segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10230: Notas de leitura (388): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 18 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Aristides Pereira é muitas vezes compelido, ao longo desta indeterminável entrevista (bem estruturada, por sinal) a abordar questões altamente sensíveis, de que sempre fugira. Por exemplo, o que estivera por trás do complô que levara ao assassinato de Cabral, os fundamentos racionais ou manipulados da profunda desconfiança/hostilidade entre guineenses e cabo-verdianos. Há momentos em que se fica mesmo com a ideia que o território guineense foi um imenso laboratório para uma experiência revolucionária que levasse a uma utopia de unidade. E há um discurso de uma ingenuidade que desarma: o Amílcar decidiu, o Amílcar é quem sabia, o Amílcar escolheu as cores da bandeira e a letra do hino, o Amílcar trabalhava noite e dia…
Será que o n.º 2 do PAIGC ao longo desta entrevista teve consciência que criou a imagem de um líder que tudo pensava e que tudo orientava, com a aquiescência de devotados executantes?
Dá para pensar.

Um abraço do
Mário


Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História (2)

Beja Santos

Trata-se de uma longuíssima entrevista, obviamente estruturada entre entrevistado e entrevistador, o escopo que nos interessa tem a ver com os acontecimentos vividos por Aristides Pereira entre 1960 e 1974 em Conacri bem como os acontecimentos associados à cisão entre cabo-verdianos e guineenses. Aristides Pereira não se esquiva a responder a perguntas diretas e revela, sem papas na língua, as questões de fundo que levaram à separação dos dois países.

A sua sensibilidade chega a surpreender. Ele, Aristides, respondia pela logística, sob todos os pontos de vistas: material bélico, manutenção das pessoas, fardas, comida, combustível, dinheiro, eram um escravo do trabalho de manhã à noite. Cabral redige todos os documentos essenciais, desde o panfleto até às cartas a chefes de Estado, é pensador, responsável pela atividade diplomática, conferencista, o dirigente incontestado. Descreve ponto por ponto uma quase saga de meia-dúzia de dirigentes que se instalam em Conacri, em 1960, numa completa míngua de recursos e passo a passo vai ganhando credibilidade na cena internacional a par dos avanços na luta da libertação. O dinheiro era escasso mas os países amigos forneceram armas, equipas de treino, camiões, bolsas de estudo, comida, equipamentos de saúde. Conta como não foi fácil a implantação do PAIGC na Guiné-Conacri e mesmo ao nível da Organização da Unidade Africana.

Entrando na questão polémica do que divide e aproxima cabo-verdianos de guineenses, recorda a impaciência dos cabo-verdianos, a começar por Abílio Duarte, que queriam entrar na luta nas ilhas com o mesmo entusiasmo com que se lutava na Guiné. Cabral esforçou-se por levá-los à compreensão de que não havia o mínimo de hipóteses de instalar a guerrilha nas ilhas, até mesmo conselheiros internacionais dissuadiram-nos dessa intensão, seria uma carnificina e nenhuma potência amiga estada disposta a enviar barcos.

E assim chegamos à morte de Amílcar Cabral. Em Março de 1972, Amílcar tinha feito uma denúncia de um plano feito contra ele, com base num documento que lhe fora fornecido pelo PCP na URSS. Interrogado como é que a conspiração tinha ganho tal dimensão sem que os cabo-verdianos se tivessem apercebido, ele responde: “Isto surpreende quem não estava lá. Parte-se do princípio que o partido era o grupo que estava em Conacri, ou então era verdade. O grosso dos militantes estava no interior do país e não em Conacri. Mas porquê os cabo-verdianos que estavam lá não nos avisaram também? Eles eram os visados principais, sendo o Cabral o cabeça”. Mas afinal também havia implicados cabo-verdianos e ele fala em nomes. Considera que Sékou Touré sabia do complô, em Conacri havia racismo, mas perfilha que o ditador de Conacri tinha mais a perder do que a ganhar com o desaparecimento de Cabral. Descreve os acontecimentos que ele próprio viveu em 20 de Janeiro e depois a conversa desliza para as intenções de Cabral a seguir à independência. Afinal, que país Amílcar pretendia constituir na Guiné? Cabral admirava o combatente balanta e a sua dedicação ao trabalho. E assim se chega à ideologia de Cabral. Aristides continuava convicto que Amílcar não era um comunista: “Para ele, ter ideologia não era ser comunista, socialista ou mesmo capitalista. Não ter ideologia era no sentido dos dirigentes africanos, uma vez no poder, não terem uma conceção própria do mundo, do desenvolvimento dos seus povos e países, apenas estavam preocupados em ter poder pelo poder. Cabral, estudioso que era desse problema dava um sentido preciso à ideologia, era saber o que se queria em determinadas condições da luta”.

Sinceramente, é uma resposta ténue, frouxa, para quem conviveu em permanência com Cabral, que socialismo pretendia o líder, será que em anos a fio, nunca debateram sonhos, falaram de projetos, acalentaram esperanças? E depois Aristides sucede a Cabral, havia que encontrar consensos quando a desconfiança dos guineenses aos cabo-verdianos era muito elevada. E vem uma confissão: “Goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano. Da parte cabo-verdiana, principalmente aqueles que estavam em Conacri e que sofreram vexames, humilhações, etc. eu também não via como é que eles iriam suportar bem um guineense como secretário-geral”. Aristides considerou que os guineenses o iriam aceitar como substituto de Cabral, sem grande margem de reticências, porque sempre tinha assumido a posição de cabo-verdiano. Havia um claro, indisfarçável problema de poder: “A luta tinha chegado a um ponto tal que a independência era inevitável, era questão de mais dia, menos dia. De maneira que eu via a possibilidade de, de facto, os guineenses darem mais assentimento a mim do que ao Luís (Cabral), por exemplo, para liderar o PAIGC. Ao contrário de mim, o Luís foi sempre considerado guineense, porque nasceu na Guiné, e apresentava-se como sendo 100 % guineense. Mas, é claro, há a questão da cor, que contradiz tudo, e o guineense é sensível a isso ainda hoje”. O discurso volta atrás, às peripécias do assassinato. Admite o envolvimento de Osvaldo Vieira mas recusa que ele estivesse a comandar fosse o que fosse, já não tinha essa faculdade, incapacitado pelo alcoolismo, acredita mais que fosse o Mamadu Indjai a comandar. Todo o julgamento foi uma barafunda em que os guineenses apresentaram um conjunto de culpados, puseram-nos no carro, liquidaram-nos em território guineense. Aristides Pereira admite que Victor Saúde Maria deve ter morrido com este peso na consciência. Aristides vai mais longe, refere Nino Vieira envolvido na tramoia, também Chico Mendes e Carlos Correia também sabiam. Amílcar Cabral terá sido traído por toda esta gente.

Segue-se o Congresso de Madina de Boé, elege-se uma nova direção e discute-se a proclamação do Estado da Guiné-Bissau. No congresso Vitor Saúde Maria apresentou os resultados do inquérito ao assassinato de Amílcar Cabral, nitidamente mal orientado e mal dirigido, via-se à légua que se escondiam dados fundamentais e acrescenta: “Foi nessa base que se liquidou muita gente logo a seguir ao 20 de Janeiro que nem havia razão para liquidar”.

Questionado sobre se Amílcar Cabral também se sentia guineense, Aristides responde afirmativamente. O jornalista não desarma e pergunta-lhe como é que um filho de cabo-verdianos que passou parte da infância e da adolescência em Cabo Verde e fez estudos superiores em Portugal se sentia mais guineense do que cabo-verdiano, ao que Aristides responde: “Já formado, anticolonialista, pensou sempre na independência da Guiné. Na verdade, primeiro, ele pensou a luta a nível de Cabo Verde apenas. Talvez porque a situação da Guiné fosse muito mais gritante, ter adquirido essa posição firme de lutar pela Guiné e Cabo Verde, dois territórios a que se sentia ligado. A estratégia era essa: conseguir um território onde se podia facilmente estabelecer a luta armada. Então ele, com essa perspetiva, consolidou essa decisão e também a sua consciência de que tinha responsabilidades em relação à Guiné além de cabo-verde”. E acrescenta, referindo-se a Cabral: “Era um produto cabo-verdiano especial”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10221: Notas de leitura (387): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Anónimo disse...

Ah...então não foi a pide..ou teria sido a mando do General...também não..ah..foi..coiso..pois, o que aqui se aprende...e os os julgamentos foram imparciais,justos..etc e tal.
Havia racismo !!!...também não sabiam muito bem que tipo de regime político queriam..
Estou siderado..afinal parece que, e apesar da craveira intelectual de Amílcar Cabral,este era uma espécie de eucalipto...
Enfim..é a vida.

C.Martins

Unknown disse...

Aos autores de obras escritas, cabe-lhes o direito de liberdade de pensamento e espresão, assim como o direito de interpretar factos como entenderem dentro da sua consciência e conhecimentos sobre os mesmos.
Somente há uma lacuna nos seus escritos. Desconhecem (ou desconheceram) que provocam uma nova patologia pós-traumática. Face à persistência sugere-se algum tipo de tratamento.
Cumprimentos e abraços.
Carlos Filipe

JD disse...

Pois foi, Camaradas!
Falharam os dois planos,e, se houve terceiro, também falhou. Falou o plano do Gen. Spínola sobre a solução federalista, e falhou o plano comunista/socialista sobre a independência total e imediata para os territórios sob administração portuguesa.
As Conferências de Bandung, do Cairo, e de Acra, projectaram ideias de liberdade e realização dos povos, que não tiveram correspondência em qualquer das novas nacionalidades independentes em África. Em Acra, N'Kruma disse o seguinte à Conferência:"Lembro-vos de que tendes quatro etapas a vencer: 1º., obter a vossa liberdade e a vossa independência; 2º., consolidá-las; 3º., criar a unidade e a comunidade dos Estados livres de África, 4º., proceder à reconstrução social e económica do continente africano". E ainda foram lançadas ideias-força como: "Imperialistas, abandonai a África", e "A África é para os africanos".
O Congresso da Cassacá, e os baixos níveis comportamentais que lhe ficaram associados, com destaque para as execuções praticamente sumárias, não foram suficientes para mostrar ao mundo as fraquezas daqueles elementos emancipalistas.
O PAIGC - onde pontificava o mais esclarecido dos líderes africanos, era vítima dos medos e das divisões rácicas e tribalistas, e não conseguiu unir os homens num objectivo comunitário, vindo a revelar, como no resto da África que atingiu a independência, elevados níveis de corrupção e incompetência, a que se deve juntar a falta de solidariedade (uma das virtudes "alcançadas" a partir daquelas conferências), que tanto sensibilizava as consciências nórdicas formatadas pela social-democracia - conduziu-nos à posterior conclusão de que os movimentos não tinham gente suficiente para impor níveis aceitáveis de civilidade, antes oportunistas que se deixaram corromper pela venda das matérias-primas, do que resulta o prolongamento da situação colonial, agora na dependência exclusiva das multinacionais, a que os desfiles militares, e as aparições públicas dos altos dignatários conferem ricos traços de carnaval, enquanto os povos labutam contra a pobreza extrema, e a crescente falta de bens essenciais, consumidos pela voraz destruição dos eco-sistemas e da bio-diversidade.
Enquanto isso, tilintam fortunas nos cofres dos títeres.
Abraços fraternos
JD

JC Abreu dos Santos disse...

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1962 - René Dumont: «L'Afrique noire est mal partie»...
Li e reli, "há uma porradaria d'anos" (antes do 25A); permanece, qual 'profecia de cassandra', actualíssimo; recomenda-se, a quem queira acrescentar algo mais...

2012 - David Mendes: «Moçambique e Angola são governados por ditaduras comunistas. Durante o tempo colonial nunca tinha ouvido falar de fuzilamentos, mas o primeiro impacto depois da independência foi o fuzilamento em praça pública. Foi assim em Angola e em Moçambique também. A vida não tem valor para o MPLA e a Frelimo.»
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