Porto de Bissau - Local de protesto
1. Texto do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória", ilustrado com fotos falantes da sua IV série.
NÓS DA MEMÓRIA - 8
(…desatemos, aos poucos, alguns…)
4 – BISSAU
O segundo dia de Guiné chegou. Estivera de serviço no primeiro. Agora procurava alojamento em Santa Luzia.
Sentia fortemente o apelo, o chamamento da cidade que no dia anterior atravessara. Mal a vira quando pelas ruas passei. Eram imagens demais, novidades pela diferença, para tanto ter fixado. Sentia o forte desejo de lá voltar e ver como era.
Bissau era de facto logo ali e, pouco depois estava a descer perto do antigo Forte da Amura. Recordo, não sei se mal, que logo em loja ali perto comprei uma máquina fotográfica.
Vícios velhos e, como esquecera a minha em Portugal, escolhi esta nova e boa companheira para muito tempo. Muitas e boas recordações me propiciaram.
Depois corri para o porto. Queria ver aquelas águas, o Pidjiguiti - sabia o que lá se passara anos atrás -, os barcos e aquela paisagem apressada da véspera e, se possível, fixá-la. Para isso tive que atravessar a baixa e demorei-me a ver a arquitectura dos edifícios, as gentes em passagem alegre com os seus vestidos multicolores. As vozes, as conversa ininteligíveis para mim e pensava: eles estão certos e nós, em quinhentos anos, nem a língua cá deixamos. Depois pensava ser erro meu. Era um excesso de facto.
Continuava deambulando ao acaso e surpreendia-me, como na véspera dera para ver, pela grande quantidade de militares… safa parece uma parada de quartel.
O porto visto, e fixado pela máquina, lá segui, calma e gostosamente, avenida acima até ao Palácio do Governador. Sentia os novos cheiros, o calor, as gentes e tudo era novo e diferente. Sentia-me bem. Claro que se devia a ser, por temperamento, eterno curioso pela novidade. Hoje menos e só neste momento reparo em tal.
O tempo passou célere e passado o dia seguinte, também gasto em visitas, veio o quarto e último desta primeira estadia em Bissau. Nesse quarto dia veio a preparação para a partida para o Leste.
Voltamos ao porto, ao rio e a uma enorme LDG onde embarcamos. Engoliu-nos como se nada fosse com ela.
LDG - Transporte de carga diversa até ao Xime
O Geba era um Tejo sem Tágides e larguíssimo. A LDG subia rio acima e as margens iam-se apertando naquela viagem de algumas horas. Os velhos, os que muitas viagens tinham feito, iam dando explicações: passamos o Porto Gole e o Corubal não tarda.
De facto, pouco depois aí estava o Corubal a entrar Geba adentro e a mata densa a estar bem perto.
Não sabia que, tempos depois por ali andaria. Fora uma zona muito visitada por nós e muitas operações ali fizemos.
Pouco depois aí estava o Xime o porto do Leste. Por ali passava a quase totalidade de homens, abastecimentos e armamento.
Porto do Xime e manobra de barcos de calados diferentes
Abicamos num porto rudimentar e estávamos em terra.
O trabalho, o nosso trabalho, ia começar.
Estaríamos preparados? Claro que não e seria impensável estar.
Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9429: Nós da memória (Torcato Mendonça) (7): Finalmente Bissau - Fotos falantes IV
5 comentários:
Caro Torcato:
Gosto do teus nós desatados.
Fazem-me lembrar muito de mim também.
Compraste a máquina, se calhar, na Casa Pintosinho. Rua paralela à marginal, ou foi na Foto Serra ali pertinho da entrada n'Amura e atrás do café Bento. Uma jovem e linda rapariga branca tirava-nos a foto tipo-passe lá.
Gostei muito da legenfa da tua 1.ª foto: "Porto de Bissau - Local de protesto". (Que protesto!! para a história, mas... quem a vai fazer?... ou desatar?
Recebe um abraço
Rui Silva
Torcato, essa dos 500 anos e nem a lingua ficou, era uma das perguntas que invariavelmente os inúmeros estrangeiros cooperantes perguntavam a um tuga que apanhassem à mão.
Em geral a pergunta era: É verdade que vocês estiveram na Guiné Bissau 500 anos? a fazer o quê?
Qualquer um gaguejava um pouco para responder.
Mas tive um colega com muitos anos de Guiné, que dizia com humor que a Guiné-Bissau, é muito recente, 500 anos foi mesmo na Guiné-Bolama.
Torcato, tambem os guineenses diziam que não tinhamos feito nada, e um amigo meu, de Nhoma, mas já viajado, lamentava que nem lá deixámos ao menos um "comboio".
Torcato, e se no Gabu, nos perguntarem se nós aprendemos fula, e se em Mansoa aprendemos balanta, e o Bijagó conhecemos?
Teriamos muito que gaguejar.
Abraço
Torcato as fotos são excelentes e as legendas transportam-nos.
Quanto ao problema posto pelo Rosinha, dou-lhe razão embora fosse difícil em dois anos, aprendermos a falar correctamente os vários dialectos.
Mas pelo o contrário nós tínhamos a obrigação de ter lá deixado a nossa língua. Era de importância para o futuro nosso e deles.
Porque não deixamos? Porque a sua difusão como factor de congregação, só ganhou valor como meio de permanência, após o eclodir da guerra. Quando lá estive tínhamos escolas a ensinar português e nalguns casos já "baptizar"(só para uso interno) os alunos com nomes portugueses. Mas foi tarde muito tarde. Também não podemos exigir mais a um país que tinha mais de 30% de analfabetos quando se deu o 25 de Abril. Se cá era assim.....
Um abraço
Torcato,
As fotografias estão "porreiras" fazem que voltemos aos tempos idos...
Gostei de verificar que deram utiliade às LDGs.
abraço
manuelmaia
Caro amigo Torcato
As circunstâncias do dia-a-dia não me têm permitido comentar os teus 'nós da memória desatados', embora os tenha lido com agrado.
Tu escreves bem, ora descrevendo, ora reflectindo, ora interrogando, e assim vamos acompanhando o percurso do teu raciocínio.
Neste caso quero sublinhar, aliás como já está aqui também registado, a qualidade das fotos, que para além de muito boas, trazem à vista as imagens que povoam o nosso imaginário, pois essas são, de facto, do 'nosso tempo'. Calculo que tenham sido tiradas com a tal máquina comprada na Pintosinho ou até mesmo na Toufik ali na marginal... Acho que todos aqueles que puderam e tinham gosto pela fotografia compraram por lá as suas máquinas. Acontece é que uns tinham mais 'arte' do que outros e tiraram melhor partido do material.
Quanto à tua postura de olhar à volta, ver com olhos de ver e tentar perceber, entender o novo, o diferente, respeitar para ser respeitado, é, em meu entender, a postura correcta e é bem notória a diferença que isso fazia para quem não tinha essa preocupação. Para muitos desses não houve 'aprendizagem'.
Abraço
Hélder S.
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