1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Junho de 2012:
Queridos amigos,
Aqui termina a digressão pelos temas da luta armada e da rotura entre Guiné e Cabo Verde, pelo olhar de Aristides Pereira.
Ele que foi o dirigente político que mais conviveu com Amilcar Cabral irá certamente surpreender quem ler aqui as suas respostas às perguntas afiadas de José Vicente Lopes. É o olhar de um ancião que responde serenamente assumindo as suas limitações. Há temas controversos, como é evidente, por exemplo nega que tenha havido execuções no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, o que é contraditado por muitas outras opiniões. E revela-se cheio de coragem a dissecar o muito que separa os guineenses dos cabo-verdianos, é mesmo pungente ouvi-lo dizer que não esteve à altura de contribuir para reparar os danos causados pelo golpe de Estado de 14 de Novembro.
É acima de tudo um livro luminoso, até nos desabafos pessoais.
Recomendo vivamente a sua leitura.
Um abraço do
Mário
Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História (3)
Beja Santos
Aristides Pereira, já retirado de afazeres partidários ou de Estado, concedeu a José Vicente Lopes uma entrevista sobre a sua vida e a sua atividade política. Surpreendendo pela língua desatada, dá respostas abertas, na maior parte dos casos esclarecedoras, a perguntas por vezes bem afiadas. Nunca antes se pronunciara sobre os diferendos entre a Guiné e Cabo Verde de uma forma tão acutilante. E ficamos igualmente a saber que esses diferendos eram bem conhecidos de Amílcar Cabral e diz abertamente: “Na altura do seu assassinato ele estava precisamente no fogo cruzado. Os guineenses achavam que ele só queria saber dos cabo-verdianos, que estavam a comer bem e não sei que mais; os cabo-verdianos da parte deles, achavam que ele só dava atenção à luta armada na Guiné e que Cabo Verde não servia para nada”. O líder do PAIGC sentia-se incompreendido e injustiçado e adianta uma questão que era muitas vezes escamoteada pelos próprios cabo-verdianos: “Havia o problema de como o caso de Cabo Verde era gerido num quadro de extremo secretismo, imposto por uma luta com as nossas características. Esses cabo-verdianos não entendiam que Cabral não desse conhecimento a todos eles das medidas que a direção do partido estava a tomar para desenvolver a luta armada em Cabo Verde. Ora, isso era impossível. Havia infiltrações. Apareceu o Bibino, que foi a Cuba, formou-se lá com os outros e que quando deserta fornece as informações todas à PIDE. Isso apesar das medidas que Cabral tomou”. E não tem papas na língua quanto ao contencioso entre Abílio Duarte e Amílcar Cabral e as dificuldades de relacionamento entre Amílcar Cabral e o seu irmão Luís.
No capítulo alusivo à independência da Guiné-Bissau, Aristides elogia a visão diplomática de Cabral, a sua progressiva aproximação da ONU, seria aqui que a proclamação da independência tinha que ter reconhecimento. Fala sobre a missão da ONU em territórios libertados, elucida que foi José Araújo quem acompanhou os observadores da ONU e fala sobre o itinerário da missão: “Entraram pelo Sul. O Araújo levou-os até quase Quínara. Houve dificuldades. Um dos membros, o tunisino chegou uma altura em que não quis mais avançar. Os combatentes disseram-lhe: nós vamos carregá-lo. Fizeram uma maca e levaram-no. O sueco e o equatoriano, mais o fotógrafo japonês, comportaram-se muito bem. Terminada a missão, fizeram um relatório que deu as bases para a proclamação da independência”. Finda a missão, começou-se a trabalhar a todo o vapor no recenseamento e nas eleições.
E assim chegamos ao 25 de Abril e às negociações, Aristides pormenoriza um encontro com Mário Soares em Dakar e depois o encontro em Londres. O entrevistador interroga-o sobre os temores de parte a parte. Veio à baila a questão da futura aviação do PAIGC e ele responde: “Na altura da proclamação da independência já estavam estudantes nossos a formarem-se para pilotos de MIG e helicópteros. Tanto assim que logo após a entrada em Bissau esses jovens fizeram demonstrações. Com a independência, mais tarde, esses pilotos foram desviados para a aviação civil”. E faz insinuações sobre alegadas ingerências de Spínola na Guiné já independente: “Até deixar o poder, ele procurou manobrar o tempo todo, criando tensões desnecessárias. Tivemos informações nesse sentido. Aliás, vem daí a confusão dos comandos africanos e outras coisas mais. Da nossa parte, estávamos abertos a uma solução acerca dos comandos com os portugueses mas soubemos que o Spínola tinha dado garantias a alguns chefes desses comandos… E tivemos indicações de que eles estavam a concentrar-se numa das ilhas dos Bijagós”.
Espraia-se sobre os problemas relacionados com a independência de Cabo Verde e das incidências que teve a sua deslocação para a Prainha: as desinteligências e pruridos entre Luís Cabral e Pedro Pires, as objeções de Nino e de Chico Té em que o secretário-geral do PAIGC se deslocasse para outro país, por exemplo. E assim chegamos à desagregação do PAIGC, um processo que ele regista a partir do III Congresso do PAIGC, em Bissau, em 1977. Vieram ao de cima os fatores da desagregação. De novo Aristides faz insinuações sobre o apodrecimento guineense: “Eu penso que tudo veio da nossa instalação em Bissau. Aliás, o próprio Cabral, mais ou menos, previu isso: chegar a Bissau era uma desgraça para nós. O Spínola tinha aquilo minado. A propaganda contra os cabo-verdianos, a tendência para uma sociedade de consumo, ter vivendas luxuosas, viaturas, mulheres, etc., tudo isso foi o nosso fim”. Dá pormenores de comportamentos, de questiúnculas, as fragilidades morais, e depois o golpe de Estado de Nino Vieira em que ficamos a saber que de há muito havia relações estudadas entre Nino e Luís Cabral, deplora a decadências de Osvaldo Vieira, a sua convicção de que Osvaldo estava seriamente ligado à conspiração que desembocou na morte de Cabral. E refere-se igualmente a todo o esforço para impedir a rutura, mas cedo se tornou claro que era um caminho sem retorno.
Confessa a sua fraqueza e incapacidade para ter gerido melhor a situação explosiva que se viveu, diz mesmo que a situação enveredara pelo irracional: “O cabo-verdiano tornou-se o culpado de todo o mal na Guiné. Portanto, o Nino aí teve responsabilidades agravadas, embora eu lhe faça um desconto, tendo em conta as suas limitações intelectuais, políticas e morais”. E volta a refletir sobre o choque de civilizações, a dificuldade sentida pelos cabo-verdianos quando viam gente a comer com a mão, eles diziam abertamente serem incapazes. É um acervo de considerações que exigem leitura ponderada, Aristides refere-se mesmo a outros dirigentes como Paulo Correia, Victor Saúde Maria, Mário Cabral e Vasco Cabral.
E termina assim esta gama de reflexões acerca do arrependimento dos guineenses que fizeram ou aderiram ao 14 de Novembro: “Aprenderam por conta própria que não eram os cabo-verdianos os responsáveis da desgraça da Guiné, como procuraram fazer crer com o 14 de Novembro. Nós, da nossa parte, diga o que se disser, viabilizámos o nosso país enquanto eles fizeram o contrário. Todos os sacrifícios consentidos redundaram em nada, para a desgraça do povo humilde da Guiné que, infelizmente, teve o azar de apanhar essa gente como dirigente”.
A longa entrevista, prossegue mas já fica centrada nos problemas cabo-verdianos e na sua compreensão pelos problemas contemporâneos, terminando por notas pessoais como, por exemplo, o drama da morte do seu filho Eugénio.
A partir de agora, este longo e apurado trabalho de José Vicente Lopes é de leitura obrigatória para quem se interesse pelo estudo da luta armada na Guiné e pelas sequelas da rutura entre Guiné e Cabo Verde, a partir de 1980.
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Nota de CV:
Vd. postes da série de:
3 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10221: Notas de leitura (387): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (1) (Mário Beja Santos)
e
6 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10230: Notas de leitura (388): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (2) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 8 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10241: Notas de leitura (389): O Ultramar e a revisão constitucional de 1971, Revista Vida Mundial de 16 de Julho de 1971 (José Manuel Matos Dinis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Obrigado Mário pela trabalheira.
Penso que extraísses cá para fora o excencial do livro.
Mas falta muita coisa para vir cá para fora.
Ainda não está provado que esse pequeno grupo de caboverdeanos do PAIGC, não tenha vendido a alma ao diabo.
Mas os caboverdeanos e guineenses sabem muitas coisas mais que ainda é cedo para sairem cá para fora.
Nós os caboverdeanos já têm a sua bandeira nacional, só a Guiné continua com a bandeira do PAIGC.
Mas leva tempo para compreender o que se passou e ainda não se sabe o que está para vir.
Cumprimentos
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