sábado, 22 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 11 de Setembro de 2012:

Meus caros amigos,
Esta é a segunda parte da minha análise ao livro "O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1998-1999)" de Guilherme Zeverino*.

Com cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2/2)

Retomando as teses de Guilherme Zeverino, para quem conhece a Guiné-Bissau, é quase uma verdade lapaliciana o dizer-se que a introdução do multipartidarismo não veio resolver, antes avivar os problemas internos no seio do PAIGC, gerando uma situação politicamente insustentável, mas, que, em nosso entender, “Nino” Vieira e a sua clique pensavam frivolamente poder controlar. Bom seria que o autor tivesse dedicado algum espaço às eternas lutas entre personalidades e facções, bem como, à permanente dança de cadeiras no seio do antigo partido do Poder. Regista e é digno de nota que nas demais formações partidárias locais, apenas com duas excepções, a liderança coube a dissidentes do PAIGC.

Não sabemos até que ponto o multipartidarismo veio reforçar a sociedade civil bissau-guineense. Para além de uma certa secundarização do PAIGC – perdeu o estatuto de partido único - houve de facto uma saudável abertura aos media, às ONG’s, à igreja e, hoje, dada a virtual inexistência no país de meios de comunicação social de massas independentes, à Internet e aos blogues. Todavia, o Poder continuou – e continua - a estar nas mãos dos militares, cabendo-lhes sempre a última palavra. Digamos que estamos perante uma porta entreaberta que se pode fechar a qualquer momento.

No que concerne a interdependência entre a crise no PAIGC e a crise nas Forças Armadas, devemos assinalar que, efectivamente, essa correlação existe. Mais. O Partido no seu último Congresso (o VI, nas vésperas do conflito), optando por uma estapafúrdia e absurda política de avestruz, não abordou as questões mais candentes das Forças Armadas ou o problema “escaldante” de Casamansa, nem sequer aflorou o tema dos veteranos de guerra. Os militares verificaram, assim, que a solução dos seus problemas devia ser resolvida por eles próprios, à semelhança aliás do que “Nino” Vieira fizera em 1980. Se a interdependência entre as duas crises parecia ser patente, não obstante, a resolução dos problemas seria estritamente militar e não tinha nada que ver com as questiúnculas internas do PAIGC. É aqui que se separam as águas. Há quem queira ver no levantamento de 7 de Junho de 1998, uma questão interna partidária com expressão castrense, a inversa assume, a meu ver, foros de maior verosimilhança. O fulcro do problema estava em “Nino”, o grande régulo – Presidente da República, Comandante Supremo das Forças Armadas e Presidente do PAIGC – e, bem entendido, no seu “núcleo duro”. Em suma, e para não nos perdemos noutras considerações, a interdependência entre as duas crises existe, mas não foi a causa principal do confronto (foi tão-somente uma das causas, porque outras houve de dimensão semelhante). Logo, a questão tem de ser relativizada.

Desconhecemos em que medida a rivalidade cultural Portugal-França e as respectivas políticas de cooperação terão levado a posicionamentos divergentes na crise bissau-guineense. Estes factores contribuíram, seguramente, para o reforço dessas posições, mas não as engendraram Todavia, os dados essenciais do problema eram, a nosso ver, do foro estritamente político: para Paris, tratava-se de um motim contra a autoridade legítima estabelecida – ou seja, uma rebelião contra um presidente eleito - , logo tinha de ser debelado e, ao longo do tempo, esta posição não oscilou; para Lisboa, partindo inicialmente do mesmo pressuposto, assumiu, de seguida, uma “política essencialmente realista”, como refere Zeverino (vd. p. 87), tendo em conta a situação no terreno, a problemática dos refugiados e a mediação entre as partes em conflito e, há que sublinhá-lo com toda a frontalidade, aproximando-se das posições rebeldes, até porque o regime “ninista”, apesar da democraticidade aparente, era, sob múltiplos aspectos, condenável. Logo, oscilou. Consequentemente, os factores apontados por Zeverino contribuem apenas para alicerçar opções e posições políticas de fundo pré-existentes ou em fase de formação.

A adesão precipitada da Guiné-Bissau ao franco CFA, sem medidas de acompanhamento macro-económicas, foi, como releva Zeverino, nefasta. A má gestão, a inépcia, o sobre-endividamento, o sufoco financeiro, a manifesta incapacidade para debelar a pobreza endémica do país, o ciclo impiedoso do sub-desenvolvimento sem solução de saída, que caracterizaram os governos de Saturnino Costa e de Carlos Correia (deste em menor medida), faziam igualmente parte da receita para o desastre e contribuíram com a sua quota-parte para o levantamento militar. A problemática económico-financeira é, porém, tratada com alguma ligeireza. A nosso ver, merecia maior atenção por parte do autor. Por outro lado, não se pode meter no mesmo saco as adesões à zona franco e à Francofonia, bem como, as pressões externas dos países limítrofes francófonos, ou seja no capítulo das causas económicas (ou económico-financeiras) do levantamento. A adopção do franco CFA insere-se claramente nesta esfera, a francofonia no âmbito politico-cultural, as pressões externas no contexto das relações externas. Misturar alhos com bugalhos induz-nos em erros e confusões desnecessárias.

Estamos inteiramente de acordo que a intervenção militar estrangeira, do Senegal e da Guiné-Conakry, suscitou uma espontânea e muito viva reacção nacionalista por parte da população da Guiné-Bissau. Trata-se, sem sombra para quaisquer dúvidas, de uma questão sócio-política de primeira grandeza e que marcou de forma perene a guerra civil naquele país africano. Todavia, no âmbito social outras questões de grande relevância deveriam ter sido abordadas, pois constituíam problemas estruturais que estão na raiz do levantamento militar e que continuam, ainda hoje, por resolver. Referimo-nos às clivagens entre as velhas e novas gerações de militares (os que fizeram a “luta” e os que não lutaram porque eram ainda crianças ou nem sequer eram nascidos), aos veteranos de guerra, abandonados e votados à marginalização social; e last but not least ao problema étnico, que o autor, de todo em todo, não aborda (sabendo-se, por exemplo, que o grosso dos contingentes das fileiras das Forças Armadas é constituído pela etnia balanta – cerca de 2/3 – um grupo relegado a um estatuto subalterno na sociedade e que “Nino” Vieira, na fase final da guerra, em desespero de causa foi recrutar jovens papeis e bijagós, os “aguentas” , como guarda pretoriana do regime). Aliás, retomando o tema da fissura entre velhas e novas gerações entendemos que se trata de um problema sociológico de fundo e que não se circunscreve apenas ao âmbito castrense, pois afecta horizontalmente toda a sociedade bissau-guineense. Ora, tudo ponderado, para uma obra com pretensões académicas, estas omissões no capítulo social são graves. Finalmente, o autor não aborda e devia ter abordado como causas próximas do conflito as razões de ordem pessoal que levaram Ansumane Mané a revoltar-se contra o seu amigo de sempre e companheiro de luta “Nino” Vieira. E esta questão não é despicienda, como se sabe.

Como tese de dissertação possui alguns méritos, mas com a devida vénia, em nossa opinião, fica aquém das naturais expectativas que se depositam num projecto desta natureza. Mister é reconhecer, porém, que foi escrita e apresentada escassos 4 anos após os acontecimentos, portanto, de certo modo, ainda “a quente.” De qualquer forma apresenta alguns factos marcantes do período em causa e algumas pistas interessantes que permitem interpretar a história recente da Guiné-Bissau.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste anterior de 20 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10411: Notas de leitura (406): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1) (Francisco Henriques da Silva)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10416: Notas de leitura (407): O Corredor de Lamel - 68 Guiné 69 - de Guilherme Costa Ganança (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caros amigos

Li com interesse estas observações.
Não me sinto com capacidade para tecer grandes comentários, no entanto acho que nos foi fornecido muito e bom material de reflexão e de mais conhecimentos para apreciar o que se passou e vai passando naquele território.

São afloradas muitas explicações que, de um modo geral, parecem fazerem sentido.

Registo que lá, como cá, a questão dos 'antigos combatentes' não foi resolvida e lá, mais do que cá, parece ser um factor muito importante. Tanto mais que se concluiu, entre outras coisas, que o factor 'militar' está sempre presente em todas as crises. E a chave do problema, nesse aspecto, é quase sempre Mansoa...

A questão das diferentes etnias é outro aspecto importantíssimo. Se elas sempre existiram e até foram exacerbadas durante o período da guerra, utilizadas pela autoridades portuguesas com vista a tirar partido dessa divisão, não será expectável que desapareçam como que por magia. Uma eventual união dos povos da Guiné será sempre coisa demorada e teria que ser incentivada e acarinhada por dirigentes com carisma que, verdade seja dita, não vislumbro. Talvez Amílcar pudesse ter feito mas será sempre uma incógnita por falta de prova.

Outro aspecto aflorado é o das relações pessoais 'que não é dispiciendo'. Pois não, e é até muito forte, sabendo-se como são as vaidades pessoais.

Tudo o que acima referi aparecem como causas 'internas'. Haverá também 'causas externas' mas as 'internas', por si só chegam e sobram para prolongar o sofrimento do povo e inviabilizar os esforços da comunidade.

Abraço
Hélder S.

JD disse...

Concordo com o Helder,
A Guiné foi demasiado estigmatizada pela guerra, e os gurrilheiros usaram e abusaram da justiça exercida a tiro, factor que pode ser determinante para o comportamento dos militares até, e para além dos nossos dias. Parece-me, que se sentem com direito a mordomias de uma sociedade que não souberam valorizar.
Por outro lado, a questão étnica. Também acho que decorrendo de uma tradição de confrontos, os povos Guineenses não souberam encontrar forma de aglutinação num interesse nacional, talvez, porque não tiveram políticos sonhadores e visionários, que promovessem com honestidade o interesse público.
O Helder ainda acrescenta as ambições pessoais para o deficit de harmonização social, e também concordo.
Concluindo: o comentário do Chico na primeira parte deste trabalho, que reflecte um certo desalento da população civil pelas previsiveis evoluções a partir da independência, pode ser um libelo contra todos os que entregaram a soberania, não ao povo, mas aos guerrilheiros, que, na maioria, nunca tiveram qualquer experiência profissional, menos ainda de administração política.
Abraços fraternos
JD