quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9429: Nós da memória (Torcato Mendonça) (7): Finalmente Bissau - Fotos falantes IV

Finalmente Bissau - Palácio do Governador






1. Mais um texto do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória", ilustrado com fotos falantes da sua IV série.





NÓS DA MEMÓRIA - 7
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

3 - GUINÉ

Difícil para mim falar daqueles dias – dois ou três – depois da chegada à Guiné ou, mais concretamente, a Bissau.

O desgaste provocado pelos anos, a influência posteriormente sofrida pelo que vi e vivi, fiz e mandei fazer pode, de algum modo, deformar a maneira como recordo esses tempos. Talvez mais forte, mais determinante no arrumar de ideias, seja o que, principalmente e ultimamente, tenho lido neste nosso blogue. Há palavras, frases que se escapam ao politicamente correcto, digamos assim, e vêm-nos dizer tanto. São libertações de sentimentos reprimidos, vãs tentativas de se parecer cordeiro vestindo a sua pele sobre corpo de lobo velho ou novo. É natural que assim seja.

Eu, tu ou muitos “eles” podemos pensar de modo diferente. Porquê? Somente porque não fomos os agredidos, os humilhados e ofendidos, os despojados ou desalojados mesmo de poderes injustos e efémeros.

Eu, tu ou muitos “eles” voltamos e tentamos esquecer. Impossível fazê-lo totalmente. O mais forte, o que mais nos marcou ficou para sempre Será o infinito a apagar tudo isso.

Temos algo em comum eu, tu ou muitos “eles”: - Não esquecer, jamais perdoar as cobardes injustiças e colocar cada um em seu lugar.

Quando aqui escrevi, talvez a segunda vez, disse-o. Mantenho e assumo.

Temos igualmente em comum o gosto por aquela terra e aquelas gentes das Tabancas.
Contudo o elo mais forte entre nós é o termos sido combatentes. Termos passado por situações difíceis, termos dialogado com a morte e a sorte. Muitos quase a deixaram de temer, ou, em momentos de quase desespero quase a desejaram. O medo? O medo era uma constante e inesperadamente desaparecia como por magia, não existia tempo para ele e surgiam os automatismos treinados quase até à exaustão. Lembras-te? Claro que sim.

Seria o saber da incerteza do momento seguinte, a incerteza como hoje aqui relato essa parte do passado que nos leva a falar, a apelar à memória para fiel, o mais fielmente possível, contar a versão subjectiva, sempre subjectiva, de tudo o que se passou.

Não sei! Mas ouso fazê-lo honestamente.

Ressalvo o tudo e fico no muito. O tudo não por ser impossível.
Fiquemos no muito, na recordação, na subjectividade e no possível

 A Sé

Forte da Amura

Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9419: Nós da memória (Torcato Mendonça) (6): África, adeus - Fotos falantes IV

3 comentários:

manuelmaia disse...

Caro Torcato,

O teu desatar de nós leva-nos também a desatar alguns.
De facto "dialogamos com a morte e com a sorte", conforme dizes.
Essa nossa vivência de África jamais se apagaria por muitas vidas que pudéssemos lograr.
Ninguém me fará esquecer o cheiro da terra depois das primeiras chuvas...
Ninguém apagará de mim o sorriso que vi nas crianças quando de regresso de férias recebiam das minhas mãos uma simples t.shirt de feira ( eram muitas as que levava...) ou a pasta e os sapatos pretos que ofereci ao meu faxina,Maurício...
Ninguém me roubará a imagem da bajuda a quem ofereci uns slips,ou a da alegria da mulher grande a quem dei um pouco de casqueiro com manteiga para o seu djubi e a que ela não resistiu comendo logo um pedaço...
Ficaram gravadas nas gavetas da memória e de quando em vez saltam de lá para me dizer que estou vivo...
Ninguém apagará os sacrifícios,os medos,os horrores,a fome, a sede, a vivência com lacunas de tudo, como ninguém que lá nunca tivesse estado poderá compreender a solidariedade,a amizade, a comunhão de vivências experimentadas.
Ninguém poderá apagar das nossas memórias,como se nunca tivessem existido,aqueles que foram nossos
irmãos naquele tempo de comissão...
Depois de tudo isto não me peçam para esquecer o insulto soez,a desonestidade intelectual,o enxovalho boçal de que fomos vítimas,nas palavras de certo responsável militar que ainda não teve a hombridade de se desculpar.
É que a guerra não foi de soldadinhos de chumbo nem a brincar...
A guerra fez muitos mortos,estropiou,marcou profundamente.

Anónimo disse...

Caro Torcato

A bestialidade,comportamentos infra-humanos, é apanágio de todas e quaisquer guerras de grande e baixa intensidade..esta da intensidade é para rir..só os historiadores dizem..porque quem entra em combate, nem que seja um para um, é sempre de grande intensidade.

MEDO,esse "merdas"...pessoalmente e devido à minha especialidade,nunca tive muito tempo para pensar nele, tinha assuntos bem mais importantes a tratar, e ainda bem, porque se tivesse muito tempo para pensar nele,provavelmente,"borrava-me todo".
Da Guiné só tenho más recordações, devo ser masoquista,porque fiquei a gostar,mas como na realidade não sou masoquista...alguém que me possa explicar o porquê..agradecia.

C.Martins

Manuel Joaquim disse...

O que é que se diz a alguém quando esse alguém fez alguma coisa de que gostámos muito?:
-É pá! ... Toma lá um abraço!

Amigo Torcato, aqui vai um abração!