que pretenderia expressar aos ex-camaradas Luis Graça, Carlos Vinhal e Virginio Briote, por terem acolhido e incentivado o meu pedido de pertencer a este blogue de cariz grandemente socializante e de uma solidariedade incomensurável e que em mim fortalece um dos factores estruturantes do meu pensamento, “este Mundo pode ser sempre melhor”.

Não posso deixar de elogiar a excelente ideia e a extraordinária qualidade deste espaço criador de imensa empatia. Bem hajam!

P.S. – O meu estado de saúde actual não me permite, mas hei-de comparecer aos convívios que me permitam conhecer pessoalmente extraordinários seres humanos.

Em anexo: - Uma das esparsas memórias da minha passagem pela tropa. Tenho algumas escritas e já a esmo por um imenso grupo de folhas soltas. Algumas são perfeitamente rocambolescas e outras de momentos agradáveis; enfim sempre foram oito anos.

Com um abraço fraterno
Carlos Rios

FRAGMENTOS DA MINHA PASSAGEM PELA TROPA (1)

Saída para o mato em noite de tempestade

Hoje, por sobre o aquartelamento e redondezas desencadeou-se um tremendo temporal que faz desta noite um tempo de temores e sobressaltos, tal é a quantidade de água da chuva que mais parece uma catadupa permanente que se abate sobre tudo, acompanhada do mais rigoroso trovejar e com relâmpagos, com só vi na Guiné, e que são de tal modo que se vêem em sequência por centenas de metros iluminando tudo até para lá da pista de aterragem, a ponto de se entreverem difusamente os contornos do início da floresta da Bianga .

Tite > Junho de 1965 > Uma noite de tempestade
Foto: © Santos Oliveira (2008). Direitos reservados

Tudo se me afigura intimador e desconhecido. Entretanto já bastante tarde foi mandado chamar o nosso guia, Malam Sanhã. Era um homem já de idade (um homem grande) de porte altivo e forte presença, era muçulmano e usava os trajes condizentes, homem de poucas palavras, aceitava a missão de nos guiar e encaminhar para os locais onde pretendíamos agir sem o mínimo comentário; entendia-nos perfeitamente.

Reunida a Companhia, já transformada em três pelotões, e mesmo em face aquelas inóspitas condições, lá tivemos que sair para o mato, sendo que apenas saímos com dois grupos acompanhados dos sempre presentes elementos das milícias, com alguns dos quais estabeleci fortes laços de amizade, e alguns carregadores que sempre nos acompanhavam, (estes elementos eram recrutados entre a população e iam sem qualquer armamento levando em bolsas adaptadas as granadas de Bazooka e de morteiro e aos quais era pago uma quantia ridícula; desta vez tive ao vir atrás trocar impressões com alguns camaradas, pois o meu lugar era como de costume o segundo, no caso logo atrás do Malan, a desdita de verificar que um destes pobres apresentava indícios de sofrer de poliomielite ou qualquer outra doença, pelo que lhe era bastante difícil caminhar; mas coitado pelos míseros pesos=escudos que iria receber lá ia sujeito a por ali ficar. Que desumanidades cometemos.

Lá avançámos a caminho do objectivo debaixo daquela tempestade do fim do Mundo, encaminhamo-nos, depois de atravessar a tenebrosa mata da Bianga, período durante o qual se afastou o temporal a que se seguiu um opressivo silêncio e escuridão de tal monta que tivemos de nos agarrar todos ao elemento da frente e onde amiudadas vezes caíamos ou batíamos com a cara na coronha da arma desse elemento. Valeu-me nesta aflição ser o segundo logo atrás do Malan Sanha e as suas roupas serem mais claras. Aproximamo-nos do Rio Geba e ouviam-se nitidamente, para além de indecifráveis e misteriosos ruídos, uns estalos secos, que mais pareciam tiros à distância.

Questionei o Malan Sanha!

E este na sua superioridade cultural e calma placidez apenas disse:

- É a mar… Rios, é a mar…

É verdade, os estalidos provinham do tarrafo que crescia a esmo à beira dos canais do Geba e em todas as enchentes de maré estalavam muitos e provocavam aqueles ruído seco.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9134: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (5): A atribuição de Cruz de Guerra e apresentação de quadros diversos

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Carlos Rios

Depois da leitura do relato geral da tua vivência na Guiné, surgem agora as pequenas histórias, os pequenos pormenores.
Ambas são complementares.
Se as primeiras revelam a nossa ânsia em 'despejar' o que a memória guardou e que tem uma necessidade quase imperiosa de, finalmente, se revelar na plenitude, já que na sua larga maioria ou não se falou disso ou foram apenas alguns fogachos, a segunda, a das pequenas histórias, revela que a catadupa de recordações já fluiu e agora, com serenidade, surgem esses momentos que pareciam esquecidos mas que tomam toda a sua força.

Esta história termina com a 'oposição' entre o mar e o 'rios' mas antes há uma excelente descrição da prodigalidade da natureza que a nós tanto impressionou (e afectou) e de que temos dificuldade em descrever para quem não assistiu.

Abraço
Hélder S.